Continuidade constitucional

Entrevista: Alexandre de Moraes, advogado constitucionalista

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5 de outubro de 2008, 0h00

alexandre de moraes - por spaccaSpacca" data-GUID="alexandre_moraes.jpeg">O fato de o Judiciário estar cada vez mais ativo e participativo não deve ser motivo de preocupação. Na repartição de forças e espaços entre os três poderes da República, a parte do leão ainda é a do Executivo. A opinião é do constitucionalista Alexandre de Moraes, para quem o judiciário ao estender sua atuação na sociedade está apenas cumprindo “um papel que lhe cabe, mas que não era exercido antes de 1988”.

Para Moraes, a Constituição promulgada em 1988, estabeleceu uma nova relação de forças, ampliando as atribuições do Legislativo e do Judiciário. “Mas o Executivo continua sendo o poder mais forte do Brasil.” A situação só não é similar aos tempos de governos fortes da ditadura militar porque a própria Constituição colocou freios ao Executivo, que antes não existiam.

O texto constitucional delegou ao Judiciário, por meio do Supremo Tribunal Federal, interpretar e impor barreiras ao Executivo. Daí a falsa impressão de que ele é o poder que dá a última palavra, acredita Moraes. “No mundo real, a ação do Judiciário não chega a 10%.” Segundo ele, no dia a dia da sociedade, quem interfere mesmo é o Executivo. O Judiciário só age nos casos de ilegalidades, que são exceções.

Alexandre de Moraes é o entrevistado da revista Consultor Jurídico na série sobre os 20 anos da Constituição Federal, neste 5 de outubro, data da promulgação da carta. Para ele, apesar das duas décadas de vida, o texto constitucional ainda é atual. “É preciso aprender a aplicar a Constituição, e não trocá-la.”

Com quase 40 anos de vida, Moraes tem uma ficha jurídica invejável: já foi promotor de Justiça, secretário de Justiça, presidente da antiga Febem e conselheiro do Conselho Nacional de Justiça. Hoje, é secretário municipal de Transportes de São Paulo. É também autor de diversos livros, entre eles o Direito Constitucional, que tem mais de 300 mil cópias vendidas e foi considerada a segunda obra mais citada pelos ministros do Supremo Tribunal Federal.

Nessa obra, ele se debruça sobre a Constituição Federal. Tem, portanto, conhecimento de causa para falar que o texto aprovado em 1988, à parte os seus defeitos, é muito bom e não deve ser substituído por outro. “Querer uma nova constituinte é mascarar os problemas e gerar na população a falsa ilusão de que, mudando a Constituição, resolvem-se os problemas.”

Leia a entrevista.

ConJur — O senhor concorda com a afirmação de que a Constituição Federal deu mais poder ao Judiciário?

Alexandre de Moraes — Não. Antes da Constituição de 1988, como acontece em qualquer regime de exceção, nem o Judiciário, nem o Legislativo eram fortes. O único poder forte era o Executivo, com seus presidentes generais. A partir de 1988, o Judiciário ficou mais importante, mas não acho que tenha mais poder que os outros. A força do Congresso Nacional é gigantesca. Um presidente sem o congresso não governa. Ao mesmo tempo, o Executivo tem suas medidas provisórias e toca o país como quer.

ConJur — Mas não é o Judiciário que dá a última palavra em quase tudo? Ele pode, por exemplo, suspender uma medida provisória do Executivo.

Alexandre de Moraes — Não. O mundo do Judiciário não chega a 10% do mundo real. O dia a dia das pessoas é saúde, educação, transporte e habitação. O Judiciário só se envolve nisso se há alguma ilegalidade. Ele não comanda nem o Executivo e nem o Legislativo. Apenas faz um papel que lhe cabe, mas que não era exercido antes de 1988. O Executivo continua sendo o poder mais forte no Brasil. A diferença é que, agora, ele tem uma barreira: a Constituição Federal. O Judiciário, por meio do Supremo Tribunal Federal, fica responsável por interpretar a Constituição. Pode extrapolar de vez em quando mas, se isso acontecer sempre, vai haver uma guerrilha institucional. Se o Judiciário começar a interferir muito nos outros dois Poderes, estes passam a não cumprir mais as decisões judiciais e o Judiciário perde sua legitimidade.

ConJur — Isso está acontecendo hoje?

Alexandre de Moraes — Não. Mas é lógico que, com uma Constituição extremamente analítica como a nossa, o Supremo não se limita ao papel de legislador negativo. Acaba exercendo papel positivo, ou seja, de dar interpretações constitucionais, e não só dizer o que é inconstitucional. Mesmo com as Súmulas Vinculantes, por exemplo, a que proíbe o nepotismo e a que regulamenta o uso das algemas, a discussão é jurídica. O Supremo não desrespeita os outros poderes.

ConJur — Mesmo com a súmula das algemas, tramita na Câmara dos Deputados um projeto de lei que libera o uso das algemas. Se ele for aprovado, o que prevalece: a súmula ou a lei?

Alexandre de Moraes — Se o Supremo fala que, a partir da interpretação dos direitos fundamentais que estão na Constituição, conclui-se que a algema só pode ser usada em casos excepcionais, qualquer lei que diga o contrário já nasce inconstitucional.

ConJur — As Súmulas Vinculantes vinculam o Poder Legislativo?

Alexandre de Moraes — Não. Ao editar uma Súmula Vinculante, o Supremo sai da postura de legislador negativo e constrói, como o legislador positivo, mas não vincula o Poder Legislativo. O próprio Supremo já decidiu isso. Há países na Europa em que o efeito vinculante vincula também o Poder Legislativo. No Brasil, não. Se o Legislativo editar uma lei que contrarie súmula vinculante, o Supremo vai ter de analisar a constitucionalidade dessa lei e se debruçar sobre o assunto de novo. Assim acontece a evolução jurisprudencial. Sobre as algemas, o Congresso pode editar uma lei dizendo que o seu uso é regra, e não exceção, mas essa lei não tem chance nenhuma de sobreviver.

ConJur — Mesmo com a Súmula Vinculante sobre o uso de algemas, é preciso que o Legislativo regulamente o assunto em lei?

Alexandre de Moraes — Sim. A súmula é extremamente genérica e ainda é preciso regulamentar o assunto. O Congresso não deve abrir mão do seu papel de legislar.

ConJur — A Constituição Federal de 88 é atual?

Alexandre de Moraes — Atualíssima. Por ser genérica, permite discussão sobre pesquisas com células-tronco embrionárias e aborto de feto anencéfalo.

ConJur — A Constituição é genérica?

Alexandre de Moraes — É extremamente genérica, mas não é sintética. Ela é analítica, mas genérica nas suas previsões. Por exemplo, quando prevê o princípio da dignidade da pessoa humana. Esses dois casos que eu citei — células-tronco e aborto de anencéfalos — são discutidos com base no mesmo princípio da dignidade. Por ser genérica e deixar os princípios abertos, a Constituição Federal de 1988 vai ser sempre atual. Ela só não será atual em questões que nem deveria estar no texto constitucional.

ConJur — Quais são essas questões?

Alexandre de Moraes — Idade para aposentadoria no serviço público, por exemplo. Já precisamos de mais de três emendas constitucionais para muda r isso.

ConJur — A Constituição comporta discussões modernas, como os novos conceitos de família e avanços tecnológicos?

Alexandre de Moraes — Comporta, mas isso é problemático. No Brasil, estamos levando tudo para o campo constitucional. Em outros países, um tribunal constitucional tem a força que o Supremo tem, mas não fica decidindo tudo porque não se constitucionaliza tudo. Entendo que o Superior Tribunal de Justiça agiu corretamente ao decidir sobre união estável entre homossexuais porque isso é uma questão infraconstitucional. Se for levar tudo para o plano constitucional, vamos ter uma instância judicial única, que será o Supremo. Isso é extremamente perigoso.

ConJur — Mas não é a própria Constituição que permite levar tudo para ser discutido no plano constitucional?

Alexandre de Moraes — Não. O intérprete da Constituição é quem faz isso. É a mania generalizada do operador do direito brasileiro de querer sempre ter uma instância a mais. Isso é um perigo porque desvirtua o sistema. Já fizemos isso com o STJ, que se transformou numa terceira instância. Agora, estamos queremos transformar o STF em quarta instância.

ConJur — A Constituição agüenta mais quantos anos?

Alexandre de Moraes — A Constituição não deveria ser substituída por outra. Com ela, estamos vivendo o maior período de normalidade democrática. Aliás, só agora temos uma Constituição democrática, que prevê eleições a cada dois anos, um Poder Judiciário e Ministério Público atuantes. É preciso aprender a aplicar a Constituição, e não trocá-la. Há pontos que ainda não são aplicados. A grande luta daqueles que aplicam o texto constitucional é solidificá-lo e mudar só coisas bem pontuais. Fazer uma nova constituinte é mascarar os problemas e gerar na população a falsa ilusão de que, mudando a Constituição, resolvem-se os problemas.

ConJur — O que está previsto na Constituição e que ainda não é aplicado?

Alexandre de Moraes — Os direitos fundamentais. Direito à educação e à saúde, por exemplo, é aplicado só formalmente.

ConJur — Quais os riscos de uma nova constituinte?

Alexandre de Moraes — Abrir a discussão para uma nova Constituição é abrir para o enfraquecimento do Judiciário, do Ministério Público e dos mecanismos de controle da corrupção. Uma nova constituinte colocaria em risco a estabilidade política no país porque a primeira coisa a ser discutida seria o sistema político: parlamentarismo ou presidencialismo. Repito: não é preciso mudar a Constituição. Dá para fazer reforma política sem mudar o texto constitucional. O que precisa alterar na Constituição é extinguir medida provisória. As MPs terminaram por hipertrofiar o Executivo. Não precisa de constituinte para isso. É desnecessário e perigoso mudar de Constituição porque não há certeza de que o que está ruim vai melhorar, mas é possível que o que está bom vai sofrer pressão para piorar.

ConJur — A Constituição já teve 56 emendas fora as seis de revisão. Ela perdeu a sua essência? É preciso uma revisão constitucional?

Alexandre de Moraes — Na essência, a Constituição continua igual, mas acho que deveria ser feito um grande estudo para desconstitucionalizar matérias e colocá-las na legislação ordinária. Isso pode ser feito por meio de emenda constitucional.

ConJur — A Constituição de 1988 teve de ser tão ampla para não dar brechas para a volta da ditadura?

Alexandre de Moraes — Não só por isso. Quando uma coisa está sendo estancada por tanto tempo, acaba explodindo. Foi o que aconteceu com os direitos da sociedade, que estavam estancados. Cada setor da sociedade quis constitucionalizar seus direitos e o texto constitucional ficou gigantesco. Hoje, não temos mais risco de uma ditadura. O país já passou por cinco eleições para presidente, um processo de impeachment e alternância de poder entre dois partidos opostos.

ConJur — Qual sua avaliação geral sobre a Constituição?

Alexandre de Moraes — Ela é boa principalmente porque permitiu o fortalecimento das instituições — Congresso, Judiciário e Ministério Público. Ao fortalecer as instituições, garantiu, ainda que não perfeita, uma maior efetividade dos direitos fundamentais. Independente dos erros e dos acertos, a nossa Constituição Federal não deve em nada para as dos outros países.

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