Insegurança jurídica

Nossa Carta Magna nasceu na contramão da história

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4 de outubro de 2008, 12h45

Artigo originalmente publicado na edição de sábado (4/10) do jornal Folha de S.Paulo

Em 1988, a expectativa em torno da Constituição era enorme. Imaginava-se que ela criaria condições para a correção das injustiças sociais, a consolidação da democracia e a retomada do desenvolvimento econômico. Mas o mundo passava por transformações tão rápidas que os constituintes não souberam acompanhá-las: nossa Carta Magna nasceu na contramão da história.

É bem verdade que, não obstante seus defeitos, a Constituição de 1988 representa um marco importante para o país: o fim de um ciclo autoritário e o início de uma experiência democrática, que se pretende duradoura.

Há, com efeito, virtudes no texto constitucional; porém, elas aparecem em menor número que os defeitos.

A Constituição dita “cidadã” é um documento provocativo, criativo, mas, por suas características, desestabilizador da vida nacional. Não há exagero em afirmar que seu advento provocou enorme insegurança jurídica, dificultou a governabilidade, inibiu negócios e investimentos, sem falar nos conflitos sociais que gerou.

Multiplicam-se no texto as normas problemáticas, controvertidas e inexecutáveis. Há quase um geral reconhecimento de que nossa Carta Magna trouxe mais dúvidas do que certezas quanto à interpretação de seus inúmeros artigos e infindáveis emendas que se sucedem no tempo.

Tempo esse, aliás, inimigo da nossa Constituição. A história se fazia, mas os constituintes não o notaram. Não olharam em torno de si. Ignoraram as profundas alterações no mundo por força de uma revolução que não conheciam: a da alta tecnologia.

Assim também no campo político: não perceberam o declínio das ideologias. Não viram que o debate do fim de século não seria mais entre a esquerda e a direita, mas entre o velho e o novo, o ineficiente e o eficiente. Ignoraram ainda que o gigantismo do Estado passava a ser mais um fator de atraso que um agente do progresso.

Igualmente não se deram conta da mudança radical havida no relacionamento entre os países. Falhou a percepção para ver que os vários sistemas econômicos operavam em bases transnacionais e que capital, ciência e tecnologia se internacionalizavam.

Entre os muitos problemas que ainda poderíamos mencionar, até na área social, vamos nos concentrar no preconceito, um dos maiores defeitos de origem da Constituição. Pois não bastou para aplacar o arraigado preconceito dos constituintes produzir uma Carta democrática; impôs-se fazê-la “antiautoritária”. Mas, à força de corrigir males do passado, os constituintes se esqueceram do porvir.

As Forças Armadas, por exemplo, foram alvo favorito de preconceitos, bem como o foi o sistema de informação: no intuito de punir os abusos do passado, desarmou-se o Estado contra o terrorismo, o banditismo ideológico, as quadrilhas de corrupção.

O empresário, por sua vez, foi posto sob dupla suspeita: politicamente, pois foi conivente com o autoritarismo, e economicamente, pois é um ser anti-social, que deve ser humanizado por imposição do legislador.

Eis aqui, por sinal, o vício que perpassou todo o trabalho: insatisfeitos com a realidade, os constituintes acreditaram ser possível rejeitá-la radicalmente e modificá-la por ato de vontade. Erro crasso imaginar que a Constituição, por si, poderia tanto definir as condições das mudanças como criar ou impor tais condições.

Dominados pelo desejo de inovar, os constituintes saltaram além da realidade histórica para cair num espaço e num tempo imaginários. Pretenderam produzir a mais perfeita e completa Constituição, algo pronto, acabado, um produto no qual tudo parece simples e coordenado, uniforme, justo e racional. Não o fizeram.

É bem verdade que a lei, qualquer lei, por si só, não cria desenvolvimento político, econômico e social. Mas a Constituição tem comprovado que o contrário ocorre: a má lei pode inibir o desenvolvimento de um país pelas reiteradas crises que provoca.

Parece-nos irrefutável esta conclusão: a Constituição de 1988 está longe de ser o instrumento que pode garantir ao país uma democracia estável e um desenvolvimento auto-sustentado. É preciso aproveitar a experiência desses 20 anos para escoimar a Carta dos erros e preservar os acertos, resgatando o país para a modernidade.

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