Excesso de pena

Mutirões do CNJ escancaram falência do sistema penitenciário

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7 de novembro de 2008, 23h00

O maranhense José Fernando Pereira da Silva, vulgo Fernando Fujão, foi condenado em 1999 a 17 anos de prisão. Quando cumprisse 10 anos de sua pena, teria direito à liberdade condicional, procedimento previsto na Lei de Execução Penal e que deve ser aplicado para todos os presos com condenação criminal definitiva. Fujão ficou, no entanto, 11 anos e três meses preso, ou seja, um ano e três meses a mais do que poderia. E todo esse tempo, sem processo de execução.

No dia 29 de outubro, conseguiu, com atraso, o benefício a que tinha direito. Mutirão do Conselho Nacional de Justiça feito no estado do Maranhão descobriu a história de Fernando Fujão e tratou de resolver sua situação prisional. Juízes tiveram de procurar o processo em São Luís e instruí-lo para que fosse executado. Hoje, Fernando Fujão, que ganhou esse apelido por causa de um passado de fugas — nenhuma delas durante os 11 anos em que cumpriu a pena —, está em liberdade.

Histórias parecidas com a de Fernando Fujão não são difíceis de serem encontradas. No mesmo mutirão, que começou no dia 20 de outubro em oito presídios do Maranhão, os juízes descobriam a história de Elpídio. Ele foi condenado a cinco anos de prisão, mas ficou encarcerado por oito anos. No mutirão, sua pena foi declarada cumprida e Elpídio pôde ir para casa.

O mutirão do Maranhão é o mais recente feito pelo CNJ. Nele, 1.191 processos já foram analisados — o Maranhão tem três mil presos, aproximadamente. Nos 1.191 casos analisados, 590 — quase metade — tinham direito a algum tipo de benefício (liberdade provisória ou progressão de regime), que ainda não havia sido analisado pela Justiça local.

Para o coordenador do mutirão e juiz auxiliar da presidência do CNJ, Erivaldo Ribeiro dos Santos, os números são positivos porque demonstram a eficiência desse tipo de trabalho. Por outro lado, mostram que o sistema penitenciário está fadado ao insucesso. “A culpa, nesse caso [Fernando Fujão], é do Poder Judiciário, que foi omisso e negligente. Não cumpriu seu dever”, afirma o juiz.

“O sistema prisional tem inúmeros problemas: degradação do ambiente, superpopulação, falta de assistência médica, falta de trabalho para os detentos. Tudo isso tem de ser resolvido pelo Executivo. Agora, quando o Judiciário atua como agente colaborador, ao deixar de analisar um pedido de liberdade ou sequer remeter os autos para a execução, tem de assumir sua culpa e corrigir os erros”, defende Ribeiro dos Santos. “O ideal era que o mutirão não tivesse de deferir qualquer pedido.”

No caso de Fernando Fujão, os juízes tiveram de localizar primeiramente seu processo criminal. O réu não tinha nenhuma informação de sua situação prisional. Nem a direção do presídio sabia por que ele estava preso. Juízes do CNJ fizeram um trabalho de pesquisa e descobriram que Fernando Fujão tinha sido condenado com uma co-ré. A sentença foi encontrada. O processo foi remontado para seguir à execução. Nessa fase, foi descoberto que o réu tinha direito ao livramento condicional. Junto com o de Fernando Fujão, 49,5% dos pedidos foram concedidos, todos no mesmo presídio.

“O resultado do mutirão é a prova da falência do sistema penitenciário”, afirma Flávia Rahal, advogada criminalista e presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD). “O sistema de execução é tão lento, tão sobrecarregado e visto com tão pouca importância que situações como essa acabam acontecendo”, observa Flávia. “Ninguém tem interesse em falar do sistema penitenciário. Poucas pessoas sabem que ele provoca situações de violência, injustiça e ilegalidade por pura falta de vontade e por pouca relevância que o tema tem quando o assunto deveria ser prioritário em termos de segurança pública.”

Mutirão fluminense

Há uma semana, representantes do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), órgão do Ministério da Justiça, visitaram presídios do Rio de Janeiro. Na Polinter, Base Grajaú, constataram uma situação considerada degradante: os detidos estavam alojados em celas dividas em três andares por redes de descanso. Um grupo dormia no chão. Outro grupo, no meio, em redes. O último grupo dormia no “terceiro andar”, também em redes.

“Vi gente pendurada no teto, gente pendurada no meio, gente deitada no chão, sem colchão. Isso na base Polinter. E ainda há casos mais graves. No Presídio Evaristo de Morais, também no Rio, há celas sem telha e as pessoas se penduram para dormir, quando não dormem em pé. É uma profunda situação de desrespeito”, relata Sergio Salomão Schecaira, presidente do CNPCP.

“Os mutirões do CNJ tem funcionado como remédio analgésico, apenas. Tira a dor, mas não tira a doença. Ou seja, resolvem muito pouco. Eliminam duas ou três situações momentâneas de superlotação, mas a situação estrutural, que é um problema permanente, continua a mesma”, lamenta Schecaira.

Ele alerta para o fato de nem o Rio de Janeiro nem o Maranhão serem os estados com maiores problemas penitenciários. “Se o CNJ quer colaborar, deveria pensar, por exemplo, no Presídio Central de Porto Alegre, que tem três mil pessoas além da sua capacidade. Lá, cadeados foram rompidos e já não há mais controle de celas. Os presos passam a noite caminhando pelas alas e pavilhões. É o ápice da promiscuidade e abuso dos direitos humanos.”

Outro exemplo citado por Schecaira é o presídio Aníbal Bruno, em Recife, o maior de Pernambuco. Quando o CNPCP visitou o presídio no começo desse ano, cerca de 80 presos ocupavam a função de chaveiros — eles tinham a chave das celas. Não eram os agentes penitenciários que faziam esse trabalho. Para se ter uma idéia do descontrole, 10 agentes penitenciários, por turno de trabalho, eram responsáveis por 3,5 mil detentos.

Para Schecaira, a culpa do caos é dividida entre o Executivo, que não constrói presídios e não dá para o tema a importância que ele merece, e o Judiciário, que atua como instância justiceira e não conhece alternativa que não seja a de mandar condenados para prisão. A sociedade, diz Schecaira, também tem sua parcela de culpa por tratar o tema com indiferença

“A melhor Defensoria Pública do país é a do Rio de Janeiro. Tanto é que lá existem menos presos, proporcionalmente, do que em São Paulo. O Judiciário é mais célere e reconhece que as penas alternativas recuperam o condenado. A Justiça paulista é mais dura e mais lenta e a defensoria, pouco estruturada. Tudo isso resulta em 140 mil presos ou um terço da população carcerária do país. Existe relação direta do funcionamento adequado ou inadequado do Judiciário com o índice de encarceramento. Onde o Judiciário funciona melhor, é menor o índice de presos”, explica Schecaira.

“Quando abandonarmos o senso comum e entendermos que se pratica violência quando desrespeitado os direitos dos presos do mesmo jeito que eles praticaram violência para estarem lá, a situação irá melhorar”, acredita.

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