Lavagem legalizada

Proposta para estimular repatriação é afronta ao contribuinte

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22 de novembro de 2008, 11h54

Editorial publicado neste sábado (22/11) no jornal Folha de S.Paulo.

Tempos de crise, afirma-se com freqüência, também são tempos de novas oportunidades. Ao que tudo indica, o clichê já experimenta, no Brasil, uma aclimatação peculiar. O senso da oportunidade não se traduz apenas na procura de campos inexplorados da atividade produtiva, mas também na prospecção de que tipos de favorecimento podem ser obtidos com o poder público.

O caso mais patente dessa agilidade em situações de crise pode ser reconhecido em projeto de lei recém-elaborado pelo senador Delcídio Amaral (PT-MS). Seu propósito é facilitar o repatriamento dos recursos enviados ilegalmente ao exterior. Por que não? Como na parábola do filho pródigo, haveria mais satisfação em acolher um sonegador desgarrado do que na contemplação dos muitos que cumprem suas obrigações com o fisco. Perdoe-se então — mediante a módica taxa de 8% no IR — quem errou pelos caminhos da evasão de divisas e do caixa dois.

Haveria, dizem os entusiastas da proposta, cerca de US$ 70 bilhões prontos para abandonar seu refúgio e iniciar vida nova abaixo do Equador, aliviando “patrioticamente” a carência de divisas em conjuntura de crise. O cálculo, como tudo nessa área, é dos mais duvidosos. Não há dúvida, entretanto, quanto às vantagens oferecidas para quem embarcar na operação.

Ouvidos pelo jornal “Valor”, sob condição de anonimato, alguns especialistas manifestaram-se com espantosa sinceridade sobre o tema. “É a oportunidade de esquentar um dinheiro frio no momento em que as taxas de juros estão altas”, disse um deles. “Sem falar na valorização do dólar que, no momento da conversão, resultará num patrimônio maior em reais”, acrescentou.

A lavagem oficial de dinheiro surge, assim, no momento certo, e não surpreende que conte com o beneplácito de setores do petismo. Desde que, em pleno escândalo do mensalão, passou a circular a tese de que caixa dois não é crime, o mundo da finança escusa só poderia receber olhares de cumplicidade e tolerância.

Antes motivo de desconversa, vexame e mesmo esparsas lágrimas, muito dinheiro do valerioduto assim voltaria, sem medo de ser feliz, ao país de Macunaíma. Não faltarão tapetes vermelhos para recebê-lo. Invocam-se, ademais, antigos traumas da gestão econômica para justificar a remessa ilegal de recursos. O clima é outro, notoriamente. Passaram-se os temores, falta lavar o dinheiro.

Nem tudo é otimismo, entretanto. Registra-se, entre possíveis beneficiários da medida, o receio de que o retorno à legalidade termine por constituí-los em alvo de atenções por parte da Receita Federal. É um desestímulo, por certo. Nada que as autoridades, entretanto, não possam resolver: imaginação não falta para favorecer quem costumeiramente burla a lei.

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