Lei bêbada

Rigor da Lei Seca favorece quem dirige bêbado

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18 de novembro de 2008, 9h19

A propaganda da Lei Seca é mais eficaz que a sua redação. Isso é o que revelam as primeiras batalhas na Justiça em torno da nova regra. Vendida como a norma que iria punir com tolerância zero quem fosse pego bêbado ao volante, na prática, o rigor da lei acaba favorecendo os infratores.

Isso porque até junho passado, quando entrou em vigor a nova regra, o exame clínico visual feito pelo perito do Instituto Médico Legal era prova na qual poderia se basear a ação penal contra o motorista embriagado. Ou seja, mesmo sem se submeter ao teste do bafômetro ou a exame de sangue, o motorista poderia ser processado criminalmente se o médico constatasse notórios sinais de embriaguez.

A Lei Seca (Lei 11.705/08), em tese mais rigorosa, acabou com essa possibilidade ao exigir prova de determinada concentração de álcool no organismo para a ação penal. A tese é defendida pelos advogados Aldo de Campos Costa, Cláudio Demzuk de Alencar e Marcelo Turbay Freiria, e vem encontrando guarida em decisões judiciais.

Pela nova lei, é punido com pena de seis meses a três anos de detenção o motorista que estiver “com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas” ou “ou três décimos de miligrama por litro de ar expelido dos pulmões”. Assim, caso não seja comprovado por meio de exames que o motorista estava com álcool acima desses limites, não há como processá-lo criminalmente. E o motorista não é obrigado a fazer o exame de sangue ou passar pelo bafômetro.

“O legislador procurou inserir critérios objetivos para caracterizar a embriaguez, mas inadvertidamente criou uma situação mais favorável àqueles que não foram submetidos aos exames específicos. A lei, que pretendia, e com razão, ser mais rigorosa, acabou engessando o tipo penal”, afirmou a desembargadora Sandra de Santis, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal.

Em decisão que deve ser publicada em breve no Diário Oficial, a 1ª Turma Criminal do TJ distrital trancou ação penal contra um acusado de dirigir bêbado que não passou por exame de sangue ou pelo teste do bafômetro. Por dois votos a um, a Turma seguiu o entendimento da desembargadora, de que o exame do IML não é capaz de comprovar a concentração de álcool no sangue.

“Embora o exame clínico seja apto a comprovar a embriaguez, só os exames de sangue ou ar expelido pelos pulmões podem determinar se foi ultrapassado o limite legal, pois há pessoas com maior resistência ao álcool do que outras”, sustentou a desembargadora. De acordo com a decisão, “só a prova do percentual de álcool no sangue ou no ar alveolar pulmonar possibilitaria a definição do tipo do artigo 306 do Código de Trânsito”.

Sandra de Santis ressaltou que, apesar de não servir para embasar ação penal, o exame clínico visual serve para provar embriaguez no caso de sanções administrativas. Ou seja, a suspensão da carteira e apreensão do veículo podem ser feitas sem o teste do bafômetro e o exame de sangue: “Só as sanções administrativas do artigo 165 do Código de Trânsito poderão ser impostas quando a embriaguez não for aferida segundo a nova legislação”.

Mas, no caso de processo criminal, a regra não pode ser aplicada. A desembargadora explicou que embora o perito do IML conclua que o paciente estava “clinicamente embriagado”, tal conclusão só é suficiente para indicar a embriaguez para fins administrativos, não para fins criminais. “O crime exige prévia tipificação, ou seja, exige que a situação esteja perfeitamente definida na lei e a dosagem agora é elementar, o que não era previsto anteriormente.”

A decisão ainda não foi publicada, mas já repercute nas demais instâncias. A 1ª Vara de Delitos de Trânsito de Brasília suspendeu todas as audiências com réus processados por dirigir embriagados, mas que não fizeram o exame de sangue ou o teste do bafômetro. O juízo aguarda a publicação da decisão para formar entendimento e dar curso às ações.

Leia o voto da desembargadora Sandra de Santis

HC 2008.00.2.009130-0

Relatório

Habeas Corpus, com pedido de liminar, que busca trancar ação penal ajuizada contra EDSON LUIZ FERREIRA, preso em flagrante dia 03.04 e denunciado em 23.05 deste ano, por infringir o art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro.

O paciente foi liberado após pagamento da fiança, arbitrada em R$ 1.200,00 (mil e duzentos reais).

Os impetrantes apontam como autoridade coatora o MM. Juiz da 5ª Vara Criminal da Circunscrição Especial Judiciária de Brasília-DF. Argumentam que a Lei 11.705, em vigor a partir do dia 20.06.08, alterou o art. 306 do CTB e passou a exigir “a constatação de concentração de álcool por litro de sangue da ordem de 6 (seis) decigramas, ou três décimos de miligrama por litro de ar expelido dos pulmões”. Sustentam que a dosagem etílica mínima gora integra o tipo penal. Asseveram que a graduação só pode ser aferida através do etilômetro, vulgarmente conhecido por “bafômetro”, ou exame laboratorial.


Alegam que a lei anterior não exigia percentual específico e a embriaguez poderia ser constatada mediante exame clínico, como ocorreu. Defendem que a nova lei é mais benéfica e tornou atípica a conduta do paciente. Liminarmente, postulam a suspensão do interrogatório e, ao final, o trancamento da ação, por ausência de justa causa.

Deferida a liminar.

Prestadas informações, o MM. Juiz informou que os autos foram remetidos à Vara de Delitos de Trânsito, competente para julgar a causa.

A Procuradoria de Justiça opina pela denegação da ordem (fls. 68/74).

É o relatório.

Voto

A Senhora Desembargadora SANDRA DE SANTIS — Relatora

Presente os requisitos, admito o writ.

Os impetrantes buscam o trancamento da ação por justa causa, em virtude da atipicidade da conduta. Em apertada síntese, argumentam que, alterado o art. 306 do CTB pela Lei 11.705/08, a dosagem etílica mínima de 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou “três décimos de miligrama por litro de ar expelido dos pulmões” passou a integrar o tipo penal. Alegam que a lei é mais benéfica ao paciente e deve ser aplicada aos fatos anteriores à vigência.

A matéria ainda não está pacificada nesta Corte. No recente julgamento do HC nº 2008.00.2.006159-2 (Julg. 03.07.08), que analisava as alterações dos artigos do Código de Trânsito Brasileiro, a parte pretendia a extinção da punibilidade por entender que a nova redação do art. 306 passou a integrar o art. 303. Discutia-se tema diverso, mas a questão foi levantada porque o autor não havia sido submetido ao teste do “bafômetro” ou exame de sangue. Naquela oportunidade, deneguei o pedido “reservando-me para reexaminar a matéria com mais vagar”. Em princípio considerei que qualquer meio de prova era suficiente à configuração do tipo. O voto fora elaborado algum tempo atrás, a lei era recentíssima e não havia refletido sobre a forma de aferir a concentração de álcool até porque, naquela hipótese, o paciente fora submetido a exames médicos no IML e considerei que o perito médico estaria habilitado para constatar visualmente o estado de embriaguez, seja pelas condições de deambulação, pupilas, comportamento, concatenação de idéias, entonação de voz. Não deixei de levar em consideração os inúmeros acidentes de trânsito com mortos e feridos que são causados por motoristas visivelmente ébrios e o perigo a que estamos todos diuturnamente submetidos, nas ruas e estradas pela irresponsabilidade de tais pessoas. Mas as ponderações do segundo vogal calaram fundo. O exame médico não seria capaz de comprovar a concentração de álcool no sangue. Pela nova redação só a prova do percentual de álcool no sangue ou no ar alveolar pulmonar possibilitaria a definição do tipo do artigo 306 do Código de Trânsito.

Meditei sobre o tema, tanto que em outro processo reajustei o voto. Segundo relato quase unânime dos profissionais de saúde, embora o exame clínico seja apto a comprovar a embriaguez, só os exames de sangue ou ar expelido pelos pulmões podem determinar se foi ultrapassado o limite legal, pois há pessoas com maior resistência ao álcool do que outras. Assim, só as sanções administrativas do artigo 165 do Código de Trânsito poderão ser impostas quando a embriaguez não for aferida segundo a nova legislação. Temos uma distinção entre infração de trânsito e infração criminal, embora a reforma legislativa alcance as raias do absurdo ao permitir que a última fique na dependência da vontade do infrator. Mas também não posso deixar de consignar que a solução administrativa permanece, e é bastante rigorosa.

Evolui no entendimento pelos fundamentos esposados na decisão que deferiu a liminar, verbis:

Habeas com pedido de liminar para que seja trancada ação penal em curso contra Edson Luiz Ferreira, por falta de justa causa, já que a lei superveniente tornou atípica a conduta atribuída ao paciente.

Argumentam que, após a Lei 11705/08, para configuração do delito de embriaguez ao volante passou a ser elementar do tipo a constatação da concentração mínima de álcool por litro de sangue, de seis decigramas, ou três décimos de miligrama por litro de ar expelido dos pulmões. O exame clínico do IML, que constata aparência de embriaguez, não pode suprir o exame de sangue ou o realizado por etilômetro, vulgarmente conhecido por bafômetro.

Articula a retroatividade da lei nova mais benéfica e pretende liminar em face da proximidade do interrogatório, designado para o dia 05 de agosto próximo, ocasião em que oportunizada a aceitação de proposta de suspensão condicional do processo, o que configuraria o constrangimento.

Com efeito, embora a matéria ainda não esteja pacificada no âmbito da 1ª Turma Criminal, o Des. Mário Machado tem reiteradamente decidido no mesmo sentido da impetração, ou seja, que a lei nova, que pretendeu ser mais rígida e estabelecer alcoolemia zero, acabou por beneficiar alguns. Ao exigir prova da concentração de álcool teria afastado a disciplina anterior, que admitia como prova de embriaguez os notórios sinais de consumo de bebida alcoólica.

A nova redação do art. 306 do Código de Trânsito indica a fumaça do bom direito, embora vá de encontro ao princípio da razoabilidade. Só na letra da “b” do artigo pode ser admitida a prova que foi produzida nos autos, pelo IML, e constatou que o paciente encontrava-se clinicamente embriagado.

Quanto ao perigo na demora, reside na proximidade da data da audiência. As pautas das Varas Criminais, sempre congestionadas por processos de réus presos, não permitem que continue marcada audiência sem a certeza de que dela haverá resultado útil. Estariam feridos os princípios tão caros da economia e celeridade processuais (…)


De fato, a antiga redação do art. 306 do CTB exigia apenas que o motorista estivesse sob influência de álcool, sem indicar quantidade específica. O simples exame clínico poderia perfeitamente atender à exigência do tipo penal. No entanto, com o advento da Lei 11.705 de 19 de junho, o legislador incluiu na redação do artigo a “concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas” ou “três décimos de miligrama por litro de ar expelido dos pulmões” (Art. 2º do Decreto 6.488 de 19.06.08). Como asseverou o Des. Mário Machado do Habeas Corpus já citado, “se a lei exige que o crime se caracterize a partir da constatação de que a pessoa está dirigindo com uma concentração tal de álcool por litro de sangue, é indispensável prova técnica afirmando isso. Essa prova técnica só pode ser obtida por dois modos, hoje, ou com o uso do chamado bafômetro ou com exame de dosagem etílica”.

Na hipótese, há exame clínico realizado pelo IML à fl. 50 que, embora conclua que o paciente estava “clinicamente embriagado”, só é suficiente para indicar a embriaguez para fins administrativos, não para fins criminais. O crime exige prévia tipificação, ou seja, exige que a situação esteja perfeitamente definida na lei e a dosagem agora é elementar, o que não era previsto anteriormente.

Divirjo do entendimento do d. Procurador de Justiça, no sentido de que não se trata de uma lei mais gravosa, mas apenas de “uma dificuldade maior para a efetiva comprovação do nível de embriaguez do condutor do automóvel”:

Se o estado não dispuser de bafômetro, ou se o próprio condutor não se sujeitar voluntariamente a fazer tal prova, o resultado poderá ser a absolvição ou mesmo o arquivamento do inquérito. Não porque não há crime a punir, mas porque a prova é deficiente ou imprópria(fl. 73).

O legislador procurou inserir critérios objetivos para caracterizar a embriaguez, mas inadvertidamente criou uma situação mais favorável àqueles que não foram submetidos aos exames específicos. A lei, que pretendia, e com razão, ser mais rigorosa, acabou engessando o tipo penal. E sem tipicidade, não há crime, pois esta é a “descrição abstrata da ação proibida ou da ação permitida”. No dizer sempre atual de Assis Toledo, “(…) o tipo legal, conforme o entendemos, abrange, ao descrever a conduta proibida: o sujeito da ação, isto é, o agente do crime; a ação, com seus elementos objetivos e subjetivos; e, se for o caso, o objeto da ação, bem assim o resultado, com a respectiva relação de causalidade. A linha divisória entre o injusto típico e a culpabilidade não mais residirá entre os dados objetivos e subjetivos, mas deverá fundar-se em outros critérios”. (In Princípios Básicos do Direito Penal, Saraiva, 2ª Ed., p. 79)

A dosagem inserida como elementar do tipo foi opção legislativa. E ao intérprete cabe observar o princípio da legalidade. Friso que os percentuais são até razoáveis. O problema é que, para aferi-los, impossível prova que não sejam aquelas hábeis a medir com segurança a concentração apta a configurar o tipo legal de crime. No dizer do Prof. Aldo de Campos Costa em artigo publicado publicado no Conjur de 29.07.08:

(…) malgrado as modificações encampadas pela denominada Lei de Tolerância Zero ou Lei Seca não tenham alterado substancialmente o conteúdo do ilícito administrativo previsto no artigo 165 do Código de Trânsito Brasileiro, o mesmo não pode se afirmar quanto ao texto da norma penal consubstanciada no artigo 306 do mesmo diploma legal, que passou a reclamar a verificação exata da taxa de alcoolemia presente na corrente sanguínea do condutor, ressuscitando um desastroso critério técnico objetivo que, além de impedir a aferição da concentração de álcool por simples testemunho ou exame clínico, inviabiliza a própria aplicação do dispositivo penal, tal qual ocorria para a caracterização da infração administrativa prevista no artigo 165 do Código de Trânsito, anteriormente à vigência da Lei 11.275/06. (http://www.conjur.com.br/static/text/68510,1)

E, se a lei nova é mais favorável, retroage para tornar a conduta do paciente atípica. Não há prova técnica que constate a concentração de álcool por litro de sangue e o laudo pericial que levou ao oferecimento da denúncia é insuficiente. Nem se diga que o teor alcoólico poderia ser comprovado no curso da ação penal porque a elementar não está descrita na inicial. É o preço que se paga por viver num Estado Democrático de Direito, que deve respeito irrestrito ao sistema jurídico normativo. Ausente a justa causa, concedo a ordem para trancar a ação penal iniciada contra o paciente.

É o voto.

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