20 anos da Constituição

Acesso à Justiça não se confunde com acesso ao Judiciário

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11 de outubro de 2008, 0h00

Sob pena de prejuízo ao bom desenvolvimento do pensamento em questão, é oportuno iniciar com a reflexão do que seja propriamente um princípio. Tomando-se por base seu sentido ainda literal, por ele se compreende, no dizer de Aurélio Buarque de Holanda, ser um local em que algo tem origem, uma causa primária, um preceito ou regra, bons costumes, educação e, atente-se, proposições diretoras duma arte, duma ciência.

Não obstante o esclarecimento já prestado, importa confrontá-lo com a configuração jurídica do que venha a ser um princípio, visto que, segundo defende o iminente professor José de Albuquerque Rocha, revestem três funções no direito processual em particular, a saber: função fundamentadora, função orientadora da interpretação e função de fonte subsidiária.

O que se pode extrair da função fundamentadora, essencialmente, condiz com a compreensão de princípio à raiz de onde deriva a validez intrínseca do conteúdo das normas jurídicas, isto é, presta-se a fundar o direito positivo, servindo-se de idéia básica ao legislador, que aos princípios recorre para normatizar a realidade social.

No mesmo sentido, é possível avaliar a função orientadora da interpretação, vez que o ordenamento jurídico, construído norma a norma, fundamenta-se nos princípios e, por conseguinte, deve ser interpretado sob este prisma. A propósito da função subsidiária, aos princípios se deve recorrer quando da verificação de lacuna na lei, fazendo às vezes de elemento integrador do Direito. Sintetiza Arnaldo Vasconcelos: não há relação humana possível que não possa ser tutelada pelo Direito.

Restringindo, de momento, o foco na análise ao princípio do acesso à justiça, garantia prevista pela Constituição Federal de 1988, que assegura a todos o direito de socorrer-se aos órgãos do Poder Judiciário e clamar pela proteção jurisdicional do Estado, de pronto se percebe a intimidade de ligação com o pretenso exercício da cidadania.

E neste contexto, como compreende Cláudio Pereira de Souza Neto, as normas que garantem as condições da democracia deliberativa são justamente os direitos materialmente fundamentais, estando, dentre eles, parafraseando Jürgen Habermas, aqueles que resultam imediatamente da possibilidade de postulação judicial de direitos e da configuração politicamente autônoma da proteção jurídica individual.

A receita constitucional apresenta-se clara quanto aos seus propósitos. Para tanto criou a Defensoria Pública, tendo sido obra da Carta mais recente, e incumbiu-lhe a penosa missão de materializar este princípio, revestindo a forma de um direito de cunho fundamental conferido a todos aqueles que lhe são privadas as condições mínimas de vida digna.

O acesso à justiça pressupõe, sem embargo, a capacidade e oportunidade de realização de um direito, primordialmente dos direitos humanos, assim considerados os direitos civis, políticos e sociais, configuração leal e verdadeira da cidadania. Somente assim o sendo, se vislumbrará maior aproximação do que venha a ser o Direito como tentativa de construção do justo.

Contudo, é de ressaltar que acesso à justiça não se confunde, diga-se, não se deve confundir com acesso ao Judiciário. Este, tanto quanto a dignidade, é estranho ao povo, que não o consegue compreender, tampouco tocar, eis que possui linguagem própria, inacessível e demasiadamente rebuscada, apresenta-se com indumentária cerimoniosa, de modo a destacar seus operadores dos demais, seja quem for. É um universo impenetrável, diferente mesmo, e não por acaso, mas porque assim pretende ser, encharcado de formalidade e apaixonado pela hierarquização das relações, dos cargos e das pessoas.

A contrário senso, o acesso à justiça sim, é o escopo de tal garantia. E ao falar em justiça, que se venham acompanhadas as características que compõem a sua gênese, a saber, a equidade, a legitimidade e, sobretudo, a moralidade e todos os demais valores éticos. Como bem defende Kazuo Watanabe, o acesso à justiça não se esgota no acesso ao Judiciário e nem no próprio universo do direito estatal, tampouco nos acanhados limites do acesso aos órgãos judiciais já existentes. Não se trata, pois, de conceder o acesso à Justiça enquanto instituição estatal, mas, em verdade, viabilizar o acesso à ordem jurídica justa.

Definitivamente o ‘universo jurídico’ deve declinar da posição de nobreza e assumir sua condição absolutamente popular. Diz-se popular aquilo que é do povo, próprio do povo ou por ele feito. E o que é o Direito senão exatamente a manifestação do povo, a forma de possibilitá-lo viver em sociedade, a pacificação de suas relações e a adequação à realidade por ele vivida?

Ainda que se admita ser o Direito um bem do povo, ao menos para ele, este mesmo povo que o desconhece, a Carta Maior de 1988 instituiu que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, ao mesmo passo que dirigiu ao Estado a obrigação de prestar assistência judiciária integral e gratuita à população economicamente desfavorecida, tratando-se do artigo 5°, XXXV e LXXIV, respectivamente.

De nada valem tais disposições se não existirem condições materiais que as ponham em prática, que as tornem palpáveis. Que fique claro, não se pretende questionar a importância dos princípios, ao revés, mas é necessário que se lhes atribua o limite de suas forças, visto que o acesso à justiça reclama além; somente se constrói através de um sistema dotado da mais lídima organização e democracia, com fins a aproximar os conflitos sociais ao Poder Judiciário.

Em uma das tentativas de dar efetividade a este princípio, viu-se nascer no ordenamento jurídico a lei 9.099/95, de 26 de setembro, que veio a instituir os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, a saber, órgãos da Justiça ordinária dotados a orientarem-se pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação, como assim dispõe o artigo 2°.

Insta reconhecer que essa ‘justiça apartada’ acoplou boas intenções. Isto é fato. Seu formato, por assim dizer, passou a admitir que os desprovidos de condições econômicas e financeiras positivas pudessem contar com a Justiça, ainda que limitadamente, sem a necessidade de haver constituído um advogado. No mesmo sentido, garantiu a isenção de custas processuais, ainda que somente no primeiro grau de jurisdição. E portanto tal legislação tinha o cariz do princípio constitucional do acesso à Justiça. Surgiu mesmo como um facilitador, e foi de grande valia, visto que conflitos de pequena monta passaram a ser resolvidos naquele âmbito.

Em que pese tantas boas novas na criação dos Juizados Especiais, pouco tempo foi suficiente para torná-los contrários ao fim ao qual se destinavam. De fato as portas continuam abertas, em pleno funcionamento, mas o povo, carente de conhecimento e orientação, assim permanece. E como conseqüência, a justiça lhe é remota, ainda que possa parecer paradoxal.

Porquanto, repete-se, nenhum passo será dado rumo à construção do Estado Democrático de Direito, o verdadeiro, se permanecermos com a simplista convicção de que a Constituição Federal garante o acesso à justiça e, para tanto, tem-se ao dispor os Juizados Especiais e a Defensoria Pública. Aqui, inevitavelmente, se há de inferir o princípio da igualdade, também garantido constitucionalmente.

Seu ideal de tratar desigualmente os desiguais tem sido atropelado pelo próprio Estado, seu criador. Ainda que a Defensoria Pública seja compromissada institucional e legalmente com o acesso à justiça, que é, indubitavelmente, o seu papel transformador, necessita que lhe sejam outorgadas condições concretas de funcionamento, pois sua atuação é o esteio das causas populares, é a única, porém, pouca, esperança nutrida por alguns, de verem seu “humilde” problema resolvido pelas mãos finas da autoridade que veste toga.

Por assim dizer, remete-se ao inteligente pensamento de Cândido Dinamarco, ao refletir sobre o acesso à justiça na qualidade de princípio. Concluiu que, bem mais que um princípio, o acesso à justiça é a síntese do todos os princípios e garantias do processo, seja a nível constitucional ou infraconstitucional, seja em sede legislativa ou doutrinária.

O título do artigo foi alterado porque o que foi originalmente publicado não refletia o pensamento da autora

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