Remédio democrático

Discussão sobre anistia para torturadores perdeu o foco

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13 de novembro de 2008, 14h20

A questão que envolve a anistia de torturadores brasileiros que serviam às forças armadas no período de exceção democrática está geralmente desfocada. Na análise do tema, geralmente são aquilatados argumentos dos mais diversos, incluindo aí vetores políticos, militares e internacionais. Não que tais variáveis não sejam apreciáveis para a contextualização geral, mas é que o problema precisa ser superado no campo jurídico e é justamente aí que encontramos obstáculos substanciais.

Noutras palavras, a determinante da discussão não é absolutamente o receio da sublevação das forças armadas, numa reação ao procedimento aberto para apuração dos crimes cometidos pelos militares durante a ditadura brasileira. Até porque experiências parecidas já se deram na Argentina e Chile e, nem por isso, houve um rompimento tão profundo que não pudesse ser superado. É claro que na sociedade chilena as marcas de revolver o passado são ainda latentes e influem politicamente, mas na comunidade argentina, malgrado haja ressentimentos de alguns setores minoritários, diria que as coisas caminham tranquilamente.

Aliás, ninguém diz que exorcizar o passado seja tarefa fácil. Também não devemos ser ingênuos em aceitar, passados mais de 20 anos, que a sociedade brasileira tenha apresentado sua permanente oposição aos militares. Ao contrário — como toda a ditadura, setores cuja respeitabilidade democrática é reconhecida hoje, flertaram com coronéis e generais, fazendo o conhecido “negócio do possível”, argumentando ser melhor uma “resistência pacífica, mas existente” do que uma “oposição frontal, agressiva e inexistente”. A ampla maioria dos congressistas convivia perfeitamente bem, variando os ares de mais ou menos nublados e sujeitos a tempestades, justificando a atuação como tática para conter a radicalização da marcha militar.

Não. Para uma ditadura se instalar, é preciso força. Aliás, é um cinismo alegar que não houve uso de força, tortura, assassinatos, enfim. Mas para se manter estável, é preciso do povo. Necessária a imprensa. Importantes os políticos. Essenciais as universidades. Não nos enganemos. Muita gente que pousa de democrata já se aproveitou suficientemente das benesses militares, incluindo aí alguns servidores públicos de instituições que pretendem voltar-se contra os torturadores. De outro lado, vale aqui uma observação que não simplifica em nada a questão: em que medida a “resistência armada” não foi, também, criminosa? Em atos de protesto político (considerados pelos militares como típicos de terrorismo), não foram poucos atentados que não só vitimaram terceiros alheios ao regime, como afetaram o patrimônio alheio. Assaltos a bancos, para “subsidiar as células de resistência”, venhamos e convenhamos, não pode ser considerado um típico ato político.

Noutras palavras, a discussão sobre os méritos do regime militar, sua base de sustentação política, na mídia (ainda que houvesse grande enfrentamento intelectual), nas universidades, nas indústrias e até mesmo nos sindicatos, devemos também promovê-la, de forma leal e aberta. Até porque, eventualmente com a apuração dos delitos militares, há muitos outros que foram expressamente anistiados e que precisam ser revisitados como atividades não-típicas de resistência política e sim delitos normais sem qualquer matiz ideológico.

É óbvio que, logo de início, a máxima da instabilidade institucional será usada para rechaçar qualquer tentativa tupiniquim de caçar os fantasmas que nos assombram até hoje. É que, de fato, há muito militar que ainda arrota grosso em terras brasileiras, fazendo sempre insinuações das mais maliciosas de que o regime de exceção era mais probo, moral, eficiente — numa palavra — mais honesto do que o atual. De minha parte, prefiro qualquer corrupção, superável por mecanismos democráticos de controle da gestão pública, do que a repressão desinteligente de uma burocracia militar e seu modo idiossincrático de compreender a realidade. É preferível a libertinagem democrática, como dizem alguns, do que o pundonor castrense e suas maracutaias oficialescas.

Ainda assim, não é o julgamento institucional de uma ditadura que estamos falando. Até porque os militares voltaram ao reduto de onde não deveriam ter saído, seja pela incapacidade de comunicação de seus ideais (se é que tiveram algum), seja pela vontade popular que não agüentava mais os ranços e caprichos de pequenos Napoleões salva-pátria. Insta discutir, ao contrário, sobre uma situação jurídico-política particular gerada no Brasil. É que a legislação de anistia, embora não mencionando expressamente a questão dos crimes havidos durante o regime, não deixa brechas para apuração dos mesmos.

E, ainda assim, não é essa a questão. Importa saber: a legislação constitucional de caráter democrático, regulando a imprescritibilidade do delito de tortura, calcada em tratados internacionais ratificados cuja tônica são os direitos humanos, têm o condão de retroceder para alcançar a legislação anterior e seus efeitos passados? E mais: poderia a legislação especial que atualmente regula o delito de tortura surtir efeitos para os fatos a serem enquadrados como típicos, após o cometimento dos mesmos, ainda que em nome dos princípios gerais da proteção da dignidade humana? Finalmente: a desconstituição jurídica de uma situação de fato, acobertada por sua vez em legislação que já passou pelo crivo da constitucionalidade do regime anterior, poderá surtir efeitos palpáveis?

Como é cediço, a ditadura acabou melancolicamente em 1985, soçobrando o regime castrense, ainda que as eleições tenham se dado de forma indireta, sucumbindo a emenda Dante de Oliveira. Desse marco, passou o prazo prescricional para crimes comuns. Crimes comuns, deixo sublinhado. Uma morte decorrente de uma execução encomendada (há aqueles que ainda resistem ao óbvio), está prescrita, sob qualquer ponto de vista estritamente jurídico que se analise a questão. Resta saber se o delito de tortura (com resultado morte ou outro menos grave), pode ser apurada, superando-se não só a lei de anistia, como retrocedendo a legislação nacional atual e internacional de direitos e garantias individuais e coletivas, para alcançar atos pretéritos.

O delito de tortura está previsto numa legislação posterior ao término da ditadura militar. No máximo, o que havia era o inexeqüível abuso de autoridade. Penso serem ponderáveis três questões sucessivas: a de ordem constitucional, a de ordem infraconstitucional relativa à abrangência da anistia e, finalmente, a de ordem infraconstitucional que toca o delito não tipificado.

Custa-me sofrimento afirmar que não parece ser fácil superar todos os óbices jurídicos para ingressarmos na questão essencialmente política, lamentavelmente. Ainda assim, não imagino ser tempo perdido a discussão, até para resgatar valores e deixar assentada a opção democrática brasileira e o nosso repúdio veemente à prática de tortura institucional havida na ‘revolução’, o que foi na verdade uma ditadura. É preciso rechaçar a lógica da força, mas não é com força que fazemos frente aos criminosos fardados. A melhor resposta democrática é a democracia.

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