Atraso secular

Critérios subjetivos ditam os julgamentos criminais no MT

Autor

17 de novembro de 2008, 23h00

Preambularmente, deixemos aclarada ser a criminologia crítica o marco teórico utilizado no presente artigo científico. Entenda-se como “criminologia crítica” uma perspectiva mais ou menos contemporânea, já discutida inicialmente por Otto Kirchheimer, mas só recentemente desenvolvida pelos estudos italianos de Dario Melossi, Massimo Pavarini, da grande contribuição do catedrático alemão Alessandro Baratta e, finalmente, pelos acréscimos de George Rush, Loïc Wacquant, Jock Young e David Garland, todos debruçados sobre “realidades divergentes” estadunidenses e mundiais.

E qual a inovação da criminologia crítica em sede de análise da realidade criminológica? Jorge de Figueiredo Dias, fazendo um apanhado geral sobre várias correntes criminológicas, recepcionando a criminologia crítica como novo marco de estudos, dividiu com muita propriedade o “homem criminoso” e a “sociedade criminológica”. Isso porque dizer, nas entrelinhas, que a chave para a compreensão do “fenômeno criminal” cambiou da análise de causas individuais (biológicas, psicológicas, educacionais etc) para o “poder de definição”, tomando por empréstimo, inclusive, estudos filosóficos de Habermas, Derrida, Hassemer, Dworking e Foucault, entre outros.

A questão que importa não é mais debruçar-se sobre “as causas” da criminalidade, da criação do “criminoso”, da propensão ao crime, ou no lado oposto, de reeducação, ressocialização, readaptação e reintegração desse “organismo patológico” identificado anteriormente com o criminoso. A criminologia crítica teve o mérito de assentar os seguintes fundamentos para a compreensão da realidade criminológica:

a) as pesquisas da criminologia tradicional que centravam atenção no indivíduo tarjado como “criminoso” partiam do pressuposto afirmativo do poder judiciário e não das declarações do segmento pesquisado/entrevistado. Assim, padeciam de um sério comprometimento metodológico, partindo de uma visão segmentada de um dos saberes científicos, desconsiderando por completo o paralelo com a população que comete delitos, mas que não é objeto de investigação;

b) a criminologia tradicional, elegendo a população arregimentada pelo sistema penal como alvo do enfoque, tentava traçar explicações a partir dessa insignificante margem populacional que está conjunturalmente em situação desfavorável. Ademais, para critérios científicos, deve-se impor ressalvas em analisar indivíduos em situações onde as respostas podem influir direta ou indiretamente no próprio futuro, como a premiação ou punição pela tomada de determinada resposta;

c) as pesquisas sobre as “cifras negras” — uma enorme margem de crimes não resolvidos — influem na seriedade de qualquer levantamento estatístico tomando por base a população carcerária ou eventualmente ligada com o sistema penal, seja cumprindo penas alternativas ou medidas substitutivas. Por cifra negra, entende-se:

1 — crimes que não foram comunicados;

2 — crimes que foram comunicados e não registrados;

3 — crimes que foram registrados e não denunciados;

4 — crimes que foram denunciados e não condenados;

5 — crimes que foram condenados e não executados.

d) finalmente (e mais importante), é a postura ideológica da criminologia tradicional em fracionar a sociedade em dois mundos, método lícito a capacitar/distinguir determinadas “categorias”, “classes”, “grupos” como potencialmente negativos, ou produzir um perfil standard que bem pode ser identificado como questões ligadas à institucionalização da ordem, da economia e da política.

Em rápidas palavras, para a criminologia crítica, o “homem criminoso” deixou de existir e cedeu lugar para a “sociedade criminógena”, ela mesma como cenário de poder, notadamente no que concerne às definições. Trata-se de saber quais os elementos subjacentes pelos quais o grupo responsável pela classificação/definição de delinqüência (de uma ponta, a da burocracia policial, à outra, da administração carcerária), utiliza-se para “construir” a figura do delinqüente.

Os trabalhos da criminologia crítica iniciaram-se por estabelecer um paralelo entre a demanda por mão-de-obra, mercado de trabalho (nas workhouses inglesas e holandesas) com os índices de criminalidade. As conclusões foram as mais heterodoxas, para os padrões tradicionais: quando o meio capitalista de produção carece de mão-de-obra, os mecanismos incriminadores, processuais e executórios diminuem a abrangência e, ao contrário, quando há excesso de trabalhadores, os suportes criminais (legislativo, executivo e judiciário) tornam-se opressivos.

É dizer: o regime carcerário fez controlar a mão-de-obra.


Inclui-se neste último foco de pesquisa o trabalho interno nas penitenciárias, variando entre modelos mais ou menos ligados ao labor, ora para impor a pena como um castigo pura e simplesmente, ora para fazer da pena um objeto de incremento artesanal e industrial. Do momento em que se constatou a inviabilidade concorrencial capitalista e, de outro giro, a forte resistência das associações de trabalhadores livres, a gestão da pena ficou sem o significado original atrelado ao trabalho.

O que sobrou, então? A “ressocialização” que parte da premissa que o “criminoso” tem algum desajuste. E as causas do crime são, necessariamente, um mal. Além de ser simplista a explicação, é ingênua do ponto de vista da maioria da população que, de fato, praticou algum delito, mas que não foi alvo do sistema penal. Graduações de desajustes com a sociedade podem variar de perspectiva, pendendo mais para a psicologia, mais para a pedagogia, mais para a economia, chegando a aventar-se a hipótese genética de transmissão de dependências ligadas à propensão delitiva a formar um “grupo de risco”.

Digamos que a “ressocialização” traz consigo o conceito de “homem criminoso” repaginado. Apresenta como parâmetro para o “tratamento” algum tipo de problema que necessariamente não é o social e sim o individual. E, por fim, esquiva-se de mencionar qualquer razão de ordem comunitária, sequer tratando-se da questão do poder, como elemento ponderável de recrutamento criminal. O problema, em resumo, é o delito, o delinqüente e a delinqüência. Como veremos, a ideologia dominante no Judiciário matogrossense inverte tão profundamente os valores constitucionais que chega a “recomendar” a prisão como benéfica ao tratamento do acusado, defendendo-se de si mesmo: uma modalidade heterodoxa de “hospital”, “clínica” ou “escola”.

A criminologia crítica inaugura o conceito de “criminalização” e desnuda a penitenciária como “fábrica”.

Por criminalização devemos entender um conjunto de mecanismos de poder que gravitam em torno da linguagem e poder (ponto de partida), do processo e poder (meio de identificação e conformação) e da execução e poder (produção criminal finalizada). Cada etapa tem a sua importância para conceber a “imagem criminosa típica” ou, mais recentemente, um “subgrupo de risco”, chegando até mesmo a propor extensões que podem chegar a comunidades étnicas, religiosas, culturais, raciais ou nações inteiras.

Esse é o grande risco de flexibilizar garantias para um grupo a ser identificado como merecedor de repressão complementar — são sedutoras as seguidas extensões de definições sobre “quem é perigoso”. A “maioria normal” converte-se facilmente numa “maioria anormal”, controlada e tarjada por uma minoria que domina os institutos de classificação, de definição, de imputação, da investigação, da acusação, do processo e da execução. Numa palavra — o sistema penal.

O que é particularmente curioso é que o conjunto positivista do século XIX ainda sobrevive plenamente com as propostas biopsíquicas, seja alteradas na apresentação das idéias, seja com os termos idênticos àqueles primeiros textos. E a análise das decisões judiciais condenatórias em Mato Grosso serve para demonstrar um conjunto sem coerência de recortes teóricos mais ou menos antigos, mais ou menos escamoteados em pseudo-garantias processuais. Por esta razão, é imprescindível o estudo das teorias criminológicas do século XVIII, XIX e das quatro primeiras décadas do século XX, para reconhecê-las no discurso autoritário judicial a desmascarar o caráter ideológico da repressão imposta. Veremos nas enumeras citações selecionadas.

Malgrado não haja qualquer rigor cientifico na afirmação que ouso apresentar, ainda assim vale a pena fazê-la a título de provocação: os magistrados brasileiros que se dedicam a aplicar a legislação penal são incapazes de formular uma crítica sobre a legislação e sobre o próprio papel que realizam no regime penal, servindo-se de veículo alienado no que concerne aos fundamentos políticos do pequeno suporte doutrinário geralmente utilizado. Veremos, inclusive, que muitos deles simplesmente copiam de si mesmos os fundamentos de uma sentença para outra, fazendo da “verdade real” e da “individualização” na cognição um mito insustentável.

Essa incapacidade de refletir criticamente não só contamina o Poder Judiciário brasileiro de forma geral, como acredito não ser monopólio de uma única nação: os juízes, de forma geral, preferem o quotidiano mecânico a conscientizarem-se da reprodução do status quo, por meio dos “serviços judiciais”. E ainda: não têm qualquer idéia do papel de resistência possível na função judicante.

Subjetividade no Mato Grosso

A metodologia de pesquisa de sentenças penais matogrossenses foi tomada de empréstimo de recente trabalho do IDDD – Instituto de Defesa do Direito de Defesa, responsável pela monografia intitulada “Decisões judiciais nos crimes de roubo em São Paulo: a lei, o direito e a ideologia”, consultado em http://iddd.org.br/files/publication/file/7/Decis_es_Judiciais_nos_crimes_de_roubo.doc.


O que chamou particular atenção naquele estudo foi a divulgação de uma tabela pela qual os pesquisadores levantaram os índices ligados às justificativas para a condenação, majoração da pena ou negação da progressão de regime. Vejamos:

Fundamentação da Sentença/ Acórdão:

Gravidade do delito — Sim: 60,83 / Não: 34,71 (*)

Periculosidade do agente — Sim: 56,86 / Não: 38,68 (*)

Defesa da sociedade/Prevenção do crime — Sim: 41,65 / Não: 53,88 (*)

(*) Diferenças referentes a dados não informados, não divulgadas porque apresentam coeficiente de variação superior a 15%, valor definido como limite para o estudo

Fonte: Poder Judiciário do Estado de São Paulo.

Todas as citações que realizei têm número do protocolo, comarca de origem e data da sentença/publicação. Os dados estão à disposição no sítio virtual da Corregedoria Geral de Justiça do Estado de Mato Grosso e poderá ser acessado livremente em http://www.tj.mt.gov.br/cgj/Servicos/BancoSentenca.aspx

Acredito que as categorias “gravidade do delito”, “periculosidade do agente” e “defesa da sociedade e prevenção”, tenham sido metodologicamente escolhidas para remeter o estudioso às questões vinculadas ao discurso biológico, do ponto de vista da criminologia, e do “direito penal do inimigo”, com a prevenção geral negativa e positiva, do ponto de vista do direito penal.

Posto esse enfoque sobre as sentenças paulistas, cuja amostragem foi dirigida para crimes contra o patrimônio (uma das tônicas da criminologia crítica a relacionar criminalização de bens jurídicos de natureza capitalista), coloquei-me a pesquisar genericamente de que forma os magistrados do Estado de Mato Grosso punham-se a caracterizar os “criminosos”.

Não prospectei no banco de dados da Corregedoria Geral de Justiça de MT dados alusivos a uma só categoria de delitos e tampouco apresento os resultados em forma estatística: prefiro citar casos paradigmáticos como ensaio para uma pesquisa de campo, seja realizada por mim, seja por outros. Todavia, quero ressaltar a variedade de comarcas pesquisadas. Não há uma concentração de formas de decisão. Ao contrário, a generalidade dos juízes matogrossenses decidem usando-se de critérios morais, subjetivos e, sob o enfoque teórico, preventivos e biopsicológicos.

Os resultados do breve apanhado demonstram:

a) o juiz usa de critérios morais pessoais ou coletivos, declarando expressamente o “delinqüente” imoral ou amoral, necessitando de repressão ou tratamento (vide Ferrajoli);

b) o juiz identifica o acusado em situação de alteridade, identificando o “risco” na convivência com a diversidade, construindo uma linguagem própria correlacionada à legitimidade do procedimento (vide Luhman e Derrida);

c) o juiz leva em conta questões supralegais das mais diversas (imprensa, aceitação ou repulsa popular, alarme coletivo, clima de insegurança etc — vide Hassemer);

d) o juiz fundamenta as decisões em ciências estranhas ao Direito e que não domina profissionalmente, cuja preparação é insuficiente (vide Dahrendorf);

Portanto, adiantemo-nos na exposição.

Círculo vicioso

Nenhum juiz reconhece que julga conforme suas impressões pessoais sobre o acusado. Preferem dizer que julgam os fatos. Não é verdade. Os magistrados, ainda atentos à etiologia e a teorias do risco, ainda centram suas sentenças nos supostos “índices de periculosidade” do autor, atuando mais como psicólogos do que julgadores, aplicando seus próprios valores sobre terceiros, numa fundamentação essencialmente jurídica.

Uma rápida consulta ao banco de sentenças do Tribunal de Justiça de Mato Grosso é capaz de desvendar essa armadilha neopositivista. Convido o leitor para, daqui em diante, ler referências reais de sentenças e decisões penais do Estado de Mato Grosso e refletir sobre elas. Com o objetivo de facilitar a leitura, aplicarei o itálico como método de referência à fala judicial selecionada.

Para alguns, a “periculosidade” é simplesmente responder a outro processo criminal, como se extrai: o fato dela encontrar-se respondendo a processo, pela mesma pratica delitiva, evidenciando sua periculosidade (Protocolo 94087, 9ª Vara de Cuiabá-MT, em 2007). Mesmo que não haja imutabilidade da decisão condenatória, como demanda a Constituição de 1988, ainda assim o fato de estar na posição de acusado firma, por si só, no imaginário judicial, antecedentes tão desfavoráveis a ponto de serem citados noutra sentença, “evidenciando” uma periculosidade que, em última análise, não se sabe exatamente o que é porque se trata de uma categoria não-jurídica.


Para outros, a afetação social são causas de “periculosidade”: assim, a presença de duas causas de aumento de pena denota maior periculosidade do agente, que agride a ordem social de modo mais exacerbado e maior risco para a vítima, impondo, por conseqüência uma majoração acima do mínimo legal (Protocolo 17556, 3ª Vara de Campo Verde-MT, em 2008). Ora, aqui se vê um dado pitoresco: ao mesmo tempo que a pena já foi majorada por critérios legais, o magistrado utiliza-se do próprio acréscimo para imputar ao acusado uma nova hipótese de exacerbação que é a “periculosidade”, calcada justamente nas causas de aumento de pena. É um verdadeiro círculo de prejuízos pela suposição de perigo social.

A prevenção especial ainda é utilizada pelos magistrados, cotejando a pena pela iminência da agressão à sociedade ou da probabilidade calculada pelo próprio magistrado, conforme se pode observar: Portanto, permitir que elementos desse nível de periculosidade tenham acesso à sociedade novamente, antes de efetivamente cumprirem suas penas, é expor a vida de inocentes a perigo (Protocolo 31063, 1ª Vara de Barra do Bugres-MT, em 2008).

Considerações de ordem moral, ética, social e psicológica também são freqüentes na definição de “periculosidade”. Termos como “destemor”, “sordidez”, “baixeza” e outros termos subjetivos também se fazem maciços. A questão é saber se o “objeto de pena”, portador de um “nível de periculosidade” insuportável, no entender do magistrado, sairá “recuperado” após o cumprimento da pena.

Observemos alguns casos onde os conceitos pessoais do juiz foram determinantes: a) revela audácia e destemor do agente da infração, além de completa insensibilidade moral, despida de valores éticos, denotando intensa periculosidade, todo a exigir repressão mais rigorosa (Protocolos 308350, 309274, 312383, 308390, 310346, 310535, 314475, 313260, da 1ª Vara Criminal de Rondonópolis-MT, todos do ano de 2008) ; b) revelando alto grau de periculosidade, haja vista tratar-se de crime hediondo, repugnante e sórdido (Protocolos 32991, 33033, 32965, 28627, 34129, da Vara Única de Colniza-MT, todos em 2008) ; c) às circunstâncias ficaram estampadas face da audácia e periculosidade do agente, visto ter praticado o crime à luz do dia em local movimentado da cidade, demonstrando uma total insensibilidade (Protocolos 63225, 61455, da Vara Única de Tangará da Serra-MT, em 2007); d) revela audácia e destemor do agente da infração, além de completa insensibilidade moral, despida de valores éticos, denotando intensa periculosidade, todo a exigir repressão mais rigorosa (Protocolos 308350, 309274 da 1ª Vara Criminal de Rondonópolis-MT); e) revela, pela sua conduta, alta periculosidade social, ausência de limites e de senso crítico, além de preocupante ousadia (Protocolos 406616, 408685, 408821, da 6ª Vara Cível – Infância e Juventude, de Rondonópolis-MT, em 2008) .

Na primeira citação, “insensibilidade moral” e despojo de “valores éticos” não são categorias jurídicas, o magistrado fundamenta a sua decisão pelas impressões puramente subjetivas e claramente preconceituosas, além de não ter domínio técnico de institutos de psicologia para definir o acusado tal qual definiu. No segundo trecho, é o tipo de crime que define o grau de periculosidade, sendo que o julgador adjetivou com elementos estranhos ao ordenamento jurídico, determinados fatos tipificados como delitos. Então a “preocupante ousadia” é fator de prevenção e aumento de repressão.

Interessante mesmo é a terceira passagem. O horário do crime (à luz do dia), contou na cognição do magistrado. Perpetrar o fato delituoso à noite poderia alterar a forma de compreensão judicial. Na verdade, a questão não é essa e seria ingenuidade pensar assim. Trata-se de uma predisposição negativa que necessita ser justificada de algum modo: nesse caso, apontou-se a “audácia” do criminoso pelo horário inovador para a execução do delito.

E, finalmente, julga-se conforme o conceito social do delito e não conforme a própria legislação, agravando-se assim duplamente a pena: devendo prevalecer o bem-estar social sobre o individual, pois a quantidade de substância entorpecente encontrada com o denunciado evidencia a sua periculosidade e a conduta do mesmo, que revela extremo risco à ordem pública, com a prática de um crime abominável para a sociedade (Protocolo 17621, da Vara Única de Araputanga-MT, em 2008).

A antiga fórmula ou binômio “bem social” versus “bem individual” é invocado no caso acima. Ocorre que, num estado democrático de Direito, o ordenamento penal segue a uma lógica essencialmente liberal, estando a normatização atuando como limite de contenção contra a vontade estatal e não o contrário. A investida de um magistrado, equacionando a condenação como forma de “defesa social”, identificando o acusado como “perigoso” e o delito como “abominável”, é excessiva e completamente alheia à legislação e ao próprio regime constitucional de garantias.


Todavia, separei três casos extremamente significativos. O primeiro diz respeito à medicalização do direito penal. O magistrado repassa a responsabilidade penal a outros órgãos estatais a coadjuvar uma pena indeterminada. Observemos: determino que a perícia médica para apurar a sua periculosidade seja realizada no prazo de um ano, ficando a incumbência a cargo da Secretaria Municipal de Saúde (Protocolo 16260, de Brasnorte-MT, em 2008). Então, ainda está em marcha a antiga tensão entre a medicina forense e o Poder Judiciário, uma vez que o magistrado entende como não-suficiente a pena imposta — é necessária uma verificação extra-jurídica de caráter médico para verificar se o condenado está “em condições” de conviver em sociedade, surgindo então a hipótese de penas indeterminadas e condicionadas ao “parecer” de outro ramo do conhecimento, diferente do saber jurídico.

O segundo caso emblemático diz respeito ao julgamento conforme a opinião pública, sendo essa a justificativa para mensurar a “periculosidade”. O juiz cita o clamor social e o interesse público como elementos jurídicos capazes de majorar a pena, conforme se vê: há que se ter em vista a necessidade de manutenção da ordem pública em crimes de tamanha gravidade, que não apenas suscitam clamor público como revelam periculosidade de seus autores, devendo o interesse da sociedade prevalecer em detrimento do direito individual do réu, independentemente das condições pessoais que este possa ostentar (Protocolo 25469, da 2ª Vara de Comodoro-MT, em 2008). Quero sublinhar o final — é perigoso o réu pelo clamor social, independentemente das condições pessoais exibidas em juízo. E, novamente, o “interesse social”, verbalizado por um burocrata, vem a prejudicar o acusado, posto em situação não só de inferioridade processual como de inferioridade social.

E, por fim, o magistrado utiliza-se da repercussão do fato nos jornais para amparar o seu entendimento: no caso dos autos, o acusado, em concurso de agentes, desempenhou atuação extremamente audaz, com elevada periculosidade, tendo causado verdadeiro sentimento de pânico nas vítimas, o que foi amplamente reproduzido pelos veículos de comunicação local (Protocolo 42573, da 5ª Vara de Sorriso-MT, em 2008). A questão é mensurar o entendimento do julgador, na hipótese de não haver divulgação nos veículos de comunicação regional — será que essa circunstância é válida/legítima para impor uma majorante na fixação da pena?

Pesquisando as indexações contidas no repositório de jurisprudência, extraio o nítido delineamento de várias teorias que são mal absorvidas e misturadas entre si: o direito penal do autor, seja pelo finalismo, seja pelo funcionalismo penal. E algumas tendências:

a) julgar consoante padrões morais;

b) julgar conforme o clamor público;

c) julgar conforme a mídia e impacto social;

d) identificar o inimigo na zona de pobreza, protegendo os bens jurídicos ligados ao patrimônio;

e) não há qualquer sistematização da definição de “perigoso”, sendo completamente arbitrária a fixação do conceito.

Afinal, quem é mais perigoso? Quem define ou quem é definido?

A origem do mal

Acredito que valha a pena nos debruçarmos na questão da mentalidade das autoridades judiciárias acerca da análise da “personalidade” do imputado. É sobremaneira relevante deixar aclarada uma forte tendência jurídica positivista, pouco preocupada em qualquer atualização, porque reproduz, na íntegra, conceitos que foram balizados no século XIX.

Expressões que, sem qualquer reserva, taxam o acusado de portar uma “personalidade deformada” denotam a manutenção dos paradigmas cientificistas passados, centrados na psiquiatria. Do ponto de vista do indivíduo, o criminoso é sinônimo de “desajustado”, enquanto que, do ponto de vista social, é um “perigo”, uma “ameaça”, uma “doença contagiosa”, até mesmo uma “aberração”, necessitando de neutralização, isolamento e um programa de reeducação, na típica tendência de prevenção especial.

Mesmo que as tendências penais ligadas às teorias da prevenção especial estejam, por assim dizer, “superadas”, ainda assim tarjar o acusado como um sujeito passivo de tratamentos, educação e transformação de toda a sua natureza interior reflete uma resistência na percepção de identificar o fenômeno criminal não como um resultado social e sim como um desvio, problema, deformidade. Numa palavra — a questão do crime está, na visão de muitos magistrados, fincada profundamente na individualidade do ser que precisa ser “reformada”.

É exatamente aí que se colocam questões. Quem reforma? Como reforma? Com que padrões? Quem os dita?

Sobre o juízo de personalidade, há alguns exemplos marcantes: a) personalidade maculada, parece inadaptado ao convívio social pacífico. Não há registro de antecedentes criminais. Há notícias de que sua situação econômica é humilde (Protocolo 107071, da 6ª Vara Criminal de Várzea Grande, em 2007); b) a personalidade deformada do paciente, incompatível com a vida em sociedade, é suficiente para o agravamento da pena-base (Protocolo 18521, da 3ª Vara de Jaciara-MT, em 2008); c) demonstrando uma personalidade deformada e voltada para o ataque ao patrimônio alheio (Protocolo 15798, da 3ª Vara de Campo Verde-MT, em 2008 ); d) a ficha criminal do réu é reveladora de que se trata de pessoa de personalidade deformada e voltada para a criminalidade, já que o mesmo fez do mundo do crime uma habitualidade. Em conseqüência, pode-se afirmar que o réu também tem péssima conduta social (Protocolo 27638, da 1ª Vara Criminal de Cuiabá-MT, em 2008).


Mesmo “não havendo registro de antecedentes criminais”, o magistrado define o acusado como tendo uma “personalidade maculada”, sinônimo de “contaminada”, “suja”, “impura”. No outro caso, a vivência do criminoso é incompatível com a vida social, como se não fosse socializado num determinado meio ou dentro de um grupo. A “deformidade” diagnosticada no espírito, na alma do acusado pelo magistrado é tipicamente uma teoria imediatamente posterior à Cesare Lombroso, onde os pesquisadores entenderam que os desvios criminosos não estavam à mostra fisicamente e sim psicologicamente. De toda a sorte, domina a mentalidade de prospecção íntima do réu.

Conclui-se que não só o acusado é tratado judicialmente pelo cotejo de sua personalidade, realizado por profissional sem qualquer formação específica, como é deveras influente o critério de julgamento subjetivo de conteúdo moral. Até mesmo as posturas do réu de “colaboração” com o sistema penal são havidas como exemplos de “desvio” de personalidade: quanto a confissão na fase inquisitorial e posterior negativa parcial da autoria é perfeitamente normal. Aliás, essa é uma metodologia praticada pelas pessoas providas de personalidade deformada, quero crer, in casu, pelas conseqüências neurológicas dos entorpecentes (Protocolo 48214, da 3ª Vara Criminal de Cáceres, em 2008). É típica tal “normalização” do direito positivista quanto às classificações, mas o que chama especial atenção é que tenha o magistrado ignorado o estado de dependência para adentrar nas “metodologias” internas do criminoso, imputando-lhe a “personalidade deformada” ao rechaçar a acusação formulada contra ele mesmo.

Também são comuns referências sobre “personalidades violentas”, como se o acusado não tivesse qualquer alternativa à sua própria constituição biológica, num estado de previsibilidade diante de problemas de ajustamento, de formação ou de constituição, formando um previsível Direito Penal ontológico, ligado mais às impressões moralistas do que à análise judicial do fato imputado.

Sobre esse “germe” da violência na “personalidade” do sujeito processado, chamo atenção para os trechos das seguintes decisões: a) revelam tratar-se de pessoa de personalidade violenta e propensa a práticas delitivas, tanto é que depois dos fatos em tela supostamente fez do crime uma habitualidade (Protocolo 51670, da 1ª Vara Criminal de Cuiabá-MT, em 2007); b) revela ter o réu personalidade violenta e conduta social desabonadora. O motivo do crime teria sido o fato de a vítima ter passado a mão nas nádegas da convivente do réu (Protocolo 33013 da 1ª Vara Criminal de Cuiabá-MT, em 2008); c) revelam ter o mesmo personalidade violenta e má conduta social, em face das reiteradas investidas contra a ordem pública (Protocolo 76210 da 1ª Vara Criminal de Cuiabá-MT, em 2008); d) ressai dos autos que o mesmo tem personalidade violenta e agressiva, não havendo, contudo, nada que desabone a sua conduta (Protocolo 46864 da Vara Única de Primavera do Leste-MT, em 2007); e) somente pelos crimes que registra é possível se auferir que o réu tem personalidade violenta e voltada para a criminalidade, sendo detentor de conduta social reprovável diante das reiteradas investidas contra a ordem a pública, trazendo desassossego à sociedade (Protocolo 81622 da 1ª Vara Criminal de Cuiabá, em 2008).

Chegamos, nessa altura, a algumas conclusões:

a) o juiz julga mirando aspectos subjetivos seus quanto às impressões sobre personalidades alheias, impondo a dose na penalização diante dessas mesmas opiniões subjetivas;

b) os fatos passados influem no convencimento judicial de forma marcante, sobretudo para classificar o acusado e sua “personalidade” como débil, violenta, distorcida ou inadaptada;

c) aspectos ligados ao conjunto vivencial do processado são tidos como irrelevantes; não merecem quaisquer referências judiciais que venham contribuir com a motivação do desviante, concentrando-se a sentença em desvendar o segmento ligado ao fato isoladamente e, daí, partir para a análise fragmentária da personalidade individual, sob o prisma do fato criminalizado, num claro equívoco metodológico.

Ainda sobre a personalidade do processado, percebe-se que a “culpa” pela degradação é imputada exclusivamente à pessoa do réu, portador de uma “personalidade fraca”, débil, suscetível dos males a que está submetido, conforme se lê: a) revela tratar-se de pessoa de personalidade fraca e insensibilidade moral, além de conduta social desabonadora (Protocolo 49185, da 1ª Vara Criminal de Cuiabá-MT, em 2007); b) extrai-se dos autos ser o réu portador de personalidade fraca e perturbada e conduta social desaprovadora, já que a época do crime, como já dito, tratava-se de andarilho e morador de rua, com habitualidade na ingestão de bebida (Protocolo 65675 da 1ª Vara Criminal de Cuiabá-MT, em 2008).


Então, os magistrados variam de percepção: uns imputam violência e degradação à personalidade do indivíduo, uma propensão disforme e cruel por natureza, gerando atos brutais e condenados moralmente; outros, são “condescendentes” com a ação, pressupondo que se trata de uma personalidade débil, despida da resistência moral capaz de fazer frente às “tendências criminosas”. Ser andarilho, morador de rua, mendigo é sinal de fraqueza moral e não de miséria social. Ainda sob esse enfoque mais “brando”, a culpa é sempre do acusado, considerado individualmente.

Não bastasse o dependente de droga e álcool ser culpado simplesmente de ser “bêbado” ou “drogado” — portanto, uma personalidade inadaptada (para dizer o mínimo) —, os problemas sociais são solenemente ignorados e, ao contrário, tratados como demérito do próprio acusado, conforme se extrai dessa sentença judicial: as circunstâncias judiciais se apresentam anormais, já que o acusado tem a vida pautada pela mendicância, conduta de ampla inaceitação social, o que constitui motivo hábil à elevação da pena-base além do mínimo legal, baseando-me na anormalidade da conduta social (Protocolo 93999, da 7ª Vara Criminal de Cuiabá-MT, em 2007).

Então, o miserável é desfavorecido processualmente em relação ao portador de melhores condições. “Ser pobre” ou “estar em condições miseráveis” é motivo de repulsa judicial, ainda que não haja expressa e taxativamente qualquer elemento jurídico concreto que torne palpável tal desequilíbrio financeiro. “Ser miserável” é, nas palavras do julgador, “uma anormalidade”.

Juízos de valor imiscuídos com juízos de fato e de direito são tão constantes no banco de sentenças da Corregedoria Geral de Justiça de Mato Grosso que chega a ser exceção uma referência que passe ao largo de tais imbricações. O espelho desse perfil judicial voltado fundamentalmente para a reprovação subjetiva, calcada em valores internos e não juridicamente expressos na legislação penal, está refletindo expressões de alto impacto eticizante e pouca carga jurídica. Daí ser a concentração na “pessoa do acusado” um desdobramento de sentenças judiciais condenatórias, ou seja, o juiz comporta-se mirando mais o aspecto moral do que o fato em si, trazendo a lume uma natureza ôntica do Direito Penal e, portanto, ilegal.

Julga-se não pelo que se fez. Julga-se pelo que se é. É o típico Direito Penal do autor, sem dissimulações.

Vejamos os adjetivos sempre relacionados ao quesito moral do imputado, utilizados em várias decisões judiciais: a) pessoa de personalidade doentia e um contumaz mentiroso, conforme se comprovou neste juízo, durante a tramitação do feito (Protocolo 67623 da 1ª Vara Criminal de Barra de Garças-MT, em 2007); b) denotam uma personalidade amoral, desvirtuada de qualquer valor ético (Protocolos 94559, 33432, 35070, da 8ª Vara Criminal de Cuiabá-MT, em 2008); c) personalidade amoral, de pessoa ociosa, comprometida pelo uso de drogas, ainda em formação, vez que o acusado só tem 19 anos de idade (Protocolo 104855, da 3ª Vara Criminal de Cuiabá-MT, em 2007); c) aqui, começa um verdadeiro festival de imoralidades (Protocolo 113589, da 4ª Vara Criminal de Cuiabá-MT, em 2008); d) demonstrando ser antiética e imprópria para portar o título de mãe (Protocolo 12747, da Vara Única de Ribeirão Cascalheira-MT, em 2007); e) cabe, agora, verificar se o requerido agiu de forma ilícita e antiética (Protocolo 75686, da 3ª Vara de Sinop-MT, em 2007); f) portanto, nada justifica a conduta, vil, desprezível e abominável, perpetrada pelo réu. Considerando as circunstâncias judiciais acima expostas, que lhe são desfavoráveis, entendo que para a prevenção, reprovação da conduta (Protocolo 33690, da Vara Única de Colniza-MT, em 2008).

O crime é tratado acima como uma “doença”. Além de outros adjetivos extralegais como “vil”, “desprezível”, “abominável”, extraídos do conjunto de valores pessoais do juiz.

E, finalmente, uma última citação que acredito mais pitoresca: mesmo considerando os direitos constitucionais do acusado no processo penal, a vingança pessoal do magistrado emerge, frustrado que está e, munido do ímpeto de revanche social, faz da condenação uma retribuição pura e simples: inobstante seja um direito seu não fazer provas contra si, mas é abominável, como tenta subestimar o trabalho policial e judicial, é deixar evidente a sua intenção em zombar com a Justiça, ao limitar-se a dizer que apenas desconhece os motivos (Protocolo 72247, da 1ª Vara Criminal de Cáceres-MT, em 2008).

Resistir ao poder das autoridades é negativo. Não só negativo, como propenso à vinganças processuais. Para o magistrado, o acusado deve “contribuir” com o sistema. Ao “subestimar o trabalho policial e judicial”, “zombando” da Justiça, o juiz toma para si a vingança do aparelho policial, a imputar-lhe um acréscimo de pena por não ter o réu se adequado perfeitamente à previsibilidade burocrático-judicial.


É irretorquível a presença do positivismo na mentalidade julgadora, pelo que se viu. O Judiciário não ultrapassou a vingança social como principal objetivo do Direito Penal, impondo um castigo ao acusado; e, quando não o faz, acredita ser a condenação um veículo de cura para uma doença, redenção para a alma ou simplesmente de reflexão e reforma nos padrões morais do apenado. Por fim, não há qualquer resto de tendências iluministas nesse Direito Penal praticado na atualidade, gravitando em torno de antigas máximas religiosas e de caráter profundamente subjetivo, repleta da tônica moralizadora do discurso conservador.

Inversão de valores

Prospectei no banco de sentenças da Corregedoria Geral de Justiça de Mato Grosso conceitos ligados à criminologia, desvelando como parecem ao magistrado o crime, o criminoso e a delinqüência. Penso ter demonstrado que os julgamentos estão impregnados de valores morais subjetivos, ligados ao imaginário tarjado de preconceitos de classe dos quais o processado é etiquetado pelo sistema penal. Prossigo na pesquisa, voltando a atenção para os conceitos de “clamor público” e “ordem pública”, como elementos influentes para a formação da convicção judicial.

O que é “clamor popular”? É claro não haver definição jurídica, porque não pode pautar-se o magistrado com base nos sentimentos de terceiros. Ainda assim, o “clamor público” é sentido como elemento relevante para as decisões. Inicialmente, sublinho uma decisão que, a despeito das condições pessoais do acusado, foi a comoção social determinante: apesar de primário e não possuir maus antecedentes, há que se ter em vista a necessidade de manutenção da ordem pública em crimes de tamanha gravidade, que não apenas suscitam clamor público como revelam periculosidade de seus autores, devendo o interesse da sociedade prevalecer em detrimento do direito individual do réu, independentemente das condições pessoais (Protocolo 25469, da 2ª Vara de Comodoro-MT, em 2008).

E não é incomum encontrarmos a confusão entre a culpabilidade do imputado e o clamor, conforme se lê: verifico que o acusado agiu com a culpabilidade intensa, vez que crimes dessa natureza causam grande clamor social (Protocolo 19608, da 1ª Vara Criminal de Cáceres-MT, em 2007). Ou ainda a referência à “credibilidade” do Poder Judiciário somada à comoção, agindo o juiz como justiceiro ou como mediador dos anseios populares. Assim, decreta-se a prisão com escopo de garantir a ordem pública – entendido como impediente para que o réu, solto, venha a praticar novos delitos, ou de acautelamento do meio social, garantindo a credibilidade da justiça, em delitos que provoquem clamor popular (Protocolo 21934, da 2ª Vara de Pontes e Lacerda-MT, em 2007 ).

Finalmente, a prisão é sempre avocada para acalmar a sociedade, promovendo uma sensação de segurança pública: a prisão é efeito natural e imediato da sentença condenatória, em especial por tratar-se de crime que provocou notório clamor público, e que levou mais de uma década para ser deslindado (Protocolos 78460, 31417, 48300, 64926, 87042, 78631, da 1ª Vara Criminal de Cuiabá-MT, em 2007 e 2008).

Essa sensação de tranqüilidade também está relacionada ao conceito de “ordem pública”. Como não se sabe exatamente o que seja, gostaria de realçar um conceito colmatado pelo próprio magistrado que é perfeitamente apto a demonstrar o grau de subjetivismo. Vejamos uma definição judicial, estampada numa decisão que decretou a prisão para garantir a ordem pública, qualificada como estado de tranqüilidade social e respeito a bens e pessoas, instituições e autoridades (Protocolos 308350, 312383, 313260, 314306, 314612, 313595, 313881, 316119, da 1ª Vara Criminal de Rondonópolis-MT, em 2007 e 2008). Então, pelo que se lê, o respeito a bens (em primeiro lugar) e pessoas (em segundo lugar), instituições sem que sejam declinadas quais e autoridades, citadas de forma vaga, são os principais pressupostos para a manutenção da ordem pública.

E há uma segunda definição ainda mais pitoresca: faz-se necessário o resguardo da ordem pública a fim de que se garanta o reinado do estado de paz e tranqüilidade que sempre deve grassar em um Estado de Direito (Protocolo 306363, da 1ª Vara Criminal de Rondonópolis-MT), ainda que seja desconhecida essa “monarquia da paz e tranqüilidade”. São conceitos completamente arbitrários, de caráter exclusivistas, ao ponto de se afirmar serem pessoais. Entende-se, nessa altura, a preocupação de Luigi Ferrajolli com o “garantismo”, apto a desmascarar o discurso moralista da magistratura, lutando para conferir uma nova razão iluminista liberal, sob a perspectiva de valores politicamente arquitetados para a contenção de poder. Na atualidade, é o caminho oposto que assistimos — critérios subjetivos da magistratura, com impregnação moral/ética enquanto suporte de decisões, ampliam a margem de discricionalidade e, portanto, tanto maiores são as chances dadas ao autoritarismo.


Não raro, a análise da “personalidade” do “criminoso” também é cotejada e misturada com a “ordem pública”, antevendo-se eventuais novos delitos, julgando-se o acusado não pelo passado, mas pelo futuro imponderável. Expressões como “perverso”, “maldoso”, “feio”, “horrendo” são constantes: a) da mesma forma não poderá o mesmo recorrer em liberdade, visando assegurar a ordem pública, vez que sua personalidade parece voltada para o crime (Protocolos 15142, 22784, 2699, da 1ª Vara de Barra do Bugres-MT, em 2007 e 2008); b) O réu teve a prisão preventiva decretada com fundamento na necessidade de garantia da ordem pública, que por sua vez foi embasada no motivo e no modo perverso como o crime foi praticado, evidenciando a periculosidade e insensibilidade do réu (Protocolo 48300, da 1ª Vara Criminal de Cuiabá-MT, em 2007); c) ambos tratam-se de pessoas perigosas e uma vez soltos colocarão em risco a ordem pública (Protocolo 78460, da 1ª Vara Criminal de Cuiabá-MT, em 2007).

E, finalmente, o juiz julga conforme o “sentimento social” de repúdio, indignação e comoção e não pelas balizas legais, sendo profundamente influenciável pela imprensa, pela pressão popular, por elementos externos aos autos. Selecionei alguns exemplos: a) visando assegurar a ordem pública diante do abalo que o crime causou nesta pequena comunidade, repugnante pela forma brutal de sua execução, provocando repúdio, comoção e indignação (Protocolo 11436, da 1ª Vara de Barra do Bugres-MT, em 2007); b) presente a circunstância da manutenção da ordem pública, posto que a conduta horrenda do acusado por certo abalou as pessoas de bem que convivem nesta sociedade (Protocolos 33001, 37800, da 5ª Vara de Sorriso-MT, em 2007).

A conclusão é uma só. No espetáculo do processo penal, nos moldes de uma neutralização idealizada, de uma prevenção ineficiente e de uma ressocialização fantasiosa, está claro que os critérios legais não são os únicos na racionalidade judicial, extrapolando em muito as balizas de garantia, dando vazão a sentimentos coletivos que são espelho do desejo da simples vingança. Em nome dessa pseudo-segurança, munido de subjetivismos divorciados da lei, prende-se, condena-se, vinga-se.

***

Avançando no banco de sentenças do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, proponho-me a avaliar o conceito judicial de “credibilidade”, mormente no que tange à do próprio Poder Judiciário que, no mais das vezes, gera uma intervenção penal de alto impacto. Uma vez mais, facilitando a leitura, vou citar as decisões ipsis literis com o itálico e não com aspas. Ao que tudo indica, os juízes acreditam que a prisão ou condenação de um acusado tem relação estreita com a própria credibilidade do poder, usando-se de conceitos aberto, subjetivos e de fundo moralizador.

Preliminarmente, à guiza de introdução, reproduzo uma máxima constante numa decisão paradigmática: por conseguinte, o Poder Judiciário deve estar em plena harmonia e compasso com a realidade dos anseios de seus jurisdicionados possa auferir a credibilidade perante a sociedade que já anda desacreditada acerca da existência de homens sérios, honestos e compromissados com a carreira da magistratura (Protocolos 12447, 9559, da 1ª Vara de Alto Araguaia-MT, em 2008).

O “populismo judiciário” de matiz criminal será demonstrado.

Os magistrados acreditam que a sociedade poderá questionar o Poder Judiciário em função da liberdade de algum criminoso. E assim, utilizam fundamentos morais em expressões recheadas de conteúdo ético que não estão presentes nos requisitos legais para a decretação da segregação. Vejamos: a) foi-lhe decretada a prisão preventiva, fundamentada, em síntese, na frieza em que o ignóbil delito foi praticado, a fim de se garantir a credibilidade da justiça e a ordem pública (Protocolo 85749, da 1ª Vara Criminal de Cuiabá-MT, em 2008); b) ademais, o conceito de ordem pública não se limita a prevenir a reprodução de fatos criminosos, mas também a acautelar o meio social e a própria credibilidade da justiça em face da gravidade do crime e de sua repercussão (Protocolos 12859, 12790, 13494, 14102, da Vara Única de Pedra Preta-MT, em 2008); c) coloca em risco a integridade física e psíquica de terceiros e a própria credibilidade do Judiciário, revelando-se necessária a custódia cautelar para manutenção da ordem pública (Protocolos 314338 e 314946, da 2ª Vara Criminal de Rondonópolis, em 2008); d) a prisão com a presente condenação é ainda mais necessária uma vez que visa garantir a aplicação da lei penal, bem como para resguardar a ordem pública ante a gravidade do crime e credibilidade da Justiça (Protocolo 25825, da Vara Única de Vila Bela da Santíssima Trindade-MT, em 2008).

Gravidade do crime e repercussão, personalidade do autor e credibilidade do Poder Judiciário formam a trinca de justificativas extralegais usadas com despudor pela judicatura. Quando o órgão judicial se aventura em definir um conceito não-jurídico e incorporá-lo à prática legal, a crise teórica tende a se agudizar. Eis uma definição pinçada do banco de sentenças: ao referir-se a Legislação Adjetiva em assegurar ordem pública, nada mais quer dizer: impedir que o autor pratique novos delitos e acautelar o meio social e a própria credibilidade da Justiça em face da gravidade do crime e de sua repercussão, como medida de contenção da violência que se vem alastrando de modo incontrolável (Protocolo 35183, da Vara Única de Colniza-MT, em 2008). Presentes, simultaneamente, os três conceitos indeterminados que têm sido repelidos reiteradamente pelo STF, flagrantemente inconstitucionais que são.


O mais interessante do tema “credibilidade” é que essa categoria é usada sempre em desfavor do acusado, a conter a desmoralização do Poder Judiciário face às atitudes do suposto criminoso, mirando sempre na opinião pública. Sopesando a palavra do réu e das vítimas e testemunhas, constantemente usando-se de presunções e forte conteúdo moral e ético, constatamos uma depreciação judicial em relação ao imputado. Vejamos: tratando-se, a vítima, portanto, de uma pessoa sem qualquer mácula no seu caráter, obviamente, sua palavra tem peso e grande credibilidade para a Justiça. O fato dela já ter freqüentado casa de prostituição é irrelevante (Protocolo 8665, da Vara Única de Dom Aquino, em 2008).

Por fim, há completa inversão dos valores constitucionais, em nome da suposta “credibilidade judiciária”. Acolher-se “provas” nascidas na fase indiciária, sem contraditório e classificá-las como merecedoras da “credibilidade”, distorce completamente o sistema de garantias constitucionais. Alguns exemplos da minha perplexidade: a)impõe salientar que a prova produzida na fase de inquérito deve ser considerada, pois a prova vale, não pela fase em que é produzida, mas pelo grau de credibilidade que gera no espírito do julgador (Protocolos 9665, 114301, 110851, 111336, 114301, da 3ª Vara Criminal de Várzea Grande-MT, em 2007 e 2008); b) o depoimento dos policiais que efetuaram a prisão em flagrante dos acusados é merecedor de irrestrita credibilidade (Protocolos 22601, 23284, 22675, 23660, da 4ª Vara de Lucas do Rio Verde-MT, em 2007 e 2008); c) dúvida não há que o depoimento da vítima deve ser recebido com credibilidade, e está a servir de elemento de prova, como suporte a um decreto condenatório (Protocolo 2234, da Vara Única de Rosário Oeste-MT, em 2008); d) condenação com base em indícios. Admissibilidade se somada a outras provas apresentam elementos positivos de credibilidade. De acordo com o princípio da livre convicção do Juiz, a prova indiciária ou circunstancial tem o mesmo valor das provas diretas (Protocolo 14964, 15275, 15545, 11403, 15486, 15544, 16321, da Vara Única de Poconé-MT, em 2007 e 2008).

Em qualquer nação onde prospera o estado democrático de Direito, o depoimento da vítima não pode ser classificado tecnicamente como prova. A livre convicção do magistrado serve para desamarrá-lo das tarifas probatórias, jamais para acolher como prova os meros indícios colhidos sem qualquer contraditório. Uma vez mais, demonstrado está o invasivo subjetivismo judicial a preservar uma ficta “credibilidade” com institutos dos mais radicais — a prisão. E, de outro lado, em nome desse mesmo crédito popular, imaginário extralegal, o pretor faz pior: julga conforme suas impressões arbitrárias. Juiz não é candidato a nada, não precisa de popularidade. O respeito pela lei já basta. Os cidadãos respeitarão os magistrados não pela agudeza de suas decisões e sim pela legitimidade, mesmo afrontando as arquibancadas de ocasião.

Um século de atraso

Sob o enfoque da criminologia crítica e auspícios de um panorama libertador do direito penal, quero agora me deter na questionável categoria “reeducação”. A primeira questão diz respeito a se é possível a reclusão e os mecanismos penais educarem, de fato, um indivíduo para a liberdade no seio da prisão — uma contradição insuperável. A segunda questão, sempre recorrente, é de que forma julgam os juízes: com impressões pessoais recheadas de aspectos moralizadores e éticos que não têm qualquer previsão legal, o que é mais perigoso. Uma vez mais, peço licença aos leitores para deixar que as falas judiciais não sejam demarcadas pelas aspas e sim pelo itálico para facilitar a leitura.

A tônica moralista é mais marcante no trato das crianças e dos adolescentes. Vejamos um exemplo claro dos conceitos vagos a sustentar as decisões, ainda que sejam mais brandas uma vez que a substituição será eficiente para a retribuição em face do crime praticado e reeducação do condenado, sobretudo quanto aos valores e princípios ético-sociais (Protocolos 6490, 13346, 12275, da Vara Única de Pedra Preta-MT, em 2008). Incrivelmente, os juízes acreditam que a privação da liberdade é mais efetiva para a (re) educação do menor. Então, aplica-se uma superada prevenção especial apta a “reformar”, “reprogramar”, “conformar”, tendo a pena criminal, em nosso sistema, como função precípua a reeducação do condenado e a sua integração no convívio social, as regras que informam a execução penal devem ser interpretadas em consonância com tais objetivos (Protocolos 80111, 82500, 95885, 36437, 85924, da 2ª Vara Criminal de Cuiabá-MT, em 2007 e 2008).

Prossegue a teoria disciplinadora numa outra decisão judicial: medida sócio-educativa de internação, consoante se extrai da execução, acreditando-se assim, que uma medida branda, como a pugnada pela defesa, não será suficiente na reeducação do jovem. No mesmo sentido é o relatório de estudo psicossocial juntado aos autos, onde o parecer técnico sugere a aplicação da medida segregativa (Protocolos 29865, 29867, 32219, 34567, 29821, 31986, 29463, 33413, 29821, 33250, 33843, 29773, da 2ª Vara Especializada da Infância e Juventude de Cuiabá-MT, em 2007 e 2008). Claramente, temos no discurso oficial o resumo do “recondicionamento social”: a medida sócio-educativa de internação mostra-se a mais adequada à reeducação e ressocialização de menor que vem praticando reiterativos atos infracionais (Protocolo 63166, da 4ª Vara Cível de Tangará da Serra-MT, em 2008).


Um outro magistrado parece que completa o raciocínio anterior: Ressalte-se por imperioso: o objetivo precípuo da pena é a reeducação, ressocialização e a reintegração do apenado no seio da sociedade (Protocolo 79121, da 2ª Vara Criminal de Cuiabá-MT, em 2007). E, quase como uma repetição da técnica mimetizada: mas conforme se vê, tal medida não surtiu nenhum efeito sobre a vida deste adolescente, concluindo-se assim, que somente a medida segregativa poderá contribuir na sua reeducação, pois segundo consta, ele está estruturado no meio infracional, e, ainda, comprometido com o uso de entorpecentes, daí resultando a necessidade de um acompanhamento contínuo (Protocolo 33725, da 2ª Vara Especializada da Infância e Juventude de Cuiabá-MT, em 2008). Percebe-se que os termos aqui reproduzidos estão ligados sobretudo aos “delinqüentes” menores de idade.

A pergunta é: sinceramente, será que um juiz acredita que a “internação” ou “prisão”, quando seja um parente dele, é adequada para “ressocializar” o jovem ou adulto? Será o ressocializado acompanhado e “medicalizado” diuturnamente, como se disse? Serviria essa medida a jovens e/ou adultos de alto poder aquisitivo? E mais: havendo qualquer fato criminoso ligado às famílias dos burocratas-julgadores e demais “autoridades”, questiona-se se internações em instituições públicas de repressão seriam as medidas adequadas, na ótica daquele mesmo julgador que condenara o “desajustado” para “reeducar-se”.

Debrucemo-nos acerca do que pensam os magistrados: é certo que somente a medida segregativa poderá contribuir na reeducação de Eric, eis que a medida lhe proporcionará acompanhamento contínuo e diuturno que lhe introjete normas de convivência social (Protocolo 32992, da 2ª Vara Especializada da Infância e Juventude de Cuiabá-MT, em 2008). E, nessa ilusão penal de institucionalizar os acusados (sempre os outros) com “tratamentos” adequados e atenciosos, arremata outro juiz: essa é a medida mais adequada para ele, que permite a reeducação com acompanhamento e orientação de pessoas com capacidade técnica, tentando a reabilitação do referidos adolescente no seio da comunidade local (Protocolo 34007, da Vara Especializada de Infância e Juventude de Diamantino-MT, em 2007).

O isolamento pode “contribuir” na “reeducação”, sublinhe-se.

Com dificuldades de definir a finalidade da pena, lançam mão da multifuncionalismo, o que aliás, nos causa mais perplexidade: a medida adotada atende aos fins da pena, quais sejam prevenção e reprovação do crime e reeducação do sentenciado (Protocolos 14684, 12227, 4765, da Vara Única de São José dos Quatro Marcos-MT, em 2008). Salvo esse extremo “pan-penalizador”, geralmente a prevenção especial ainda é adotada na jurisprudência dominante: o Direito, principalmente o criminal, visa reprimir aqueles casos que necessitam de uma postura mais severa, visando primordialmente a reeducação (Protocolo 1973, da Vara Única de Arenápolis-MT, em 2007).

E, como é cediço, no Brasil, temos uma dupla penalização: a repressiva e a medicalizante a colmatar sentenças indefinidas, com muletas pseudo-científicas: revela-se indispensável à reeducação e prevenção, sem olvidar que fortalece a função da Administração da Justiça, porquanto atende fatos graves cumprindo, portanto, o seu verdadeiro papel (Protocolo 16806, 15861, 5920, da 2ª Vara de Chapada dos Guimarães-MT, em 2007 e 2008).

Pior do que isso, há conceitos vagos e pessoais de cunho subjetivo e eticizante, o que fere frontalmente o princípio da legalidade estrita: a prática do ato, em qualquer nível de participação, denotando desvio de conduta, há que ser repreendida, haja vista se tratar de menor, em fase de formação de valores, passível de reeducação moral e social (Protocolos 404297, 404636, 405210, da 6ª Vara Cível Especializada em Infância e Juventude de Rondonópolis-MT, em 2008). E arremata-se a reprodução desse discurso autoritário: em sede de reeducação, a imersão do fato infracional no tempo reduz a um nada a tardia resposta estatal (Protocolos 11792, 10216, 20317, 26717, da Vara Única de Ribeirão Cascalheira, 1ª Vara de Alto Araguaia-MT, em 2007 e 2008).

Até mesmo o famoso “atavismo” da violência, tão debatido nas universidades européias e norte-americanas, característica marcadamente positivista, aparece no banco de sentenças do TJMT: no que concerne a personalidade, demonstrou tratar-se de indivíduo violento, inescrupuloso e dissimulado. Os motivos são deploráveis, uma vez que por mero atavismo procurou saciar sua lasciva em detrimento de uma infante impúbere (Protocolo 62458, 30398, da 3ª Vara Criminal de Cáceres-MT, em 2007).

Parece Lombroso, Ferri, Carrara? Parece Garofalo, Spencer ou Bentham? Não, é o Brasil de hoje, cujas sentenças foram colhidas em 2007/2008, extraídos os trechos de um repositário oficial de jurisprudência que é o servidor on-line da Corregedoria Geral de Justiça do Estado de Mato Grosso. São cem anos de atraso em direito penal e em criminologia. São fantasmas que nos assombram a mentalidade autoritária latino-americana.


***

Encerrando a série de análise dos julgados disponibilizados no banco de dados do Tribunal de Justiça de Mato Grosso pelo roteiro da criminologia crítica, devemos nos adiantar nos conceitos que emprestam nome ao título — criminoso, criminalidade e criminalização. É fácil e cômoda a constatação do criminoso e da criminalidade, mormente quando traz consigo uma forte seletividade social em delitos patrimoniais, cometidos por pessoas em extratos marginalizados da população, na maioria. Veremos, contudo, que afora raríssimas exceções, os juízes ou desconhecem ou preferem ignorar o conceito de criminalização. Antes de avançar, novamente indico que não usei aspas e sim itálico, facilitando a leitura das citações judiciais ipsis literis.

Um primeiro problema impõe-se na análise da “delinqüência”. Confunde-se o termo com “autoria” e condena-se o acusado “porque é delinqüente” e não porque foi comprovada a autoria. Comprova-se adesão ao “Direito Penal do autor”. Vejamos três julgados: a) a solução absolutória é exigida quando o substrato probatório evidencia dúvida sobre a delinqüência daquele imputado (Protocolo 3327, da 4ª Vara de Lucas do Rio Verde-MT, em 2008); b) considerando que o acusado tem a personalidade voltada para a delinqüência, até mesmo porque já praticou outros atos delituosos antes da maioridade, fatos esses que não podem ser considerados como antecedentes, mas que também não podem passar despercebidos (Protocolo 14938, da Vara Única de Arenápolis-MT); c) portanto está cabalmente esclarecida a autoria do acusado, tendo em vista que ele, conforme percebi do conteúdo probatório, possui personalidade voltada à delinqüência (Protocolo 30877, 7532, 32337, da Vara Criminal de Diamantino-MT, em 2008).

Superada a constatação de que se julga pela personalidade do autor, categorização jurídica ontológica e ilegal num estado democrático de Direito, adianto-me nas citações de julgados que constatam uma “personalidade voltada à delinqüência”, num estudo “psicológico clínico” estranho ao contexto jurídico. Passo a citar cinco trechos de sentenças judiciais que rumam em uníssono para um conceito sólido de criminalidade pela “deformação” ou “doença” do acusado: a) a personalidade revela-se dissimulada e voltada para a delinqüência; os motivos do crime exsurgiram da cupidez em obter vantagem fácil a custa do patrimônio alheio (Protocolos 22626, 65540, 62790, 73715, 70347, 72998, 59026, 72400, da 3ª Vara Criminal de Cáceres-MT, em 2007 e 2008); b) da conduta social: pesa em desfavor do Réu o fato de ele se dedicar à ociosidade e à delinqüência, desde os 13 anos de idade, conforme ele próprio narrou (Protocolo 89840, da 8ª Vara Criminal de Cuiabá-MT, em 2008); c) não há que falar em medida sócio-educativa mais branda para menor que é reincidente, mostrando personalidade voltada a delinqüência (Protocolos 37120, 43668, 30688, 32908, 36541, 37775, 34659, 42883, 35766, da 2ª Vara de Pontes e Lacerda-MT, em 2008); d) apesar de não constar nos autos exame psicológico do acusado, este já foi condenado pelas práticas de furto por reiteradas vezes, o que demonstra que é voltado para a delinqüência; e) os antecedentes do réu não são favoráveis, a conduta social do réu é desfavorável como é fato notório neste município, personalidade do réu é voltada à delinqüência, motivo para a prática delituosa é normal (Protocolo 13124, da 1ª Vara de Paranatinga-MT, em 2007).

Como podemos notar, há uma clara “normalização” de matiz neopositivista no julgar, ou seja, para alguns magistrados, diante da “personalidade distorcida” do acusado, há uma “tendência inata, natural” para delinqüir, quase como um impulso íntimo, um determinismo atávico. Mesmo em notórios casos de dependência química, o culpado é a “personalidade fraca” do réu. Eis duas ilustrações: a) a conduta social não é boa, eis que a acusada é dependente química nessa condição encontra estímulos para praticar crimes. A personalidade revela-se voltada para a delinqüência (Protocolo 70385, da 3ª Vara Criminal de Cáceres-MT, em 2008); b) sua conduta social não é boa, costuma-se apresentar embriagado, e geralmente descontrolado quando em estado etílico. A personalidade do réu revela-se voltada para a delinqüência (Protocolo 68509, da 3ª Vara Criminal de Cáceres-MT, em 2007).

Sobram casos mais graves no julgamento da personalidade. Separei julgamentos que, em meu sentir, são paradigmáticos. Ou se trata de muita ingenuidade, simplismo e ignorância teórica ou realmente tem-se aplicado o “Direito Penal do inimigo” no Brasil. Mesmo não havendo antecedentes criminais, desconhecendo-se a conduta do acusado, é citada a “inclinação”, ou pior, a “opção” para a delinqüência, como se fosse a escolha de um vestibular: a) se pode extrair dos autos, péssima é sua conduta; valores totalmente invertidos, com inclinação à delinqüência. Quanto aos motivos: Não esclarecidos nos autos (Protocolo 24762, da 1ª Vara Criminal de Sinop, em 2008); b) não possui antecedentes criminais; sua conduta social merece reparos, eis que o seu comportamento é desassociado do meio em que vive; denota-se, ainda, personalidade voltada para a delinqüência (Protocolo 25897, da Vara Única de Sapezal-MT, em 2007); c) O réu registra antecedentes criminais. Conduta social desconhecida. De sua personalidade infere-se uma tendência para a delinqüência; d) conduta social não esclarecida, porém tudo indica que deixa a desejar. Personalidade mal formada, com a inclinação para a delinqüência (Protocolo 93960, da 1ª Vara Criminal de Sinop-MT, em 2008).

Felizmente, salva-se a Constituição em dois julgamentos de Hanae Yamamura e de André Barbosa Guanaes Simões, quando estes dois julgadores, ao não desconhecer a co-responsabilidade estatal, respectivamente, afirmam: a) incumbe ao Estado-acusador o ônus da prova da culpa do acusado, devendo o órgão investido de ofício judicante resistir à tendência de, em época de delinqüência exacerbada, caminhar para a persecução criminal a ferro e fogo, com desprezo as normas comezinhas (Protocolos 8528, 2613, 13546, 8582, da Vara Única de São José dos Quatro Marcos-MT, em 2008) e, depois, b) não há nos autos qualquer indicativo que o Estado, por suas notórias omissões, tenha imposto ao Acusado uma situação de exclusão tal que não lhe fornecesse outra saída que não a delinqüência (Protocolo 13281, da Vara Única de Querência-MT, em 2008).

Esses últimos sabem que, antes da criminalidade e do criminoso, há a criminalização, isto é, essa fábrica de produzir um exército de subempregados sem escolarização, típico do rótulo que não incide sobre um homem e sim sobre uma classe marginal onde, ela mesma, passa a ser perigosa na ótica oficial. São poucos, todavia.

Concluo com uma nota triste — julga-se seletiva e subjetivamente no Brasil e não me parece ser diferente na América Latina. A atividade judiciária de conformação à ordem social e financeira, o alheamento à realidade comunitária e, finalmente, a adoção de critérios arbitrários e extralegais de julgamento, compõem um padrão autoritário, do ponto de vista jurídico-constitucional e moralista, conservador antiliberal, do prisma epistemológico. Filosoficamente, o iluminismo ainda não aportou na mentalidade forense.

Todos os dados da pesquisa podem ser encontrados em:

http://www.tj.mt.gov.br/cgj/Servicos/BancoSentenca.aspx

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!