Conflito de competência

Súmula 363 do Superior Tribunal de Justiça é inconstitucional

Autor

  • Marco Aurélio Paz de Oliveira

    é servidor público do Rio de Janeiro formado pela Academia da Força Aérea (AFA) graduando em Direito na Unisuam/RJ e pós-graduando em Direitos Humanos pela Universidade Candido Mendes/Senasp.

21 de novembro de 2008, 10h18

A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça aprovou o Projeto 695, que criou a Súmula 363. Segundo o órgão de imprensa do STJ, a nova súmula, relatada pelo ministro Ari Pargendler, vai resolver diversos conflitos de competência entre tribunais em julgamentos de cobrança de honorários de profissionais liberais. O novo enunciado define que a competência para processar e julgar ação de cobrança de profissionais liberais contra clientes é da Justiça Estadual comum e não da justiça especializada trabalhista, conforme publicado em http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=89621.

Assim dispõe a súmula 363: Compete à Justiça estadual processar e julgar a ação de cobrança ajuizada por profissional liberal contra cliente.

Antes de abordarmos diretamente a questão da inconstitucionalidade do verbete sumular cabe fazermos algumas considerações a respeito da distribuição de competências entre os diversos órgãos do Poder Judiciário. Tal distribuição faz-se, em regra, pela natureza das causas que cada um desses “segmentos” pode conhecer. Tal critério é afeto à relação jurídica material que constitui o fato, fixada em decorrência da causa de pedir e do pedido (conforme Carlos Henrique Bezerra Leite, em Curso de Direito Processual do Trabalho, 3ª ed., São Paulo: Ltr, 2005. p.141), não é demais consignar que relação jurídica material é substancialmente diferente de Direito material utilizado para o deslinde do conflito. Nesse sentido a composição plenária do STF já havia firmado entendimento em acórdão de lavra do Ministro Sepúlveda Pertence (STF CJ 6.959-6 DF – Ac. Sessão Plenária, 23.05.90 – Rel. Ministro Sepúlveda Pertence – Revista Ltr. 59-10/1370).

À determinação da competência da Justiça do Trabalho não importa que dependa a solução da lide de questões de Direito Civil, mas sim, no caso, que a promessa de contratar, cujo alegado conteúdo é o fundamento do pedido, tenha sido feita em razão da relação trabalhista, inserindo-se no contrato de trabalho.

A Justiça do trabalho não é mais unicamente a Justiça da CLT, a julgar e conciliar as relações jurídicas em função da pessoa, empregador e empregado. Essa evolução foi inevitável e até esperada. Há aproximadamente duas décadas, o núcleo formador do Direito do Trabalho (o contrato individual de trabalho) dava sinais inequívocos de que marchava a passos largos para seu esvaziamento (conforme Antônio Álvares da Silva, em “Competência penal trabalhista”. São Paulo: Ltr, 2006. p.13). O desemprego já era realidade global, o trabalho subordinado começava a perecer e essa Justiça especializada era vulgarmente vista como simples “acertadora” de contas entre empregadores e empregados. Inconcebível, pois, manter tão grandiosa estrutura, “capilarizada” por praticamente todo o território nacional, para realizar função incompatível com sua importância histórica e logística.

E nisso reside a grande resistência às novas competências da Justiça obreira: qual o alcance da expressão “relação de trabalho”? Relação de trabalho é expressão genérica que se refere a todas as relações jurídicas de prestação de serviço fundada no labor humano (conforme Maurício Godinho Delgado, em “Curso de direito do trabalho”, 4ª ed., São Paulo: Ltr, 2005, p.285). Assim, relação de emprego, trabalho eventual, trabalho autônomo, avulso e outras modalidades de pactuação de labor humano são espécies do gênero relação de trabalho.

A expressão “trabalhadores e empregadores” subtraída da Constituição pela Emenda Constitucional 45/2004, atualmente grafada como “as ações oriundas da relação de trabalho” (inciso I) gerou a controvérsia em torno da visível ampliação das competências juslaborais.

A Constituição distribui às justiças especiais, especificamente, um conjunto de atribuições, cabendo às “justiças comuns” todas as demais competências residuais. Assim foi feito, pois o legislador reconheceu, em determinadas matérias, suficiente importância para a criação de um órgão com atribuições específicas e especiais. E não é só isso. Todas as vezes que houver concurso entre as atribuições das Justiças comum e especial, prevalecerá esta conforme exegese do artigo 78, inciso IV, do Código de Processo Penal. Reconhece-se, no sistema processual pátrio, a necessidade de que questões complexas sejam analisadas por órgão especializado. Nesse sentido, é importante destacar excerto do voto do ministro Carlos Brito no Conflito de Competência 7.204-1, de Minas Gerais:

Com efeito, estabelecia o caput do artigo 114, em sua redação anterior, que era da Justiça do Trabalho a competência para conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, além de outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho. Ora, um acidente de trabalho é fato ínsito à interação trabalhador/empregador. A causa e seu efeito. Porque sem o vínculo trabalhista o infortúnio não se configuraria; ou seja, o acidente só é acidente de trabalho se ocorre no próprio âmago da relação laboral. A possibilitar a deflagração de efeitos morais e patrimoniais imputáveis à responsabilidade do empregador, em regra, ora por conduta comissiva, ora por comportamento omissivo.

Como de fácil percepção, para se aferir os próprios elementos do ilícito, sobretudo a culpa e o nexo causal, é imprescindível que se esteja mais próximo do dia-a-dia da complexa realidade laboral. Aspecto em que avulta a especialização mesma de que se revestem os órgãos judicantes de índole trabalhista. É como dizer: órgãos que se debruçam cotidianamente sobre os fatos atinentes à relação de emprego (muitas vezes quanto à própria existência dela) e que por isso mesmo detêm melhores condições para apreciar toda a trama dos delicados aspectos objetivos e subjetivos que permeiam a relação de emprego (grifo nosso). Daí o conteúdo semântico da Súmula 736, deste Excelso Pretório, assim didaticamente legendada: “Compete à Justiça do Trabalho julgar as ações que tenham como causa de pedir o descumprimento de normas trabalhistas relativas à segurança, higiene e saúde dos trabalhadores”.

Em resumo, a relação de trabalho é a invariável matriz das controvérsias que se instauram entre trabalhadores e empregadores. Já a matéria genuinamente acidentária, voltada para o benefício previdenciário correspondente, é de ser discutida com o INSS, perante a Justiça comum dos Estados, por aplicação da norma residual que se extrai do inciso I do artigo 109 da Carta de Outubro.

Nesse rumo de idéias, renove-se a proposição de que a nova redação do artigo 114 da Lex Máxima só veio aclarar, expletivamente, a interpretação aqui perfilhada. Pois a Justiça do Trabalho, que já era competente para conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, além de outras controvérsias decorrentes da relação trabalhista, agora é confirmativamente competente para processar e julgar as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho (inciso VI do artigo 114).

Acresce que a norma fundamental do inciso IV do artigo 1º da Constituição Republicana ganha especificação trabalhista em vários dispositivos do artigo 7º, como o que prevê a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança (inciso XXII), e o que impõe a obrigação do seguro contra acidente do trabalho, sem prejuízo, note-se, da indenização por motivo de conduta dolosa ou culposa do empregador (inciso XXVIII). Vale dizer, o direito à indenização em caso de acidente de trabalho, quando o empregador incorrer em dolo ou culpa, vem enumerado no artigo 7º da Lei Maior como autêntico direito trabalhista. E como todo direito trabalhista, é de ser tutelado pela Justiça especial, até porque desfrutável às custas do empregador (nos expressos dizeres da Constituição).

Tudo comprova, portanto, que a longa enunciação dos direitos trabalhistas veiculados pelo artigo 7º da Constituição parte de um pressuposto lógico: a hipossuficiência do trabalhador perante seu empregador. A exigir, assim, interpretação extensiva ou ampliativa, de sorte a autorizar o juízo de que, ante duas defensáveis exegeses do texto constitucional (artigo 114, como penso, ou artigo 109, I, como tem entendido esta Casa), deve-se optar pela que prestigia a competência especializada da Justiça do Trabalho.

Por todo o exposto, e forte no artigo 114 da Lei Maior (redações anterior e posterior à EC 45/04), concluo que não se pode excluir da competência da Justiça Laboral as ações de reparação de danos morais e patrimoniais decorrentes de acidente de trabalho, propostas pelo empregado contra o empregador. Menos ainda para incluí-las na competência da Justiça comum estadual, com base no artigo 109, inciso I, da Carta de Outubro.

No caso, pois, julgo improcedente este conflito de competência e determino o retorno dos autos ao egrégio Tribunal Superior do Trabalho, para que proceda ao julgamento do recurso de revista manejado pelo empregador. É o meu voto.

E nesse ponto não há divergência, como bem salientou o eminente ministro. A Justiça do Trabalho é uma Justiça especializada. A relação de trabalho é relação jurídica complexa e de competência da jurisdição laboral devendo ser dada, nas palavras do relator, interpretação extensiva ou ampliativa à expressão.

Acrescente-se ainda à argumentação a teoria utilizada pelo ministro Cezar Peluso, também extraída do CC 7.204-1. Em apertada síntese, se decidia em junho de 2005, em conflito negativo de competência suscitado pela mais alta corte do judiciário trabalhista brasileiro, a competência para processar e julgar ação indenizatória de danos patrimoniais e morais decorrentes de acidente de trabalho proposta por empregado contra empregador, senão vejamos:

(…) Recebi, depois, um trabalho muito bem fundamentado e muito bem documentado de um juiz do TRT de Minas Gerais, Dr. Sebastião Geraldo de Oliveira, cujas considerações levaram-me a rever aquela posição. E tal posição que teve modesta influência no teor do acórdão, baseou-se no princípio fundamental da chamada unidade de convicção, segundo o qual, por causa dos graves riscos de decisões contraditórias, sempre ininteligíveis para os jurisdicionados e depreciativas para a Justiça, não convém que causas, com pedidos e qualificação jurídicas diversos, mas fundadas no mesmo fato histórico, sejam decididas por juízes diferentes. (…) É que a revisão do tema me convenceu que tanto as ações acidentárias, evidentemente oriundas da relação de trabalho, como, sem exceção, todas as demais ações resultantes da relação de trabalho devam, em nome do mesmo princípio, ser atribuídas à Justiça do Trabalho (sem grifo no original). A especialização e a universalidade desta já recomendariam, quando menos em teoria, tal solução, por razões mais do que óbvias, como acabou de demonstrar o voto do Ministro Carlos Britto.

A questão da inconstitucionalidade

O que se pretende com a nova súmula é transferir para a Justiça Cível comum a competência constitucional atinente à Justiça laboral, conforme expresso no artigo 114, inciso I, da CRFB/88, com redação dada pela Emenda Constitucional 45/04, a partir de uma mutação Constitucional às avessas, uma vez que pretende substituir um texto por outro, ao invés de atribuir uma nova norma a esse texto. Passamos de: compete à Justiça do Trabalho processar e julgar as ações oriundas da relação de trabalho, a: compete à Justiça do Trabalho processar e julgar as ações oriundas da relação de trabalho, salvo aquelas entre profissional liberal e cliente.

Em direção oposta, a Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho, em parecer elaborado por Feliciano (“Da competência penal da Justiça do Trabalho”. Jus Navegandi, Teresina, ano 10, n.1010, abr. 2006. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/pecas/texto.asp?id=676http://jus2.uol.com.br/pecas/texto.asp?id=676), juiz titular da Vara do Trabalho de Guaratinguetá, doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, assim consignou:

Por conseguinte, não se pode mais afirmar que a competência material da Justiça do Trabalho esteja adstrita às lides tipicamente trabalhistas, i.e., à observância/inobservância de direitos trabalhistas “strito sensu”(artigo 7 da CRFB). A jurisprudência consolidada no âmbito dos tribunais superiores e o “telos” da reforma do Poder Judiciário (EC 45/04) demonstram, à saciedade, que a Justiça do Trabalho deixou de ser a “Justiça do Trabalhador” (ou quiçá a “Justiça do empregado”) e passou a ser, propriamente, a Justiça do Trabalho. De uma perspectiva tuitiva, “a parte subjecti” (a do trabalhador subordinado) evoluiu para uma perspectiva funcional, “a parte objecti” (a do trabalho como projeção da personalidade humana), com “vis atractiva” para toda a matéria concernente ao trabalho humano de fundo consensual (elemento volitivo), com pessoalidade mínima (elemento tendencial) e caráter continuativo ou coordenado (elemento funcional).

Por isso, a afirmação “a norma é (sempre) produto da interpretação do texto” ou de que o “intérprete sempre atribui sentido (Sinngebung) ao texto”, nem de longe pode significar a possibilidade desse – o intérprete – poder “dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa”, atribuindo sentidos de forma arbitrária aos textos (conforme Lênio Luiz Streck, em “Verdade e Consenso”, Lúmen Júris: Rio de Janeiro, 2008. p.141). Tal postura é um resgate da superada filosofia da consciência (metafísica moderna), no qual o sentido está na mente do intérprete, embebido em decisionismos incompatíveis com o novo Estado Democrático de Direito.

Vê-se, pois, que o verbete é inconstitucional porque suprime da seara da Justiça do Trabalho competência para julgar e processar as ações oriundas da relação de trabalho. Esperamos sim que a doutrina se importe com o que decide o Superior Tribunal de Justiça, já que o ex-presidente dessa corte, em recente decisão, assim se pronunciou:

Não me importa o que pensam ou doutrinadores. Enquanto for ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade da minha jurisdição. O pensamento daqueles que não são ministros deste Tribunal importa como orientação. A eles, porém, não me submeto. Interessa conhecer a doutrina de Barbosa Moreira ou Athos Carneiro. Decido, porém, conforme minha consciência.(…). Ninguém nos dá lições. Não somos aprendizes de ninguém.

(AgReg em ERESP 279.889-AL)

Contudo, o que a parte pode fazer quando se sentir prejudicada em virtude da ação de cobrança de honorários ser processada e julgada pela Justiça Comum por estrita obediência à Súmula 363? Exemplificando. O perito assistente técnico (conforme Leite, Op.cit., p.448: “Quanto aos honorários do assistente técnico, o TST editou o enunciado n.341, segundo o qual ‘a indicação do perito assistente é faculdade da parte, a qual deve responder pelos respectivos honorários, ainda que vencedora no objeto da perícia’”), que ajuizou ação de cobrança de honorários na Justiça do Trabalho em face da parte que o indicou nos autos de uma ação trabalhista e que tem os autos remitidos ao juízo (in) competente, na forma do artigo 113, parágrafo 2 do CPC, de que forma pode hostilizar tal decisão?

Temos, no caso apresentado, duas possibilidades e um mesmo resultado prático. Primeiro, o Juízo Cível recebe os autos e se julga incompetente para conhecer a causa. Tal situação remete-nos ao STJ para solução do conflito negativo instaurado, conforme dispõe a Constituição em seu artigo 104, inciso I, alínea “d” (entre juízes vinculados a tribunais diversos). Voltamos, logicamente, à aplicação da Súmula 363. A segunda possibilidade, o Juízo Civil processa e julga o feito. A situação é absurda. O assistente técnico do exemplo deve buscar a Justiça comum para ajuizar seu pleito, e tudo em virtude de enunciado sumular.

Há, contudo, um remédio jurídico para o deslinde da questão, qual seja: a reclamação para o Supremo Tribunal Federal, preconizada no artigo 102, inciso I, alínea l, da vigente Carta política, com fito de deslocamento da competência para Justiça obreira. E aqui a legitimação é da parte interessada e do Ministério Público do Trabalho — Nesse sentido, ver Pedro Lenza, em “Direito Constitucional esquematizado”, 12.ed., São Paulo: Saraiva, 2008. p.209: “Já sustentamos, em outro estudo, a conclusão trazida por Grinover, qual seja, trata-se a reclamação de verdadeiro exercício constitucional de direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direito ou contra ilegalidade ou abuso de poder (CF, art. 5º., XXXIV, ‘a’)”, por mandamento do artigo 13 da Lei 8.038/90.

Encerrando, busco socorro na lição de Streck (conferir Streck, Op.cit., p.399), para quem a maioria das decisões judiciais se baseia em “precedentes sumulares” e “verbetes jurisprudenciais” retirados de repertórios estandartizados, muitos de duvidosa cientificidade, que acabam sendo utilizados, no mais das vezes, de forma descontextualizada (Ver http://jus2.uol.com.br/pecas/texto.asp?id=676http://leniostreck.com.br/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=17&Itemid=40), senão vejamos:

A possibilidade de múltiplas respostas está relacionada com o conceitualismo da regra, que “abarca” (todas) as possíveis “situações de aplicação” de forma antecipada, independente do mundo prático. Nesse “mundo”, o que conta é o enunciado, isto é, todas as formas de linguagem e todos os outros modos de dizer do objeto de análise se resumem ao enunciado.

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