Guia de sobrevivência

Dez mandamentos improvisados para o juiz iniciante

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7 de novembro de 2008, 12h18

Ao contrário do que costuma acontecer no mundo do bacharelismo renitente, o presente texto foi redigido apenas para ser útil. Lê-lo corretamente é não encontrar nele nenhuma intenção professoral. Surgiu porque alguém teve o desprendimento de pedi-lo in pectus. Quem não goste de mandamentos, sempre pretensiosos, fica autorizado a trocar o título: guia de sobrevivência para um juiz digno.

I. Não praticar excesso de rigorismo contra si, pela adoção de métodos drásticos de trabalho, fonte espúria de neuroses; nem contra outrem, pois também o jurisdicionado, submetido aos azares do processo e com seus múltipos afazeres, pode ter grande dificuldade de acompanhá-lo. Ser demasiado impositivo — ainda que com a verdade e a vontade de servir à Justiça — é uma forma nociva de afirmação. Não procure certezas bíblicas em autores nada inspirados. Libertar-se de messianismos é nunca esquecer o que revela o despudor gramatical de Vinicius de Moraes, que — jovem mau estudante e já bom poeta — assim traduziu a divisa libertas quae sera tamen: “liberta, que serás também”.

II. Objetivar as dificuldades considerando que todos os sentimentos ambíguos poderiam ser destacados e vistos, pelo sujeito, como se estivessem fora dele. Além de afastar tormentos interiores, essa ilusão óptica ajudará a superar a purgação da dúvida, e ninguém fica obrigado a ser existencialista só por isso. A ambivalência no Direito é algo com que o juiz terá de lidar sempre.

III. Não ser escravo de protocolos, pautas, hierarquias fictícias; muito menos de grupos corporativos e confrarias cujos interesses esotéricos são sempre nocivos para o povo. A democracia não condiz e prescinde mesmo dos “iniciados” no ocultismo. Não ser escravo inclusive dos seus fundados temores. Como disse o escritor Augusto Roa Bastos, “ninguém é dono do seu medo, senão quando o tenha perdido”. Não aceite jamais a freqüente insinuação de propostas convenientes para incorporar e reconhecer os benefícios circunstanciais que lhe adviriam de uma “escravatura da toga”. A excessiva obediência e o temor reverencial diluem o caráter. O passado exige que ainda haja juízes em Berlim. No presente, todos os lugares são Berlim.

IV. O isolamento profissional dói. Mas a convivência forçada com aqueles a quem não escolhemos pode ser opressiva. Em um meio hostil, aprenda a viver nele, sem se curvar a nenhuma das suas restrições. Não repita ad nauseam tantos artigos, parágrafos, incisos, de nossas milhares de leis como se fossem a única razão para julgar e para existir. Isso é o que fazia o personagem de Graciliano Ramos, “até que viu-se livre para sempre dos tormentos da imaginação”.

V. Enfrentar com sobriedade e moderação o sofrimento da dura lida com tantos e tantos infindáveis problemas alheios, mormente os resultantes dos insensatos que malbaratam suas vidas em litígios inúteis. Ao invés de colecionar piadas forenses de gosto muito duvidoso, que em geral expõem pessoas simples e incultas ao ridículo, lembre-se de Millôr Fernandes: “não sabia que doía tanto vencer a dor”. Superá-la é a prova de que ela não será a medida da sua atuação. Demais disso, é preciso uma vitória definitiva sobre o ressentimento. Sinta que andou muito além da sala dos passos perdidos.

VI. Desejar, se puder, ardentemente. Todo desejo é propulsor. Principalmente quando se lê o que Victor Hugo escreveu a respeito. Mesmo a insegurança na escolha do ser e do objeto desejados pode indicar um roteiro melhor do que a segurança de um horizonte próximo demais, dependendo do quanto se pretenda expandir. Deseje julgar e, efetivamente, julgue. Foi ainda com os romanos que morreu o direito de não julgar — sibi non liquere. O poder delegado legítimo emana de uma fonte autêntica. Não inverta a ordem de quem o concede com a de quem o exerce.

VII. Nosso país é uma permanente encruzilhada de aflições. Para vencê-las, mesmo quando elas são geradas dentro de nós mesmos, das nossas insuficiências, é preciso ter conhecimento. Assim, ampliar sempre a capacidade de perceber, sem vislumbrar limites, não é uma meta, ou uma vaidade narcísea, mas um caminho necessário. Para ser tocado pelo grandioso, do pleno ciente humano, é preciso ter a humildade de reconhecê-lo, como a de admitir que ele só nos alcança porque provém do que está no mundo fora de nós.

VIII. “Amigos são a família que escolhemos ter”, escreveu William Shakespeare. Não os abandonemos e, sobretudo, consentindo com nosso próprio distanciamento, não os obriguemos a que nos abandonem. Enquanto não cruzamos a linha do mergulho no mistério do finito, conduzidos por mãos alheias, nenhum gesto pode ser mais generoso do que a fraternidade de um amigo. Nossos companheiros de rota sempre nos mostram que é necessário prosseguir.

IX. A mediocridade é o maior de todos os males, pois — condescendendo com ela — aceitamos que a comiseração para conosco se instale definitivamente em nosso espírito. Entenda que, sofrendo com o peso disseminado do medíocre, muitas vezes mostramos quanto o estamos repelindo. Não se deixe tomar por homenagens laudatórias, não consinta, não as promova; elas não trazem ganho, mas queda no irremediável lugar-comum. E sua vida ficará presa.

Acredite que tem méritos por já estar no seu meio, mas acredite mais que há maiores e menores em outros, onde quer que esteja. Por isso, nunca seja o principal reivindicador deles. Seus rastros — quando tenham a sua autoria marcante e percepção única — poderão sempre ficar como um valor para outros, se a tanto o seu trabalho alcançar concretamente. Isto é bem mais do que a conquista ostentatória dos arrivistas pois, afora a pompa circunstancial, com o tempo ela se esvai no soturno esquecimento a que os justos têm direito, mas suscitará a ambição de ultrapassá-la no outro arrivista idólatra, que virá depois, numa espiral louca e sem fim.

X. Nenhuma profissão realiza uma vida. Isso é bom, pois a recíproca também é verdadeira: a vida não se confina em uma profissão. Grandes homens tiveram variados interesses. Seguido, isso foi o que os fez grandes. O juiz, em geral, tem o privilégio de observar dados da realidade com a luneta de Galileu. Mas, como o sábio, deve acreditar no que vê, sem idolatria ao magnífico instrumento de observação que lhe foi dado.

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