Regra sem exceção

Direito fundamental deve ser preservado em qualquer hipótese

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21 de novembro de 2008, 23h00

Busco apenas suscitar o debate a respeito da legitimidade de uma linha argumentativa bastante comum em solo brasileiro; e que tende à cabal aniquilação dos direitos fundamentais consagrados na Constituição da República Federativa do Brasil e em Tratados Internacionais de Direitos Humanos (artigo 5º, parágrafo 2º, CF).

Quem já não leu em algum acórdão ou sentença a asserção: ‘não há direitos absolutos’? No mais das vezes, depois desse chavão segue-se a conclusão de que tais e quais direitos – ainda que reconhecidos na teoria; ou para outros casos – não seriam reconhecidos e garantidos naquela situação específica, por restarem superados por interesses de suposta maior relevância para a Comunidade Política, segundo a ótica do julgador.

Essa concepção vai buscar um pretenso aparato teórico nas lições de Robert Alexy (Theorie der Grundrechte, 1.986) e de Ronald Dworkin (Taking rights seriously, 1.978), sem atentar – e aqui o punctum dolens – para os limites dos conceitos esposados pelos próprios autores da chamada ‘Teoria da Proporcionalidade’ como critério da solução de casos difíceis.

A relativização de garantias constitucionais tem sido aplicada para a solução de casos fáceis[1]; em que pese a sua construção teórica esteja destinada exclusivamente para a solução dos hard cases; apenas àqueles casos em que a Lei Fundamental não veicula expressa deliberação sobre o conflito de interesses.

É como se o julgador cogitasse: ‘dado que não há direitos absolutos, estou livre para sopesar interesses e decidir como me aprouver nesse caso específico’. Olvida-se que – no mais das vezes – os Constituintes já solucionaram conflitos entre valores políticos em jogo, dado que Direitos Fundamentais são justamente cláusulas de garantia, oponíveis às maiorias eventuais (e que têm sempre, portanto, um custo político[2]).

Direitos Fundamentais existem justo para garantir os indivíduos contra os mais relevantes interesses econômicos; coletivos; sociais. Do contrário, jamais seriam assegurados. Sempre é possível encontrar critérios de (in)conveniência oponíveis aos direitos fundamentais (crises econômicas; efetividade na repressão de delitos, etc.). Argumentos tais tendem a um retorno ao Utilitarismo de Jeremy Bentham e Stuart Mill e correspondente eliminação de vulneráveis[3], por supostos juízos de eficiência.

Não tenho a pretensão, aqui, de formular um exame cabal da distinção entre regras e princípios; nem – tampouco – quanto ao seu rendimento teórico-democrático. Limito-me a transcrever a distinção formulada por Robert Alexy, bastante conhecida:

“…

O ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas.

O âmbito das possibilidades jurídica é determinado pelos princípios e regras colidentes.

Já as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível.

Isso significa que a distinção entre regras e princípios é uma distinção qualitativa, e não uma distinção de grau. Toda norma é ou uma regra ou um princípio”[4].


Colho também a lição de Carlos Bernal Pulido,

“…

Deste modo, a forma jurídica mediante a qual se aplicam as regras é a subsunção. As regras contêm mandatos definitivos. Por essa razão, quando ocorre a conduta que prevêem, deve fazer-se o que as regras têm prescrito, nem mais, nem menos.

É dizer, a conduta deve ser subsumida sob o suposto de fato da regra pertinente e deve imputar-se a conseqüência prevista por esta. Pelo contrário, se as condições previstas pelo suposto de fato de uma regra não se apresentam, exata não deve ser aplicada. Somente desta maneira pode entender-se a forma de aplicada ‘tudo ou nada’.

Ao contrário, assegura Alexy, a forma característica de aplicação dos princípios é a ponderação. Os princípios não contêm mandatos definitivos, senão mandatos de otimização. Eles ordenam a realização na maior medida possível, tendo em conta as possibilidades jurídicas e fáticas que dependem das razões que levam ao sentido oposto.

Na ponderação, tem-se em conta estas razões fáticas e jurídicas que jogam contra e se determina com exatidão, em que medida é fática e juridicamente possível realizar um princípio”[5].

Robert Alexy destaca, portanto, que eventual conflito entre regras deve ser solucionado mediante a criação de um critério de exceção aplicável ao caso; ou pela declaração da invalidez de um dos preceitos conflitantes. Ambas não podem subsistir.

Em outras palavras, tratando-se de antagonismo entre regras, o julgador estará vinculado a sobre-preceitos para solução do caso: (a) regras constitucionais invalidam regras infraconstitucionais; (b) regras posteriores ab-rogam regras anteriores; (c) regras especiais prevalecem sobre regras gerais, etc.

Já o conflito entre princípios (mandados de otimização) é solucionado de uma forma distinta.

“…

As colisões de princípios devem ser solucionadas de maneira totalmente distinta.

Quando dois princípios estão em colisão, um dos dois princípios tem que ceder ante o outro. Mas isso não significa declarar inválido o princípio desprezado nem que no princípio desprezado haja que ser introduzida uma cláusula de exceção. O que vai determinar qual o princípio que deve ceder serão as circunstâncias. Isso quer dizer que, nos casos concretos, os princípios têm diferentes pesos e que prevalece o princípio com maior peso[6].

Ou melhor,

“…

Princípios são mandamentos de otimização em face das possibilidades jurídicas e fáticas.

A máxima da proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, exigência de sopesamento, decorrente da relativização em face das possibilidades jurídicas. Quando uma norma de direito fundamental com caráter de princípio colide com um princípio antagônico, a possibilidade jurídica para a realização dessa norma depende do princípio antagônico.

Para se chegar a uma decisão é necessária um sopesamento nos termos da lei de colisão. Visto que a aplicação de princípios válidos – caso sejam aplicáveis – é obrigatória, e visto que para essa aplicação, nos casos de colisão, é necessário um sopesamento, o caráter principiológico das normas de direito fundamental implica a necessidade de um sopesamento quando elas colidem com princípios antagônicos.


Isso significa, por sua vez, que a máxima da proporcionalidade em sentido estrito é dedutível do caráter principiológico das normas de direito fundamental.

A máxima da proporcionalidade em sentido estrito decorre do fato de princípios serem mandamentos de otimização em face das possibilidades jurídicas. Já as máximas de necessidade e de adequação decorrem da natureza dos princípios como mandamentos de otimização em face das possibilidades fáticas”[7].

Deixo de apreciar as críticas lançadas contra essa argumentação. Muitas das quais, por sinal, enfrentadas por Robert Alexy em pp. 109-120 da sua principal obra[8]. Em alguns casos, a construção pode tender ao decisionismo judicial; ensejando a crítica à ‘jurisprudência autônoma’ (inovadora na Ordem Jurídica), como se o Direito se confundisse com as decisões judiciais (Alf Ross).

Passando ao largo desse tema, apenas destaco que muitas disposições normativas – comumente denominadas de ‘princípios fundamentais’ pela dogmática constitucional – veiculam verdadeiras regras, caso se aceite a catalogação de Alexy. Tanto por isso, são insuscetíveis de relativização.

Como o próprio Robert Alexy reconhece, o chamado ‘princípio da legalidade’ é uma regra, porquanto não é um mandato de otimização. É um dispositivo de ‘dois valores’ (oito ou oitenta – cumpre-se ou não), que não admite aplicação graduável:

“…

A existência de normas de alto grau de generalidade que não são princípios demonstra que o critério da generalidade é apenas relativamente correto.

O enunciado normativo ‘só serão penalmente puníveis os atos que a lei previamente definir como crimes’ (artigo 103, parágrafo 2º da Constituição alemã, parágrafo 1º do Código Penal alemão) pode dar ensejo a uma série de problemas interpretativos, e a ele subjaz um princípio ao qual se pode recorrer para sua interpretação.

Mas esse enunciado estabelece uma regra, já que aquilo que ele exige é algo que sempre ou é cumprido, ou não. Como essa norma é freqüentemente caracterizada como princípio, ela é um exemplo dos casos em que a teoria dos princípios aqui defendida se desvia do uso corrente da linguagem”[9].

Inúmeros preceitos – comumente denominados de princípios, e como tais submetidos à ponderação pelo Judiciário (com relativização indevida de garantias) – são regras constitucionais. Não estão (não podem estar) submetidas à máxima da proporcionalidade, sob pena de simples esvaziamento da eficácia constitucional.

É falaciosa, por exemplo, a tentativa de submeter a norma do artigo 5º, inciso LVI, CF (vedação de provas obtidas por meios ilícitos) à ponderação de princípios. Simplesmente, porque essa é uma regra (que decorre do princípio do devido processo). Não é um mandato de otimização, que admita cumprimento gradual.

Tampouco se pode contemporizar com as garantias de prazos processuais para a Defesa, sob o apanágio de um suposto princípio fundamental da efetividade da jurisdição penal (compreendida, equivocadamente por alguns magistrados, como efetividade da pretensão punitiva estatal).

Sob o regime democrático-constitucional, não se pode cobrar tributos sem Lei que previamente veicule a regra matriz de incidência; por maior que seja a crise econômica. Não há como cumprir ‘mais ou menos’ o disposto no artigo 150, inciso I, CF (salvo regras de exceção veiculadas pela própria Lei Fundamental, p.ex., artigo 153, parágrafo 1º, CF).


Ao contrário, a relativização destes preceitos implicará em descumprimento de texto expresso, cujo conteúdo semântico mínimo não admite a leitura que, por vezes, se busca deles extrair.

Como explica o Min. Sepúlveda Pertence,

“…

Da explícita proscrição da prova ilícita, sem distinções quanto ao crime objeto do processo (CF, artigo 5º, LVI), resulta a prevalência da garantia nela estabelecida sobre o interesse na busca, a qualquer custo, da verdade real no processo: conseqüente impertinência de apelar-se ao princípio da proporcionalidade – à luz de teorias estrangeiras inadequadas à ordem constitucional brasileira – para sobrepor, à vedação constitucional da admissão da prova ilícita, considerações sobre a gravidade da infração penal objeto da investigação ou da imputação”[10].

Questão apontada, igualmente, por Manuel da Costa Andrade, com amparo em Wolter e em Winfried Hassemer,

“…

Em todos os casos que contendam com a dignidade humana, não poderão ser chamados à ponderação os interesses por uma justiça penal eficaz.

Quem o fizesse não tomaria a sério nem a inviolabilidade da dignidade humana nem um processo penal vocacionado para a proteção dos direitos fundamentais. Pois, na situação de criminalidade mais grave uma tal ponderação de interesses redundaria sistematicamente na frustração da tutela dos direitos fundamentais[11].

Ademais, Robert Alexy também enfatiza que – no geral – o nível das regras constitucionais prevalece sobre o nível dos princípios, igualmente constitucionais.

“…

A exigência de se levar a série as determinações estabelecidas pelas disposições de direitos fundamentais, isto é, de levar a sério o texto constitucional, é uma parte desse postulado, porque – dentre outras razões – tanto as regras estabelecidas pelas disposições constitucionais quanto os princípios também por ela estabelecidos são normas constitucionais.

Isso traz à tona a questão da hierarquia entre os dois níveis. A resposta a essa pergunta somente pode sustentar que – do ponto de vista da vinculação à Constituição – há uma primazia do nível das regras.

Ainda que o nível dos princípios também seja o resultado de um ato de positivação, ou seja, de uma decisão, a decisão a favor dos princípios passível de entrar em colisão deixa muitas questões em aberto, pois um grupo de princípios pode acomodar as mais variadas decisões sobre relações de preferência e é, por isso, compatível com regras bastante distintas.

Assim, quando se fixam determinações no nível das regras, é possível afirmar que se decidiu mais que a decisão a favor de certos princípios.

Mas a vinculação à Constituição significa uma submissão a todas as decisões do Legislador Constituinte. É por isso que a determinações estabelecidas no nível das regras têm primazia em relação a determinações alternativas baseadas em princípios[12].

Há postulados constitucionais de conteúdo inequívoco. Opções políticas já empreendidas, cujo conteúdo não pode ser alvo de tergiversação pelo Judiciário[13]. Quando o texto apontar para o Norte, o interprete não pode concluir que haja norma endereçada para o Sul. A vingar entendimento distinto, não tardará que a pena de morte venha a ser aplicada em território brasileiro, ao argumento de que não há vedações constitucionais absolutas.


Registro, p.ex., precedente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que determinou a realização de monitoramento telefônico em processo civil (!) ao amparo do postulado da proporcionalidade:

“…

EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA DO DEVEDOR DE ALIMENTOS. CABIMENTO.

Tentada a localização do executado de todas as formas, residindo este em outro Estado e arrastando-se a execução por quase dois anos, mostra-se cabível a interceptação telefônica do devedor de alimentos.

Se por um lado a Carta Magna protege o direito à intimidade, também abarcou o princípio da proteção integral a crianças e adolescentes. Assim, ponderando-se os dois princípios sobrepõe-se o direito à vida dos alimentados. A própria possibilidade da prisão civil no caso de dívida alimentar evidencia tal assertiva.

Tal medida dispõe inclusive de cunho pedagógico para que outros devedores de alimentos não mais se utilizem de subterfúgios para safarem-se da obrigação.

Agravo provido”[14].

Cuida-se, concessa venia, de um típico caso de ‘deturpação’ de regras constitucionais em princípios, com o deliberado propósito de submetê-lo à máxima da proporcionalidade. Recorde-se que a Constituição admite o monitoramento telefônico apenas em casos excepcionais e tão somente para investigações criminais. Não há espaço para aplicação da medida em feitos civis, por mais relevantes que sejam.

Artigo 5º, inciso XII, CF/88 – É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.

A Legislação infraconstitucional tampouco admite – como não poderia deixar de ser – a medida para fins civis ou administrativos. Vê-se, pois, que a confusão entre o que sejam (a) regras e (b) princípios pode sinalizar para um crescente arbítrio judicial, e conseqüente esvaziamento da normatividade constitucional.

Tanto por isso – e abstraindo o caso concreto – louvo o insigne voto do Min. Eros Roberto Grau proferido no HC 95.009-4/SP, dada a clareza e precisão com que examinou o tema:

“…

Tenho criticado aqui — e o fiz ainda recentemente (ADPF 144) – a banalização dos ‘princípios’ [entre aspas] da proporcionalidade e da razoabilidade, em especial do primeiro, concebido como um ‘princípio’ superior, aplicável a todo e qualquer caso concreto, o que conferiria ao Poder Judiciário a faculdade de ‘corrigir’ o legislador, invadindo a competência deste. O fato, no entanto, é que proporcionalidade e razoabilidade nem ao menos são princípios – porque não reproduzem as suas características – porém postulados normativos, regras de interpretação/aplicação do direito".

No caso de que ora cogitamos esse falso princípio estaria sendo vertido na máxima segundo a qual não há direitos absolutos. E, tal como tem sido em nosso tempo pronunciada, dessa máxima se faz gazua apta a arrombar toda e qualquer garantia constitucional. Deveras, a cada direito que se alega o juiz responderá que esse direito existe, sim, mas não é absoluto, porquanto não se aplica ao caso. E assim se dá o esvaziamento do quanto construímos ao longo dos séculos para fazer, de súditos, cidadãos.


Diante do inquisidor não temos qualquer direito. Ou melhor, temos sim, vários, mas como nenhum deles é absoluto, nenhum é reconhecível na oportunidade em que deveria acudir-nos.

Primeiro essa gazua, em seguida despencando sobre todos, a pretexto da "necessária atividade persecutória do Estado", a "supremacia do interesse público sobre o individual". Essa premissa que se pretende prevaleça no Direito Administrativo — não obstante mesmo lá sujeita a debate, aqui impertinente — não tem lugar em matéria penal e processual penal. Esta Corte ensina (HC 80.263, relator Ministro Ilmar Galvão) que a interpretação sistemática da Constituição "leva à conclusão de que a Lei Maior impõe a prevalência do direito à liberdade em detrimento do direito de acusar".

Essa é a proporcionalidade que se impõe em sede processual penal: em caso de conflito de preceitos, prevalece o garantidor da liberdade sobre o que fundamenta sua supressão. A nos afastarmos disso retornaremos à barbárie[15].

Não desconheço que há distinção entre o veículo normativo (Constituição; Lei; Decretos) e as normas. Estas somente são conhecidas a partir da leitura sistemática da Constituição; a compreensão holística pretendida por Gadamer. Ainda assim, igualmente certo que não se pode desconsiderar o conteúdo semântico mínimo; ou – ainda – reconhecer a existência de tais e quais direitos fundamentais, mas apenas olvidá-los em casos pontuais, fundados em suposta gravidade dos interesses comunitários sob tutela. Esquece-se que o maior de todos os interesses comunitários – a vingar a Letra da Constituição – é que os Direitos Fundamentais sejam resguardados; esse é o interesse público que deve ser salvaguardado em qualquer hipótese.

Caso vingue, essa premissa tópica acabará por esvaziar cabalmente os Direitos Fundamentais; fazendo letra morta a Constituição que garante a todos os indivíduos contra o arbítrio do Estado (o pior de todos os arbítrios, pois tende a se reproduzir em escala).

Essa a provocação para salutar e oportuno debate.


[1] Para cuja solução o intérprete deve se socorrer à subsunção das regras constitucionais. Carlos Bernal Pulido. El principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales. 3ª ed. Madrid: Centro de estudios políticos y constitucionales, 2.007, p. 595.

[2] Transcrevo a lição de Luigi Ferrajoli: “… Chego, assim, à quinta ordem de questões indicadas ao começo: as relacionadas em torno à minha concepção da democracia, certamente distinta – senão oposta – à concepção politicista e majoritarista que configura basicamente a democracia como vontade do povo e, em seu nome, da maioria dos representantes. Desenvolverei a este propósito duas considerações preliminares. A primeira é de caráter descritivo e tem que ver com o objeto do estudo da teoria e da ciência jurídica: uma teoria jurídica da democracia dotada de capacidade explicativa não pode hoje ignorar os limites e os vínculos constitucionais ao princípio da maioria que existem já em quase todos os ordenamentos democráticos. Limites e vínculos que, nos agradem ou não, são um traço empírico de tais ordenamentos dos quais uma teoria da democracia deve dar conta. Salvo caso se queira negar, com isso, o caráter democrático das atuais democracias constitucionais. A segunda consideração é de caráter valorativo. Estes limites e estes vínculos são, a meu entender, a sua vez democráticos, já que consistem em direitos fundamentais, que são direitos de todos, e fazem referência, portanto, ao povo – como conjunto de pessoas de carne e osso que o compõem – em um sentido direto e consistente de quanto o faz a própria representação política. São contra-poderes, fragmentos de soberania popular em mãos de todos e cada um, em ausência dos quais a democracia mesma, com as trágicas experiências do século XX têm mostrado, pode ser destruída por maiorias eventuais”. (Ferrajoli, Luigi. Garantismo: una discusión sobre derecho y democracia. Madrid: Trotta, 2.006, pp. 99-100).


[3] John Stuart Mill. Utilitarianism, on liberty, considerations on representative government. London: Everyman Paperback Classics, 2.001. A primeira edição pela Everyman Library foi divulgada em 1.910. Leia-se também Ian Shapiro. The Moral Foundations of Democracy. New Haven: Yale University Press, 2003, formulando segura crítica ao Utilitarismo. Também sobre o tema, leia-se Maria da Conceição Ferreira da Cunha. Constituição e crime: uma perspectiva da criminalização e da discriminalização. Porto: Universidade Católica Portuguesa, 1.995, pp. 34-35.

[4] Robert Alexy. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. SP: Malheiros, 2.008, pp. 90-91, grifei. Na edição espanhola Teoria de los Derechos Fundamentales. Madri: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2001, pp. 87-88. O conceito de Alexy aproxima-se da construção de Ronald Dworkin, para quem “… Las reglas son aplicables por completo o no son aplicables en absoluto para la solución de un caso determinado” (Carlos Bernal Pulido. El principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales. 3ª ed. Madrid: Centro de estudios políticos y constitucionales, 2.007, p. 576). Para Dworkin, “… Los principios no establecen con toda claridad cuáles son las circunstancias de la realidad ante las cuales deben ser aplicados, ni cuáles son sus excepciones, así como tampoco determinan las consecuencias jurídicas que deben producirse tras su aplicación. Un principio es sólo una razón a favor de argumentaciones encaminadas en cierto sentido, pero no implica necesariamente una decisión concreta” (Dworkin apud Carlos Bernal Pulido. El principio de proporcionalidad, p. 577). Leia-se também Suzana de Toledo Barros. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. 2ª ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2.000. Humberto Ávila. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4ª ed. SP: Malheiros, 2.005 e Robert Alexy, Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. 2ª ed. SP: Landy Editora, 2.005.

[5] Carlos Bernal Pulido. El principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales. 3ª ed. Madrid: Centro de estudios políticos y constitucionales, 2.007, p. 580, tradução livre.

[6] Letícia Balsamão Amorim. ‘A distinção entre regras e princípios segundo Robert Alexy’ in Revista de Informação Legislativa. Brasília a.42 n.165 jan/mar.2005, p. 127.

[7] Robert Alexy. Teoria dos direitos fundamentais, pp. 118-119. Anote-se que Alexy sustenta que todo conflito de princípios é solucionado com a elaboração – para o caso concreto – de uma regra cujo teor é resultado da aplicação da máxima da proporcionalidade naquela situação empírica específica (o que denomina de ‘duplo caráter das normas de direitos fundamentais’. Alexy, Obra, p. 141. Apenas registro que aludidas construções não podem se prestar a um decisionismo judicial, como o próprio Alexy tem reconhecido, ao enfatizar – como indico adiante – que as regras constitucionais devem ser aplicadas sem contemporizações, no geral. Também pontuo que a construção de Alexy não se mostra incompatível com a proposta de Hans Kelsen, porquanto parte de uma concepção semântica das normas, semelhante à empregada por Riccardo Guastini. Das fontes às normas, pp. 57 e ss. D’outro tanto, anoto ainda que a construção de Dworkin pode ser reputada como positivista, na medida em que acredita na existência de soluções corretas para cada conflito jurídico. Guastini, Obra, p. 161 e José Renato Graziero Cella. Positivismo jurídico no século XIX: relações entre direito e moral do ancien régime à modernidade, disponível na internet. http://www.cella.com.br/conteudo/Hespanha-Arno-Artigo.pdf> acesso em 30 de agosto de 2.008.


[8] Na edição brasileira. Na tradução espanhola, confiram-se as páginas 104-115.

[9] Robert Alexy. Teoria dos direitos fundamentais, p. 109.

[10] Brasil, STF, HC 80.949/RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU de 14.12.2001, p. 26, omiti o restante da ementa.

[11] Manuel da Costa Andrade, Sobre as proibições de prova em matéria penal. Coimbra: Coimbra editora, 2.006, p. 38. Esse texto também foi citado pelo Ministro Sepúlveda Pertence, ao julgar o pedido de HC 79.512/RJ, DJU de 16/05/2003, p. 92.

[12] Robert Alexy, Teoria dos direitos fundamentais, p. 140, grifei. Alexy prossegue, no texto, sustentando que o Tribunal Constitucional Federal alemão não tem reputado, porém, que a primazia do nível das regras constitucional seja absoluta, porquanto a leitura do texto constitucional deve ser promovida à luz dos princípios. Segundo Alexy, “… A relação de primazia entre os dois níveis não é, portanto, uma primazia estrita. Na verdade, aplica-se a regra de precedência, segundo a qual o nível das regras tem primazia em face do nível dos princípios, a não ser que as razões para outras determinações que não aquelas definidas no nível das regras sejam também fortes que também o princípio da vinculação ao teor literal da Constituição possa ser afastado. A questão da força dessas razões é objeto de argumentação constitucional” (Obra,p . 141). Não procede, porém, a alegação de Alexy. Afinal, não se pode converter a vinculação à Constituição em um princípio suscetível de ponderação. A chegar a extremos, o interprete decidiria quando estaria ou não vinculado à Constituição, tornando-a dependente da ‘boa vontade’ dos interpretes. E quem nos protege da ‘boa vontade dos bons’?

[13] Carlos Bernal Pulido. El principio da proporcionalidad, pp. 594-596.

[14] Estado do Rio Grande do Sul, TJRS, 7ª Câmara Cível, Agravo de instrumento n. 70018683508, rel. Des. Maria Berenice Dias, DJRS 05.04.2007, decisão unânime, grifei a ementa.

[15][15] http://www.conjur.com.br/pdf/hc_95009.pdf, acesso em 20 de novembro de 2.008.

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