Lei de Pantagruel

Lei dos recursos repetitivos ofende princípio da moralidade

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28 de novembro de 2008, 23h00

Há um problema, há meu ver de natureza sistêmica, com a matéria tratada no artigo escrito pelo ministro Luís Felipe Salomão, intitulado O STJ e o julgamento de recursos repetitivos (clique aqui para ler), sobre os recursos repetitivos.

Primeiro, deixo registrado meu repúdio pelo abominável requisito do pré-questionamento, de criação jurisprudencial antiga, e segundo a minha opinião invasiva da competência do legislador, uma vez que nenhuma das nossas Constituições Federais chegou a ponto de estabelecer requisitos de admissibilidade para que as cortes extraordinárias pudessem ser suscitadas pelo jurisdicionado a exercer sua competência em grau de recurso. Esse requisito, que em tese somente deveria ser analisado pelo próprio Tribunal Superior, seja o STF, seja o STJ, passou a ser examinado também pelos tribunais de segunda instância com a complacência do STJ para esse esbulho competencial.

Em segundo lugar, admitindo-se, sempre por epítrope, a constitucionalidade do requisito de pré-questionamento, de acordo com a nova lei, o presidente do tribunal de origem admitirá um ou mais recursos representativos da controvérsia e os encaminhará para o STJ (artigo 543-C, parágrafo 1º). Esse exame de admissibilidade diz respeito exclusivamente com a controvérsia. Verifica-se a representatividade do recurso em relação a ela. Portanto, a representatividade da controvérsia passa a ser mais um requisito de admissibilidade recursal. Se se tratar de causa singular, será carecedora desse requisito, pois a controvérsia representada no recurso é única, sem paralelo em outros recursos.

Pois bem, distribuído o recurso escolhido no STJ, o relator poderá admitir manifestação de pessoas interessadas na controvérsia, conforme dispuser o Regimento Interno (artigo 543-C, parágrafo 4º). Aí começam os problemas. Se há uma pluralidade de recursos sobre a mesma matéria de direito, então é forçoso concluir que a questão controvertida reveste-se de elevada relevância para a pacificação social, pois é objeto de múltiplos litígios individuais. Isso, por si só, já aconselha que se permita a manifestação de outras pessoas interessadas na controvérsia, para defender a adoção de solução no sentido que melhor lhe favoreça, até porque o fato de a controvérsia possuir um caráter plúrimo, não significa que todos os recorrentes desfiaram os mesmos argumentos em sua defesa.

À guisa de exemplo, tome-se a questão dos juros bancários. A atividade bancária é, no contexto hodierno, imprescindível para a economia e está presente no quotidiano das pessoas; todos dependem dos serviços bancários. No entanto, cada relação é individual, com suas nuances e matizes peculiares, não sendo lícito sequer alegar haver homogeneidade nessas relações. Quando muito, pode ocorrer homogeneidade qualitativa do serviço, mas o sinalagma funcional é sempre distinto em cada uma delas.

A cada dia surge uma nova tese em defesa dos consumidores, usuários dos serviços bancários. Exemplo disso é a insurgência generalizada contra os juros exorbitantes cobrados pelos bancos. Essa insurgência não faz, contudo, da matéria, uma controvérsia uniforme. Cada caso é diferente do outro. Também os argumentos e os dispositivos legais invocados carecem de uniformidade nos múltiplos recursos que afluem para o STJ (o qual, aliás, tem dado mostras de possuir entendimento francamente bancário).

Como, então, estabelecer os limites subjetivos das manifestações em recursos paradigmas diante da constatação dessas diferenças de execução das relações jurídicas? Aceitar a manifestação de um jurisdicionado, cujo recurso especial fica retido na origem, e um não a de outro, nas mesmas condições, sob o argumento de não se pode admitir múltiplas manifestações, é o mesmo que não admitir manifestação nenhuma. Instala-se, portanto, o dilema: ou se admitem todas as manifestações, ou não se admite nenhuma, para não ferir o princípio da isonomia.

Se se admitirem todas, inviabilizado ficará o objetivo da lei, pois haverá uma constelação ingente de manifestações que não permitirá a adequada aquilatação da controvérsia, dada a multiplicidade de teses e alegações, obviamente sempre de direito, que deverão ser analisadas. Demais disso, a cada manifestação deverá ser concedido o direito de resposta da parta antagonista, sob pena de ficar malferido o contraditório. A solução desse dilema parece, então, apontar para não se admitir a manifestação de ninguém. Isso significa que a execução da nova norma jurídica nasce mutilada.

Porém, isso também não resolve o problema. Mas gera outro, tão ou mais gravoso. Na origem, não se faz mais o exame de admissibilidade prévio, apenas se escolhe o recurso paradigma para enviar ao STJ. Essa é a inteligência que flui do disposto no artigo 543-C, parágrafo 8º, in fine, que determina o exame de admissibilidade do recurso especial pelo tribunal de origem somente na hipótese de este tribunal manter, em segundo pronunciamento, o acórdão recorrido que foi proferido em divergência como o julgado paradigma.

O recurso paradigma escolhido e julgado pelo STJ poderá ter dois destinos: receber provimento ou não. De acordo com a lei (artigo 543-C, parágrafos 7º e 8º), os recursos represados na origem também terão dois destinos: ou serão denegados, na hipótese de o acórdão recorrido coincidir com o julgamento proferido no recurso paradigma; ou serão novamente examinados pelo tribunal de origem, se o acórdão recorrido estiver em testilha com o julgado paradigma.

Na primeira hipótese, negar-se-ão no mérito os recursos cujo julgamento estiver em harmonia como o julgado paradigma, sem sequer verificar se tinham acesso franqueado à instância extraordinária ou não. Na segunda, caso o tribunal de origem mantenha o entendimento divergente, far-se-á o exame de admissibilidade do recurso especial (artigo 543-C, parágrafo 8º, in fine).

Destarte, não há mais que se fazer exame de admissibilidade para o recurso paradigma, o que implica discriminar entre ele e os que ficam represados, pois aqueles em que o acórdão venha caracterizar divergência em relação ao julgado paradigma serão submetidos a exame de admissibilidade e poderão não aproveitar do resultado do julgamento paradigmático, o que representa uma capitis deminutio, afora o maior prazo de tramitação, já que ficarão aguardando o resultado do julgamento do recurso paradigma sem a certeza de que, caso o acórdão recorrido e divergente seja mantido na origem, terão acesso ao STJ para ver a lide julgada na esteira do julgado paradigma.

Por outro lado, se se adotar como solução o exame de admissibilidade do recurso paradigma, então esse exame só poderá ser feito na origem, e não mais pelo STJ, pois o não conhecimento do recurso paradigma na instância extraordinária acarretaria no não conhecimento de cambulhada de todos os demais recursos que ficaram aguardando no tribunal de origem, com manifesto prejuízo e injustiça para muitos jurisdicionados cujos recursos, embora retidos, seriam normalmente admitidos porque satisfazem os requisitos de admissibilidade.

Numa palavra, alguns recursos poderão ser julgados no mérito sem condições de admissibilidade, o que significa que jamais seriam conhecidos sob o regime anterior. Outros serão denegados ou não conhecidos, quando poderiam ser sob o regime anterior. E outros, terão de se submeter ao rigorosíssimo crivo do exame de admissibilidade para ter acesso ao STJ. Não me parece que uma lei assim seja portadora de justiça e equidade. Ao contrário, parece-me uma lei confeccionada com um fim específico: servir de válvula de alívio para a prestação do serviço público consistente da tutela jurisdicional, sem nenhuma preocupação com a qualidade desse serviço. Ora, isso, para dizer o mínimo, é reprovável e imoral, atenta contra o princípio da moralidade inscrito no artigo 37, caput, da Constituição Federal.

Por isso que tenho classificado essa lei como «Lei de Pantagruel». Sim, trata-se de uma lei pantagruelesca, que se compraz com o extermínio voraz de recursos, sem nenhuma preocupação com a missão precípua do Poder Judiciário que assenta na sua função social de pacificar os conflitos emergentes esforçando-se por fazê-lo julgando o mérito dos litígios, pois o extermínio do processo se apreciação do mérito não constitui solução qualificada da lide, por isso semeia a insatisfação que fermenta no seio social e se espalha como um câncer.

Autores

  • Brave

    é advogado, diretor do Departamento de Prerrogativas da Federação das Associações dos Advogados do Estado de São Paulo (Fadesp) e mestre em Direito pela USP.

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