Prisma jurídico

Norma que vincula PGFN a Fazenda é esquizofrênica

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11 de novembro de 2008, 12h10

Está novamente em curso no âmbito da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional a antiga discussão a respeito da vinculação administrativa da procuradoria ao Ministério da Fazenda, órgão integrante do Poder Executivo incumbido da definição das políticas públicas relativas à cobrança dos tributos da União.

A discussão vem ganhando tal importância que chegou a ser tema exclusivo de um debate promovido entre o Procurador-Geral da Fazenda Nacional, defensor da vinculação, e o Advogado-Geral da União Substituto, que a ela se contrapõe, promovido no dia 3 de novembro do corrente ano.

A problemática da vinculação, que até então vem sendo discutida apenas sob a ótica da conveniência política, com argumentos relacionados unicamente à gestão administrativa — inclusive os apresentados no debate recentemente realizado —, coloca-se agora, ou propõe-se a colocar, sob o prisma estritamente jurídico, da sua compatibilidade com a Constituição em vigor.

A expressão vinculação administrativa, ou meramente “vinculação”, é utilizada normalmente pela doutrina para expressar a limitação imposta por lei ao administrador público quanto aos critérios para a edição de ato administrativo, o chamado ato administrativo vinculado. Em outros momentos o termo é utilizado para referir-se à relação estabelecida entre as entidades da administração indireta — autarquias e fundações — e os Ministérios aos quais são “vinculadas”, submetendo-se ao exercício da supervisão ministerial. Tal vinculação seria, também, de natureza “administrativa” em sentido amplo.

Aqui, no entanto, utiliza-se o termo “vinculação administrativa” para se referir à “subordinação administrativa” referida no artigo 12, caput, da Lei Complementar 73/93, em contraposição à “vinculação técnica” prevista no artigo 2°, parágrafo 1°, segunda parte, e parágrafo 3°, do mesmo diploma legal. Veja-se que não se trata da primeira acepção do termo, da limitação para a edição de ato administrativo, pois não se refere a nenhum ato administrativo concreto, e tampouco se refere ao segundo, da vinculação decorrente da supervisão ministerial, pois não se está a tratar de órgão com autonomia e personalidade jurídica próprias, como ocorre com as autarquias e fundações.

Trata-se, portanto, de figura específica prevista na Lei Complementar 73/93, elaborada com fundamento de validade no artigo 131 da Constituição Federal de 1988, cujo caput possui a seguinte redação:

“A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.”

Veja-se que a Lei Complementar 73/93, ao vincular a PGFN administrativamente ao titular do Ministério da Fazenda, como dispôs no caput do seu artigo 12, transborda os limites da regulamentação constitucional e cria um órgão esquizofrênico, que embora integre a Advocacia-Geral da União, que é instituição essencial à Justiça, apartada portanto do corpo orgânico do Poder Executivo, sobre o qual exerce a função de controle prévio da legalidade dos atos, se vê também inserido burocrática e hierarquicamente dentro de um dos ministérios do próprio Poder Executivo que fiscaliza.

Nem se diga também que o artigo 131 da Constituição Federal, ao prever a representação da União por meio de órgão vinculado, tenha autorizado a previsão de múltiplas vinculações desses órgãos a outros não integrantes da estrutura da Advocacia-Geral da União. Basta, para tanto, uma rápida análise na distribuição topológica da Advocacia-Geral da União no texto constitucional

Ao tratar da “Organização dos Poderes”, a Constituição cuidou do Poder Legislativo no capítulo I, do Poder Executivo no capítulo II e do Poder Judiciário no capítulo III, reservando o capítulo IV para as Funções Essenciais à Justiça, que embora não constituam um quarto Poder também não se inserem exclusivamente em nenhum dos Poderes clássicos. Como Funções Essenciais à Justiça foram incluídos o Ministério Público, a Advocacia Pública (Procuradoria Pública), a Advocacia e a Defensoria Pública.

A doutrina tradicional brasileira, no entanto, ainda adstrita à teoria clássica da tripartição dos Poderes (ou tripartição das Funções, na nomenclatura mais moderna), ou por fazer uma leitura preguiçosa do texto constitucional, têm tratado a Advocacia-Geral da União como órgão da Função Executiva, ao invés de enquadrá-la na Função Judiciária, da qual mais se aproxima, ou ainda como Função própria (Essencial à Justiça), que seria mais correto.

Dúvida não há quanto à relevante atribuição constitucional deferida à Advocacia-Geral da União, qual seja a representação judicial e extrajudicial tal como previsto no artigo 131 da Constituição, replicado no artigo 1.° da Lei Complementar 73/93. A expressão “União”, vale ressaltar, compreende tanto a administração direta, incluindo os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, como indireta — autarquias e fundações —, excluídos apenas as empresas públicas e as sociedades de economia mista.

O modelo de advocacia de Estado adotado no Brasil, fundado na centralização da representação numa única Instituição, a Advocacia-Geral da União, tem sua razão de ser na busca da estabilidade jurídica e institucional, uma vez que impossibilita ou pelo menos dificulta a co-existência de entendimentos jurídicos conflitantes no âmbito de toda a Administração Pública. Foi inspirado nos modelos Italiano e Venezuelano (César Kirsch, Advocacia-Geral da União e Poder Executivo Federal: Parceria Indispensável para o Sucesso das Políticas Públicas, 2003, p. 35.), com a sensível diferença de que lá foram constituídas instituições independentes e cá ainda se busca pela efetiva independência.

Assim, orientando-se pelo modelo de centralização da representação, impõe-se o entendimento de que a previsão de representação da União “por meio de órgão vinculado”, existente no caput do artigo 131 da Constituição Federal, não autoriza o raciocínio de ser possível tal representação por órgão subordinado à estrutura burocrática de um Ministério. No instante em que a Constituição afirmou ser atribuição privativa da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional a representação da União na execução da dívida de natureza tributária, sem fazer qualquer ressalva de que tal representação se daria na mera condição de órgão vinculado, automaticamente a retirou da estrutura organizacional do Ministério da Fazenda e a inseriu na Advocacia-Geral da União. Esta sim a instituição a quem foi conferida a privaticidade da representação da União em qualquer matéria, incluindo-se a execução da dívida ativa de natureza tributária, conforme se pode inferir do caput do mesmo artigo constitucional anteriormente mencionado.

Torna-se bastante claro que o legislador ordinário não detinha permissão constitucional para estabelecer múltiplas vinculações para a PGFN, vinculando-a técnica e juridicamente à Advocacia-Geral da União e administrativamente ao titular do Ministério da Fazenda, uma vez que não se tratava de órgão vinculado e sim de órgão já integrante da Advocacia-Geral da União desde a promulgação da Carta Constitucional.

Fica evidente que a realização plena da tarefa da Advocacia-Geral da União passa pela integração total de seus órgãos numa estrutura organizacional única, tal como era a intenção manifestada no artigo 29 do ADCT, que foi solenemente ignorada pela Lei Complementar 73/93. Intenção essa que apenas recentemente foi parcialmente realizada, com a publicação da Lei 10.480/02 e a criação da Procuradoria-Geral Federal, vinculada técnica e administrativamente à Advocacia-Geral da União, o que trouxe inúmeros e reconhecidos ganhos para a defesa do erário no âmbito da Administração Indireta.

Vale lembrar que as atividades de consultoria e assessoramento jurídico ao Poder Executivo, que se constitui em verdadeiro controle prévio da legalidade dos atos da Administração, também foram atribuídas com exclusividade aos Membros da Advocacia Pública pela Constituição Federal. Contudo, tais atividades somente poderão ser exercidas em sua plenitude quando não houver qualquer espécie de subordinação dos órgãos de assessoramento aos órgãos do Poder Executivo. Enquanto houver subordinação haverá o risco de se ver transformado o que deveria ser atividade de assessoramento, baseada numa relação de lealdade e solidariedade, em atividade de mero aconselhamento pessoal, de subserviência à vontade do administrador, de busca de roupagens jurídicas para o agasalhamento de atos espúrios, numa relação não mais de independência técnica e controle, mas de servilidade e concuspicência.

O Ministro Néri da Silveira, no julgamento da ADI-MC 881-1/ES, com relação à função das Procuradorias dos Estados, já alertava para isso, em conclusão extensível à Advocacia-Geral da União:

“Penso que o artigo 132, da Constituição, quis, relativamente à Advocacia de Estado, no âmbito dos Estados-membros e do Distrito Federal, conferir às Procuradorias não só a representatividade judicial, mas, também, o exame da legalidade dos atos (…). Isso conduz à independência funcional, para o bom controle da legalidade interna, da orientação da Administração quanto a seus atos, em ordem a que esses não se pratiquem tão-só de acordo com a vontade do administrador, mas também conforme à lei.”

A vinculação administrativa da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, integrante do sistema das Funções Essenciais à Justiça, a um auxiliar do chefe do Poder Executivo (titular do Ministério da Fazenda, conforme previsão no caput do artigo 12 da Lei Complementar 73/93), constitui, pois, um sério óbice ao pleno exercício da independência técnica e controle da juridicidade dos atos da Administração Tributária Federal. A Advocacia-Geral da União constitui-se em instituição independente, de forma que seus órgãos — leia-se a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e as Consultorias Jurídicas junto aos Ministérios — não podem estar submetidos a autoridades estranhas a ela própria, seja técnica ou administrativamente.

Por essa razão, a União dos Advogados Públicos Federais do Brasil (Unafe), cuja legitimidade para representar toda a Advocacia Pública Federal fora reconhecida pelo STF na ADI 3.787, já estuda a possibilidade de propor Ação Direta de Inconstitucionalidade, com o fim de questionar o artigo 12 da Lei Complementar 73/93, que estabeleceu essa esquizofrênica multiplicidade de vinculação da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. Entende-se que a vinculação administrativa de um órgão integrante da Advocacia-Geral da União ao titular de um Ministério do Poder Executivo atenta contra a sua própria razão de existir, como função essencial à Justiça, conforme disposto no texto constitucional.

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