República de Platão

Não se faz Justiça resolvendo apenas conflitos

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28 de novembro de 2008, 14h00

O presente artigo buscará resgatar na obra platônica “A República” elementos filosóficos que podem ser de grande auxílio para pensarmos o fenômeno jurídico na sociedade contemporânea. Nosso enfoque é a Justiça na cidade platônica, no que se refere à sua forte relação com a harmonia do todo social. Buscaremos esclarecer brevemente algumas idéias platônicas, passando pela estrutura geral do Estado ideal, para podermos vislumbrar a sua idéia de Justiça. Após tal análise, buscaremos apresentar a importância deste elemento platônico para pensarmos o fenômeno jurídico contemporaneamente.

Iniciamos com o esclarecimento da tese da função, apresentada no final do livro I da República, fundamental para compreendermos a cidade ideal platônica, como veremos. Em resumo, segundo esta tese todo objeto tem um certo fim, sendo definido pelo seu fim. Nenhum objeto tem mais do que uma função (a função da faca é cortar e mais nenhuma, por exemplo). Nada pode cumprir mais de uma função, pois não cumprirá de maneira adequada uma outra função. Com essa tese, Platão concluirá que cada classe social cumprirá apenas uma função.

Passemos agora para uma investigação sobre a Justiça. Em um primeiro momento, Platão não investigou a Justiça em cada indivíduo. Para investigar a Justiça em cada um, investigou primeiro a justiça na cidade. Partiu de um âmbito maior para depois analisar o âmbito menor (indivíduo). Propôs uma sociedade com três funções: produzir os alimentos e os objetos artesanais, proteger a cidade de invasores e governar a cidade. Como cada classe social pode possuir apenas uma função (tese da função), cada pessoa cumprirá apenas uma função, sendo produtor, guardião, ou governante.

Os governantes são filósofos, que conseguem “alcançar” o Mundo das Idéias, tendo “conhecimento”. Devem governar segundo seus conhecimentos, cabendo aos demais membros da sociedade agirem de acordo com os mandamentos do governante. Eles conhecem a essência de cada coisa, tornando as definições do sistema plenamente consistentes. A característica marcante desta classe social é o contato que tiveram com a Idéia de Bem que, em suma, é a consistência e a organização máxima das Idéias entre si. O bem máximo é o máximo de organização, é o sistema de idéias mais organizado possível. Tal conhecimento só é adquirido através do contato com o Mundo das Idéias.

Cabe aos governantes trazer para o mundo sensível a mais perfeita organização, sendo que a Justiça está fundamentalmente relacionada à organização da sociedade. A sociedade justa é aquela na qual todos cumprem o seu papel. Governam de acordo com as Idéias, em especial, a Idéia de Bem.

O papel dos guardiões é defender a cidade de possíveis ataques e o dos produtores é “produzir” comida, utensílios, e demais serviços necessários à sociedade.

Para cumprir bem o seu papel, cada parte da sociedade possui uma virtude correspondente: governantes — sabedoria; guardiões — coragem; produtores — temperança. Vale dizer, os produtores possuem apenas a virtude da temperança; os guardiões possuem a temperança e a coragem, em especial a coragem; os governantes, possuem as três virtudes, em especial a sabedoria.

Quanto ao cumprimento do que o governante entender necessário ser feito, são necessárias algumas considerações no que se refere à distinção entre conhecimento e opinião verdadeira.

Apenas os governantes são detentores do conhecimento, ou seja, apenas eles conhecem a cadeia completa de “razões”, enxergando a organização como um todo. Conhecimento, por exemplo, é saber porque é bom cumprir a lei e saber a conseqüência de cumprir a lei. Já a opinião verdadeira detém apenas um conteúdo proposicional, uma parte da cadeia de razões. Ou seja, é saber que deve cumprir a lei, sem saber a causa ou a conseqüência.

É a opinião verdadeira que acompanha os guardiões e os produtores, opinião que o governante passa para eles. É justo que eles se deixem persuadir pela opinião verdadeira, pois através dela vão agir com Justiça.

O Estado Ideal delineado na República é fundamental para compreendermos a tripartição da alma proposta por Platão. A tripartição da alma em Platão surge do delineamento do que mais tarde Aristóteles chamará de princípio de não-contradição e envolve uma teoria da ação humana. Segundo Platão, uma parte da pessoa não pode sofrer coisas distintas ao mesmo tempo em relação a um objeto.

Trata-se do conflito de desejos da alma, do querer e não querer alguma coisa ao mesmo tempo. Por exemplo, alguém que faz regime, sabe que não pode comer chocolate, e quer comer chocolate. A pessoa quer e não quer ao mesmo tempo a mesma coisa. Mas a mesma pessoa não pode querer e não querer a mesma coisa ao mesmo tempo em uma mesma parte sua. Portanto, são vontades de diferentes partes da alma. Platão separa a alma em três partes: concupiscível (de onde derivam as paixões), irascível (de onde derivam os instintos de agressão e ira) e racional (fonte do agir com virtude). Cada parte da alma possui uma virtude correspondente: concupiscível — temperança (moderação dos prazeres), irascível — coragem (saber o que temer e o que não temer), racional — sabedoria (capacidade de ter conhecimento).

Portanto, a tripartição da sociedade em três classes certamente guarda forte ligação com a tripartição da alma. A melhor sociedade é aquela que possui o sistema mais coeso, mais completo, na qual cada um cumpre a sua função. É quando a sociedade tripartite ganha uma unidade, sendo essa unidade origem da própria Justiça. A sociedade justa é aquela na qual todos convivem harmoniosamente.

Da mesma maneira ocorre na alma. Quando ela está no mundo das idéias ela é uma, só contendo a racionalidade. Quando a alma vem para o mundo físico e passa a habitar o corpo, ela se diversifica, formando mais duas partes, a parte irascível e a concupiscente. Essas duas partes são formadas apenas por causa do contato da alma com o mundo (só faz sentido uma parte que cuida dos prazeres e outra que cuida da irascibilidade, quando em contato com o mundo). A unidade da alma só se dá com o desenvolvimento das três virtudes da alma: coragem, temperança e sabedoria. A partir do desenvolvimento das três surge uma unidade na alma, como se as duas partes que foram criadas quando a alma passou a habitar o corpo se contraíssem novamente. Essa unidade, que se dá em torno da racionalidade é a justiça. A justiça da alma só ocorre com o desenvolvimento das três virtudes. Apenas o filósofo empreende tal desenvolvimento.

Pretendemos resgatar da obra platônica não o seu aspecto autoritário, de um Estado paternalista que decide a melhor maneira de viver de seus membros. Não defenderemos aqui o Mundo das Idéias, nem que apenas os filósofos podem governar. O que buscaremos resgatar da República é a vinculação da harmonia social com a ética e com o direito.

Destacamos do que pudemos verificar na República o importante aspecto da coesão social. A criação de uma sociedade justa depende da coesão de intenções e ações dos membros da sociedade. A justiça depende da construção de um ambiente harmônico de convivência.

Como vimos, a Justiça platônica está associada com o cumprimento de papéis sociais por parte dos membros de uma comunidade. Desse modo, a Justiça não está relacionada a um caso concreto. Não se faz Justiça resolvendo um conflito, esta só pode ser conquistada quando desvendados e eliminados os conflitos de uma sociedade como um todo.

O direito não pode servir meramente como fonte de soluções de pequenos conflitos. A atual organização do nosso sistema jurídico atomiza os conflitos (cada um com o seu problema) deixando quase sempre sem solução adequada problemas que se referem à comunidade como um todo.

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