Volta ao passado

Imprescritibilidade da punição da tortura e a lei da anistia

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14 de novembro de 2008, 13h42

Nas últimas semanas, foi intenso o debate se os crimes de tortura praticados por agentes do Estado durante o regime militar podem ou não ser hoje punidos. O argumento em favor da punição é que o direito internacional considera a tortura crime contra a humanidade, imprescritível e passível de punição pelo Judiciário de qualquer país.

A certeza de que a tortura, cedo ou tarde, será punida, sem possibilidade de perdão, é forma adequada para reprimi-la. Infelizmente, a melhor forma de reprimir um delito é a certeza de que a punição vai ser aplicada. Mas o atributo da imprescritibilidade pode entrar em colisão com outros direitos da pessoa humana, por exemplo, o de que a Lei Penal não pode retroagir (no Brasil, a tortura foi tipificada como crime específico apenas em 1997). Mas não se pode esquecer que é a própria Constituição de 1988 que considera a tortura crime imprescritível. A Constituição é a encarnação jurídica da soberania de um país, é a sua lei suprema, e todos os esforços devem ser feitos para que os seus dispositivos sejam realizados no maior alcance possível.

Entra-se, assim, num campo pantanoso, de quais valores devem prevalecer, num fenômeno bem conhecido, conhecido por “ditadura dos valores”, em que um se entende com mais valor que outro, numa escala que há o “sem-valor” e o “valor absoluto”. Ou seja, a norma de combate à tortura, por mais generosos que sejam seus objetivos, pode derrogar as garantias constitucionais da irretroatividade e da segurança jurídica? Será que o movimento dos direitos humanos está ingressando na perigosa seara de se relativizar os direitos e garantias individuais em nome da punição eficaz, postura cada vez mais usual em tempos de crime organizado e de terrorismo, em que, contraditoriamente, quer se fazer crer aos cidadãos que devem se proteger abrindo mão de seus próprios direitos? Será que os militantes dos direitos humanos estão flertando com o “direito penal do inimigo” descrito por Günther Jakobs?

Observe-se que nem se cogita aqui que “revolver certas questões é colocar em risco a democracia”. A democracia brasileira já ultrapassou esse ponto, e, hoje, questionar as instituições – Legislativo, Judiciário, Executivo, Forças Armadas, Polícia, Partidos Políticos, Sistema Eleitoral – não é colocar em risco o regime de liberdades constitucionais, mas de exercê-lo e aperfeiçoá-lo. Ou seja, certos fantasmas já foram exorcizados.

Porém, neste texto, a opção foi a de não criticar o super-direito de punição a certas condutas de lesa-humanidade ou o entendimento que a realização de tal super-direito pode se dar sem a observância de outros direitos que integram o catálogo dos direitos humanos. Isso porque se acredita que os militantes do movimento dos direitos humanos que defendem estas posições são movidos pela generosidade. O caminho deste texto é outro, o de analisar aspecto que vem sendo ignorado: o de que os agentes do Estado durante o regime militar foram beneficiados por anistia, por uma anistia concedida a todas as partes envolvidas nos conflitos surgidos após a ruptura da ordem constitucional, em 1964.

Esse é o ponto. A anistia, na vida de uma nação, possui importantes papéis, sendo o principal deles por fim a uma guerra civil, ou seja, a um conflito armado entre os cidadãos de um mesmo Estado. Rever, revogar ou ignorar uma anistia tem conseqüências dolorosas, muitas vezes o retorno em maior ou menor grau do conflito por ela pacificado. Essa é a lição da História.

Pode-se ilustrar com vários exemplos. O mais famoso deles talvez seja o da República Romana: em 83 a.c., Sila toma o poder, instala uma ditadura para “salvar a República”, e lança-se ao massacre e à proscrição dos partidários de Mário. Este período de violência ficou fortemente marcado na vida romana. Em grande parte como reação, houve a conjuração malograda de Cantilina, em 63 a.c., duramente punida por Cícero, e a guerra civil da qual César se sagrou vitorioso (49-45 a.c.). Mas, ao contrário de Sila, César exercitava a clemência, perdoando imediatamente os vencidos, reunindo novamente os cidadãos em torno do mesmo Estado. O poder de César se tornou imenso. Mas isso não impediu que os partidários da antiga República o matassem. Essa morte, em meados de março de 44 a.c., como registram os manuais de História, marca a extinção da República e o início do período Imperial. A lição é clara: o vitorioso pela clemência e o perdão é o verdadeiro vitorioso, pois o vitorioso apenas pela violência gera com a violência o seu próprio fim.

O sentido de uma anistia é extinguir a guerra civil, é reunir os cidadãos em torno de um mesmo Estado. A anistia integra os acordos fundamentais que permitem a reordenação institucional, inclusive a elaboração de uma Constituição. Como o tratado de paz, se insere no espaço do Poder Constituinte Originário. Ignorar ou questionar a anistia concedida em 1979 é, assim, o mesmo que questionar a constitucionalidade da Emenda Constitucional 26, de 27 de novembro de 1985, que convocou a Assembléia Nacional Constituinte, ou a legislação que regeu as eleições dos deputados constituintes, ou, ainda, o fato de a Assembléia Nacional Constituinte (ou, como se queira, o Congresso Constituinte) ter sido também constituído por senadores “biônicos”, nomeados pelo regime anterior.

Observe que esse entendimento, de que se trata de um campo do Poder Constituinte Originário, vale mesmo para países em que se puniu as condutas do regime anterior, inclusive crimes de guerra, como os casos da Alemanha, cuja Lei Fundamental prevê que “os preceitos jurídicos decretados para a libertação do povo alemão do nacional-socialismo e do militarismo não são afetados pelas disposições desta Lei Fundamental” (art. 139) e o da Itália, que, dentre outras medidas, restringiu direitos e aplicou punições aos líderes e colaboradores do fascismo, mas de forma limitada. Da mesma forma, a Constituição de 1946, concedeu anistia a todos os cidadãos considerados insubmissos ou desertores até a data de sua promulgação, sem prever nenhuma exceção (artigo 28). Tudo isso deixa claro que o ante-constitucional, que se insere no Poder Constituinte Originário, não se pode se confundir com o pós-constitucional, ou seja, não pode a Constituição se voltar contra os atos que integram o seu processo histórico de formação.

A questão não é apenas se a tortura é imprescritível, ou insuscetível de graça ou anistia, mas o fato de que houve uma Anistia na base do processo que originou a própria Constituição. Isso não é pouco, pois diz respeito a nossa soberania, pelo que não há como se invocar o direito internacional, do qual se derivaria um super-direito punitivo.

A questão constitucional em jogo não é constitucional formal, mas no que se refere à legitimidade e sustentação da Constituição. Por meio da anistia fizemos as pazes para se reordenar o país, em direção do Estado Social de Direito. Por isso, como a Emenda Constitucional 26, de 1985, a Lei de Anistia é antecedente lógico da Constituição de 1988.

Em suma: os esforços do Estado devem ser utilizados para a realização da Constituição, especialmente para os imensos desafios de melhoria das condições de vida de nosso povo, não para se voltar contra a Constituição e seu processo de formação. As conseqüências são evidentes: olhar para trás é se tornar estátua de sal, mero símbolo de algo infértil.

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