Consciência Negra

A luta contra os racismos também é um ritual doloroso

Autor

  • César Augusto Baldi

    é mestre em Direito pela ULBRA-RS doutorando Universidad Pablo Olavide (Espanha) e servidor do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (Porto Alegre) desde 1989.

20 de novembro de 2008, 12h22

Findo o período colonial, a sociedade brasileira imaginou-se dotada de uma cultura evidentemente européia, à qual teriam contribuído, em “parcelas”-específicas e, pois, “pontuais”— negros e índios, sem, contudo, perder a centralidade branca, européia, heterossexual e católica. Vista em espelho muito particular teve a si mesma refletida como “mestiça”, reveladora de uma “democracia racial” exemplar para o mundo (em contraposição com a segregação dos EUA ou o apartheid da África do Sul), isenta de “racismos”, preconceitos de todas as espécies e profundamente “religiosa” (respeitado o Estado “laico”). À sua maneira.

A Constituição de 1988, pela primeira vez, reconhece uma diversidade étnico-cultural em patamar distinto das anteriores e rompe, em parte, com uma influência grande da Igreja. Vinte anos depois seria necessário verificar até que ponto esta imagem refletida em espelho rompeu ou não com os padrões do colonialismo. Ou seja: repensar estes parâmetros agora num espelho “pós-colonial”, vendo, pois, até que ponto ficaram mantidas as estruturas anteriores, agora sob o manto de um “colonialismo interno”. Alguns projetos esboçados e outros sequer iniciados merecem destaque.

Primeiro, porque, tendo sido incompleto o pretendido processo de “embranquecimento”, iniciado no século XIX ( com o endeusamento da ascendência européia, paralelo ao processo de “higienização”), a “democracia racial”, que lhe seguiu, sendo teoria, permaneceu um funesto processo disfarçado de racismo. Assim, quando a Constituição cominou ao “racismo” tanto o cumprimento mais severo da pena (a reclusão) quanto as características de inafiançabilidade e imprescritibilidade, reforçou a necessidade de combatê-lo em todas as suas formas, incluídas as modernas — a xenofobia, o anti-semitismo, a islamofobia, a negrofobia e outras formas correlatas de intolerância racial.

A Conferência de Durban reforçou, no plano internacional, estas mesmas preocupações e compromissos, ao reconhecer que “a escravidão e o tráfico de escravo” foram “tragédias terríveis na história da humanidade”, ao mesmo tempo em que afirmou que “o colonialismo levou ao racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata” (itens 12 e 13 da Declaração).

Segundo, porque entendido o racismo nesta visão alargada que compatibiliza conceitos etimológicos, etnológicos, sociológicos, antropológicos e biológicos, nos exatos termos em que salientado pelo STF no julgamento do HC 82.424-RS (relator ministro Mauricio Correa), que estendeu a reprimenda ao “anti-semitismo”, afasta-se a noção de “sangue” (não é o “sangue” índio ou negro que dá ou retira direitos), fortalecendo o combate às representações sociais heterodefinidas. Daí porque pouco sentido tem o discurso do “DNA negro” para combater as ações afirmativas (o que, ao final, equivaleria a dizer que se todos são negros, não existe “racismo”, não é verdade?) ou “sangue” índio para desqualificar as pretensões territoriais, inclusive dos chamados “índios ressurgentes” (como se todos aceitassem viver com os usos, costumes, tradições e cosmologias indígenas).

A insistência no critério de autodefinição (como previsto na Convenção 169-OIT) é outro elemento questionador do etnocentrismo da sociedade: os critérios de “classificação social” são, em geral, fruto de “heterodefinição”, e daí, pois, as resistências para o reconhecimento das autoclassificações de indígenas, negros e quilombolas. Em sociedades plurais, como salienta Deborah Duprat, nenhuma comunidade detém o monopólio das “definições”.

Terceiro, porque isto implica a necessidade, no aspecto negativo, de impedir qualquer conduta, prática ou atitude que incentive, prolifere ou constitua racismo e, no aspecto positivo, um mandamento constitucional de tomar as medidas cabíveis e possíveis para erradicação de tal prática, dentro da previsão de promover o bem de todos, “sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (artigo 3º, inciso IV, CF).

Corresponde, portanto, à necessidade de iniciativas pró-ativas de igualdade e inibitórias de discriminação por parte dos poderes constituídos, na linha, aliás, da teoria constitucional de direitos fundamentais prestacionais e de defesa.

Quarto, porque a “mestiçagem” incentivada só o é enquanto reforce os tipos caucasóides e obscureça características indígenas ou negras. São os “caboclos” a invisibilizar processos de etnogênese indígena, e os “mulatos” a embranquecer, de uma forma ou outra, as classificações sociais. Um racismo tão sutil que pode conviver com fachadas de anti-racismo e, conforme a mudança de ambiente — universidade, família, laços de parentesco — ser absolutamente invisibilizado. Isto é que possibilita que um manifesto “anti-racista” possa ser escrito em linguagem “racista”, sem parecer sê-lo, e questione, ao mesmo tempo, a importação de “teorias estrangeiras dos EUA”, ainda que, para isto, tenha que citar jurisprudência daquele mesmo país, ignorando, sem o dizer, a realidade racial absolutamente distinta.


É o esquecimento das lições de Oracy Nogueira, já nos anos 50, de que, aqui, o preconceito é de “marca” e não de “origem” (nos EUA basta uma “gota de sangue negro” para a classificação), que é possível “embranquecer-se” pela ascensão social (como mostraram os estudos de Florestan Fernandes) e que mesmo a sociologia brasileira tem que ser descolonizada, como já ensinava Guerreiro Ramos. O que não implica, contudo, a impossibilidade de coligações transnacionais contra os distintos racismos (a luta antiracista deve ser plural).

Daí se segue que algumas situações ainda carecem de melhor equacionamento:

1. O processo civil, de perfil individualista e atomizado, tem dificuldade de lidar com coletividades como comunidades indígenas (quando lhe reconhece capacidade titulatória) ou as distintas “comunidades tradicionais” (ribeirinhos, quebradeiras de coco de babaçu, faxinalenses, quilombolas e outras) e mais ainda com as próprias formas específicas de organização social e política (incentivando uma matriz “associativa”).

2. A diversidade lingüística do país (são mais de 180 línguas indígenas, por exemplo) não se reflete na sua utilização em documentos oficiais, exceção feita a São Gabriel da Cachoeira/AM, que declarou co-oficiais o tucano, o baniwa e o nheengatu. Há, pois, que “descolonizar” a linguagem oficial dos poderes constituídos, como forma de maior transparência e possibilidade participativa, reconhecendo, em determinadas situações, a necessidade de paridade lingüística (que também abrange a educação), ao mesmo tempo em que se faz necessária uma discussão a respeito da “norma culta” e dos distintos falares brasileiros ( o preconceito lingüístico é, em parte, também um “racismo lingüístico”, como salienta Marcos Bagno).

3. Os saberes indígenas e negros foram ignorados, suprimidos e silenciados, porque tidos como irrelevantes, não-científicos ou primitivos. A introdução de história africana e indígena (Leis 10.639/2003 e 11.645/2008) é intento parcial de recuperação das memórias silenciadas e realizado ainda com muita resistência. É por aí que passam a revisão historiográfica da “revolta dos malês”(a luta de negros islamizados contra a escravidão pode ressignificar nossas visões preconceituosas do Islã como religião “bárbara”), da Frente Negra Brasileira (1931-1937), do Teatro Experimental do Negro (criado em 1944, por Abdias do Nascimento), das contestações indígenas e da visão colonial “frigorificada” dos quilombos (rompendo-se o modelo “palmarino” de sublevação e toda a legislação colonial repressiva), ao mesmo tempo em que as políticas públicas precisam também incorporar ou dialogar com os conhecimentos tradicionais (discussão que fica evidente na questão da saúde das comunidades indígenas ou das pesquisas envolvendo medicina tradicional das comunidades quilombolas de Oriximiná). Não existe justiça social sem justiça cognitiva, como recorda Boaventura Santos.

4. O declarado “laicismo” estatal conviveu, sem maiores percalços, com o estabelecimento de feriados municipais religiosos de matriz cristã, ignorando, invisibilizando ou mesmo menosprezando as religiões de matriz africana (festas de Oxum, Oxóssi, Ogum, Xangô, etc) ou indígenas (o torém dos Tremembé, o kuarup da região xinguana). Há, pois, que revisar a matriz dos feriados religiosos (que, salvo exceções, são sempre municipais) e mesmo das datas comemorativas, que devem refletir a diversidade cultural (artigo 215, 2º, CF).

O “Dia da Consciência Negra” é, em parte, uma resistência à matriz etnicamente dominante, em contraposição à celebração laudatória da abolição concedida, afirmando, por um lado, a própria escolha étnica de um dos heróis da Pátria (Zumbi dos Palmares, Lei 9.315/1996) e, por outro, a incompletude do próprio processo de abolição. Significativo, ainda, que, a data, declarada feriado em alguns municípios, tenha sido questionada judicialmente em outras localidades (caso de Alvorada, Pelotas e Porto Alegre, todas no Rio Grande do Sul), porque, sendo “feriado civil”, feriria a Lei 9.093/95, que atribui aos municípios apenas “feriados religiosos”. Em todos os casos citados, o questionamento partiu dos setores comerciantes, alegando perdas financeiras, e nunca foi reconhecido como uma demanda de cunho racista e discriminatório.

5. Os atores jurídicos ainda continuam a tratar comunidades tradicionais e indígenas dentro do perfil assimilacionista das Constituições anteriores e da Convenção 107-OIT, trabalhando com “integração” na “comunhão nacional”. Pouco importa se “aculturados”, “isolados” ou “puros” indígenas, nestes casos devem ser levadas em conta suas cosmologias e a adoção de medidas que possibilitem sejam compreendidos e se façam compreender em procedimentos legais, de forma eficaz (artigo 12 da Convenção 169-OIT). Um “tradutor cultural” se faz necessário em todas as hipóteses, em especial quando envolvidos conflitos com as visões de mundos ocidentais (o que se verifica, hodiernamente, com os crimes envolvendo indígenas) e quando necessária a produção de depoimento pessoal e testemunhal. O que se pergunta, como se pergunta e o que se responde são cruciais para determinar-se a judicialização das demandas indígenas e quilombolas, e mesmo de comunidades negras faveladas.


6. As terras indígenas são sempre de propriedade da União, ainda que às comunidades seja assegurada a posse permanente. Estão em jogo, sempre, terras públicas e não “apropriação” por “poucos indivíduos”: os poderes constituídos devem, pois, inverter o raciocínio de sua atuação. No caso das terras quilombolas, por sua vez, é a própria Constituição que reconhece a propriedade definitiva (artigo 68-ADCT), pondo a nu o caráter discriminatório e racista da Lei de Terras de 1850, que ficara obscurecido, quando esta transformou as terras em mercadoria e excluiu, legalmente, a possibilidade de aquisição para libertos e escravos, ainda que estes tenham mantido a posse de seus territórios (não a propriedade). Em muitas hipóteses, houve uma verdadeira “apropriação privada” de terras públicas, com sobreposição de títulos (o estado do Pará é um exemplo clássico) e também a absoluta invisibilização das comunidades negras rurais que cultivavam e mantinham o espaço territorial, mantendo “verdes” as mesmas terras hoje cobiçadas por mineradoras, indústrias de celulose e monoculturas da cana e soja.

7. Em muitos casos, as comunidades são afastadas de territórios que reivindicam sob pretexto de que os moradores da região são contrários à presença (como se viu em Gaspar/SC com os índios guaranis e no Morro do Osso/RS, com os kaingangs) ou porque são necessárias obras para o desenvolvimento nacional (caso da ampliação da BR-101 atingindo comunidade quilombola de Morro Alto e os índios guaranis ou mesmo de várias obras do PAC). Nestas hipóteses, há que:

a) se incentivar adoção de providências no sentido de trabalhar os necessários valores constitucionais de repúdio ao racismo (artigo 4º, VII e artigo 5ª, XLII), pluralismo de idéias (artigo 206, III), defesa e valorização da memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (artigo 216), valorização da diversidade étnica e cultural (artigo 215, §3º, V) e promoção do bem de todos, sem preconceitos de raça e cor e quaisquer outras formas de discriminação (artigo 3º, IV), seja por meio de “termos de ajustamento de condutas”, seja por meio de ações do Poder Legislativo, seja por meio de cursos;

b) respeitar o instituto da “consulta prévia, livre e informada”, reconhecido como direito das comunidades envolvidas, mesmo para países não-signatários da Convenção 169-OIT ( CIDH, Decisão Saramaka vs. Suriname), como corolário tanto da “democracia participativa” quanto da “gestão democrática da cidade”. Neste último caso, aliás, deve-se afastar a visão de que tal procedimento é “novo” empecilho para licenciamento ambiental: trata-se de estender às comunidades quilombolas, indígenas e “tradicionais” os mesmos cuidados que seriam tidos se alguma obra afetasse, por exemplo, o entorno, a “vizinhança” ou mesmo o “direito de propriedade” de moradores de bairros nobres de uma cidade.

8. A sociodiversidade não é, em princípio, antagônica com a biodiversidade. Por trás de alegações de defesa ambiental, muitas vezes está escondido um “racismo ambiental”, de tal forma que injustiças sociais e/ou ambientais ou os “custos do desenvolvimento” recaem de forma desproporcional sobre etnias vulnerabilizadas, independentemente de sua intencionalidade, numa verdadeira “apropriação”, pelos mais abastados, de um “bem de uso comum e essencial à sadia qualidade de vida” ( artigo 225, CF) . Uma revisão da aplicação ou mesmo da legislação de unidades de conservação quando incidentes sobre áreas indígenas e de “comunidades tradicionais” é premente. Muitos “territórios verdes” assim se mantiveram porque foram “territórios negros” ou “territórios indígenas”, ou seja, porque estas comunidades lá habitavam e não porque a natureza, idilicamente, restava “intacta” como um “santuário”. Trata-se, pois, da defesa de um etno-socioambientalismo, reconhecendo concepções plurais de preservação ambiental, “fertilizadas” por outras cosmologias e conhecimentos (aqui, é a própria luta por justiça ambiental que se faz como luta por justiça cognitiva). Mais que isto: as lutas contra o colonialismo, o machismo e o racismo não podem se dar de forma isolada, mas sim em forma de redes de solidariedades.

Na cosmologia “Saterê Maué”, do Pará e do Amazonas, os jovens introduzem as mãos numa luva de fibras onde estão inseridas formigas, que lhes aplicam ferroadas (“waumat”). A luta contra os racismos também é um ritual doloroso. Mas é preciso que seja iniciada. O vinte de novembro é uma boa ocasião para reafirmar este compromisso, às vésperas dos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, assinada, paradoxalmente, quando muitos dos países africanos ainda eram colônias européias.

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