Família internacional

Pai americano briga com padrasto brasileiro pela guarda do filho

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3 de novembro de 2008, 20h25

O americano David Goldman está proibido de mencionar em seu site Bring S. Home (Traga S. para casa) os nomes de dois advogados brasileiros, retirando do ar as ofensas praticadas contra eles.

A determinação é da juíza Marisa Simões Mattos, da 13ª Vara Cível do Rio de Janeiro e faz parte de um acervo de decisões judiciais que contam a história da disputa pela guarda do filho, de 8 anos, que Goldman teve com a empresária Bruna Bianchi, morta recentemente, e o padrasto da criança, com quem Bruna estava casada.

Bruna Bianchi (filha dos proprietários do restaurante Quadrifóglio, do Rio de Janeiro) conheceu David Goldman em Milão, na Itália. Os dois namoraram, conheceram as respectivas famílias, casaram-se em 1999, nos Estados Unidos e foram morar em Nova Jersey. Do relacionamento deles nasceu S., em 2000.

Bruna trabalhava e o menor ficava com o pai que cuidava dele durante o dia, já que David Goldman não tinha um horário formal de trabalho. Em junho de 2004, Goldman autorizou Bianca e o filho a passarem férias no Rio de Janeiro. Tinham passagem de volta marcada para 11 de julho de 2004. Goldman levou a mulher para o aeroporto. Dois dias depois ela ligou do Brasil dizendo que não retornaria mais com o filho para os EUA e condicionou a visita do pai à criança à sua aceitação do divórcio, na Justiça brasileira.

Em seguida, a mãe ingressou com uma ação de guarda da criança na Vara de Família do Rio. Para isto, contratou um advogado com quem acabou se casando em 2007. Em agosto último, Bruna morreu, durante o parto da filha do seu segundo casamento.

A partir de então, David Goldman intensificou sua luta para ficar com o filho, por entender que, na ausência da mãe, seu direito de pai é líquido e certo. Não é o que pensa o advogado, que ingressou com ação na Justiça pedindo o reconhecimento da paternidade afetiva do menino, com a substituição do nome do pai biológico da certidão de nascimento. Ele ganhou a guarda provisória do menor na Justiça estadual. Também na Justiça estadual, o advogado conseguiu uma liminar para proibir jornais de divulgar o fato. A Folha de S. Paulo foi um dos jornais notificados. Segundo seu pai, há decisão também contra a TV Record e o Correio Brasiliense.

David Goldman, nos Estado Unidos, recorreu às autoridades americanas registrando o “seqüestro” de seu filho nos termos da Convenção sobre os Aspectos Civis do Seqüestro Internacional de Crianças, de 1980 — a Convenção de Haia. Por esta convenção, o Brasil deve localizar a criança e promover sua devolução para que o caso seja julgado pela Justiça do país onde o menor morava antes.

Leia, a seguir, os vários desdobramentos jurídicos do caso:

Bruna Bianchi versus George David Goldman

Bruna embarcou dos Estados Unidos com o filho no dia 16 de junho de 2004 para passar 15 dias de férias no Brasil. Em 8 de julho entrou com ação de posse e guarda na 2ª Vara da Família do Rio de Janeiro. No dia 28 de julho, a juíza Márcia Maciel Quaresma concedeu a Tutela Antecipada para dar a Bianca a guarda provisória do menino.

Por orientação do seu advogado, David Goldman não se manifestou nos autos. A orientação foi para que ele não entrasse em acordo com a mulher, nem mesmo na Justiça, para não descaracterizar o “seqüestro” do menor, à luz da Convenção de Haia.

Em 26 de julho de 2006, o juiz Gerardo Carnevale Ney da Silva deu a sentença de mérito dando definitivamente a guarda de S. à mãe. Goldman recorreu contra a decisão no Tribunal de Justiça. A 8ª Câmara, em 27 de fevereiro de 2007, manteve a decisão. “O estudo social, peça idônea, elaborada por profissional vinculada ao juízo da 2ª Vara de Família, não deixa dúvida quanto ao fato de o menor (que já está no Brasil há mais de dois anos) encontrar-se bem adaptado ao ambiente que lhe foi propiciado pela mãe, interagindo significativamente com os colegas de classe, sendo, portanto, uma criança normal e feliz”.

No dia 25 de julho de 2006, Bruna ingressou com outra ação na 2ª Vara de Família, na qual pedia o divorcio litigioso. Como consta na sentença, ela mesma se encarregou de citar Goldman que, aconselhado por advogados, deixou de ingressar nos autos para não descaracterizar o que considerava “seqüestro” de seu filho. A decisão do divórcio foi tomada pelo juiz Gerardo Carnevale Ney da Silva em julho de 2007.


George David Goldman versus Bruna Bianchi Goldman I

Em setembro de 2004, o americano ingressou com uma ação civil no Tribunal de Nova Jersey contra Bruna e seus pais, incluídos como réus. Goldman os responsabilizava por participarem do “seqüestro” da criança, já que estavam juntos nos Estados Unidos antes de Bruna e o menor viajarem para o Brasil. Bruna foi intimada a apresentar em 48 horas o filho à Justiça americana para que a discussão sobre a guarda da criança pudesse ocorrer no tribunal do país onde ela morava, conforme prevê a Convenção de Haia.

A determinação não foi cumprida. Bruna e seus pais receberam multas diárias do juízo americano. Para evitar esta multa, os pais de Bruna buscaram um acordo com David Goldman. Ele recebeu 150 mil dólares a título de pagamento de honorários advocatícios e custas processuais. Em troca retirou da ação os antigos sogros.

George David Goldman versus Bruna Bianchi Goldman II

Paralelamente ao processo instaurado na Justiça americana, Goldman, em novembro de 2004, ingressou com uma ação na Justiça Federal do Rio solicitando o cumprimento da Convenção de Haia com a obrigação da mãe em devolver a criança para os Estados Unidos.

A Convenção de Haia estipula que o menor deve ser levado para o país onde vivia para que o processo judicial sobre a guarda da criança seja discutido. O artigo 12 da Convenção prevê que “a autoridade judicial ou administrativa respectiva, mesmo após expirado o período de um ano referido no parágrafo anterior, deverá ordenar o retorno da criança, salvo quando for provado que a criança já se encontra integrada no seu novo meio”.

Com base nessa expressão final — “salvo quando for provado que a criança já se encontra integrada no seu novo meio” — a Justiça Federal rejeitou o pedido de Goldman. Foram três decisões desfavoráveis — primeira instância, Tribunal Regional e Superior Tribunal de Justiça. Prevaleceu a tese de que o bem estar do menor estava em primeiro lugar. Como já havia mais de um ano que ele estava vivendo no Brasil, ele deveria continuar no Brasil.

A decisão do TRF, explicita: “importantíssimo considerar, também, que o pequeno S. encontra-se bem assistido, em sua atual residência, perfeitamente adaptado. Freqüenta escola de excelente nível, convive com crianças de sua idade e desfruta da companhia dos familiares maternos, estando absolutamente amparado material e emocionalmente. Nenhum dano psíquico se imputa à guarda ora efetivamente exercida pela mãe, nem que tenha ocorrido substancial prejuízo com a alteração do domicílio para o Brasil, salvo, à toda evidência — e não pouco importante — falta do convívio paterno habitual”.

Na 3ª Turma do STJ a decisão foi mantida, mas o entendimento não foi unânime. No julgamento ocorrido em junho de 2007, a relatora, ministra Nanci Andrighi, recebeu correspondência da embaixada dos Estados Unidos, assinada pelo Cônsul Geral, em que criticava a tese da Justiça brasileira, advertindo que a prevalecer essa teoria “seria praticamente impossível que qualquer criança retirada dos EUA retornasse”.

O texto dizia: “A Embaixada gostaria também de manifestar sua preocupação com as decisões judiciais tomadas até aqui que negaram a aplicação da Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis do Seqüestro Internacional de Crianças ao caso da retenção de S. R. G. com fundamento apenas no tempo em que o menor se encontra no Brasil desde a sua retenção. A se considerar que o tempo de tramitação do processo judicial, no Brasil, por si só inviabiliza o retorno do menor com base na Convenção de Haia, então será praticamente impossível que qualquer criança retirada dos Estados Unidos da América retorne. Um precedente dessa natureza autorizaria a negativa de retorno de qualquer menor, por mais ilegais que tenham sido as condições de sua retirada dos Estados Unidos da América, e estimularia justamente a conduta que a Convenção de Haia e seus países signatários pretendem coibir”.

A ministra não se curvou ao pedido da Embaixada e, apegou-se à exceção prevista nos artigos 12 e 13 da Convenção de Haia para justificar a permanência da criança com a mãe no Brasil.


“Quando for provado, como o foi neste processo, que a criança já se encontra integrada no seu novo meio, a autoridade judicial ou administrativa respectiva não deve ordenar o retorno da criança (artigo 12), bem assim, se existir risco de a criança, em seu retorno, ficar sujeita a danos de ordem psíquica (artigo 13, alínea ‘b’), como concluiu restar provado o acórdão recorrido, tudo isso tomando na mais alta consideração o interesse maior da criança. Ressalte-se que, ao contrário do alegado pelo recorrente, as decisões, tanto a de primeiro quanto a de segundo graus de jurisdição, firmam-se fundamentalmente na Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis do Seqüestro Internacional de Crianças, em estrita observância aos ditames constantes do tratado internacional no tocante às exceções nele previstas, não preponderando a aduzida violação aos dispositivos legais nele insertos”.

Ari Pargendler e Carlos Alberto Menezes Direito (hoje no Supremo Tribunal Federal) ficaram vencidos. “Salvo melhor juízo, o tribunal local contrariou literalmente o artigo 13, “b”, da Convenção, porque deixou de ser comprovado risco grave para a criança. Não se está discutindo qual o interesse do menor. Aqui se está diante de uma Convenção, que coíbe o seqüestro de criança, ainda que realizado pelo pai ou pela mãe, e define qual o juiz competente para processar e julgar a demanda daí resultante. A presente decisão não pode ir além dessa definição”, afirmou Pargendler.

Direito também contestou a tese do prazo decorrido para justificar a permanência do menino e o descumprimento da convenção. “O que estamos fazendo ao admitir que a consolidação da situação de fato, pelo tempo, impede o retorno? Estamos admitindo que qualquer pessoa possa burlar a Convenção, retirando o filho, com autorização judicial, por um prazo determinado, do país de origem e aqui permanecer debaixo de um processo que pode ser moroso”, disse.

Da decisão houve recurso de David Goldman ao Supremo Tribunal Federal. O recurso foi suspenso com a morte de Bruna Bianchi. Ela morreu durante o parto de sua filha do segundo casamento.

A morte da mãe de seu filho fez o americano acreditar que poderia reaver o menino. O agravo que ele impetrou para discutir seu direito de recorrer ao Supremo Tribunal Federal na discussão do cumprimento da Convenção de Haia acabou perdendo o sentido, pois a ação era contra Bruna.

João Paulo versus David

No mesmo mês em que Bruna morreu, o advogado, agora viúvo recorreu à 2ª Vara de Família (a mesma que garantiu à mãe a guarda da criança e depois lhe concedeu o divórcio) levando em mãos do mesmo juiz titular, Gerardo Carnevale Ney da Silva, no dia 28 de agosto do ano passado, Ação Ordinária Declaratória de Paternidade Socioafetiva, Cumulada com Posse e Guarda, com Pedido de Tutela Antecipada contra o pai biológico.

A decisão do juiz foi dada no mesmo dia, depois de ouvido o Ministério Público que concordou com o pedido e deu a guarda do menor ao advogado. Para que a criança não perca o afeto que vem desfrutando nesse momento, tão difícil da sua vida, impõe-se a concessão da liminar como requerida, para que seja assegurado, desde logo, ao autor, a posse e guarda do menor, para a plena garantia do seu desenvolvimento pessoal e emocional”, decidiu o juiz.

No dia 7 de setembro, Goldman chegou ao Brasil acompanhado da mãe com a pretensão de assumir a guarda da criança, diante da morte de Bianca. Foi surpreendido pela ação declaratória. Os defensores de Goldman recorreram à 8ª Câmara Cível do TJ-RJ no dia 17 de setembro, com um pedido de efeito suspensivo no recurso, que foi negado pelo desembargador Adriano Celso Guimarães.

Ainda em setembro, os advogados de David Goldman bateram à porta da 2ª Vara de Família com um pedido para que o pai biológico visitasse o filho. O pedido teve parecer contrário do Ministério Público que alegou a necessidade de “resguardar o menor, física, psíquica e emocionalmente”. O juiz auxiliar, Ricardo Lafayette Campos, indeferiu o pedido “diante da peculiar situação”, no dia 19.

Justiça versus Imprensa


David Goldman, além de publicar detalhes do caso em seu site, procurou uma assessoria de imprensa que divulgou o fato para os jornais. A notícia foi publicada pela Folha de S. Paulo em setembro. Isto acabou gerando nova decisão judicial.

No dia 23 de setembro, os advogados do padrasto entraram com uma ação reclamando da divulgação dos fatos que estavam sendo discutidos no processo que, por ser em Vara de Família, deveria correr em segredo de Justiça, apesar de as decisões do juízo, estar na integra no acompanhamento do processo no site do Tribunal.

O juiz Ricardo Lafayete Campos atendeu ao pedido, mas se contradisse. Ele afirmou ser incompetente para impedir que o pai biológico e seus advogados dessem entrevistas, mas acolheu o pedido de censura contra o jornal Folha de S. Paulo estipulando uma multa de R$ 150 mil por reportagem que viesse a ser publicada.

“O relevante trabalho que estas sociedades empresárias costumam prestar à sociedade, distribuindo informações, não é ilimitado, pois encontra no ordenamento jurídico pátrio óbice legítimo a preservar o direito à honra e à imagem das pessoas. Assim, o pedido do autor para que a sociedade empresária Folha de S. Paulo se abstenha de dar publicidade aos atos processuais merece acolhida”, considerou.

“Não há, todavia, como impedir o pai biológico ou seus patronos, de falarem sobre o menor ou mesmo de dar qualquer entrevista a respeito do processo em curso. Todavia, o fato do terceiro ou a mídia receber esta informação não os exime da obrigação de guardar o devido sigilo, sob pena de responsabilidade civil, criminal bem como administrativa na Ordem dos Advogados do Brasil”, concluiu. A TV Record também foi impedida de falar.

União versus Padrasto

Após a morte de Bruna, quando o menor foi entregue ao padrasto, o pai biológico voltou a acionar o governo dos Estados Unidos cobrando providências pela “retenção indevida da criança por pessoa não detentora do direito da guarda”. A autoridade americana encaminhou ao governo brasileiro o pedido de cooperação interjurisdicional.

Foi como responsável por fazer valer em território nacional os compromissos assumidos na Convenção de Haia, que a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH/PR) acionou a Advocacia-Geral da União para que ingressasse em juízo com o pedido de restituição da criança ao pai nos Estados Unidos. O pedido de busca e apreensão do menor foi interposto na 16ª Vara Federal do Rio.

A AGU requereu também, para o caso de o pedido de busca não ser atendido de imediato, que o juízo proibisse o padrasto de sair do Rio de Janeiro, a fixação de dias de visitas ao menor pelo pai biológico e, por fim, o deslocamento para a Vara Federal da ação de paternidade socioafetiva movida na Vara de Família estadual.

O juiz Rafael de Souza Pereira Pinto não concedeu a Tutela Antecipada da busca e apreensão do menor, nem da proibição ao padrasto de viajar para fora do Rio com a criança por “inexistirem quaisquer elementos nos autos a indicar eventual intenção do réu de se evadir, levando o menor consigo, para local incerto e não sabido”.

O único pedido atendido foi o de conceder o direito do pai biológico a visitar seu filho. A decisão do juiz foi tomada em 1º de outubro. Dela, um dos advogados do padrasto tomou ciência no dia 8, uma semana depois. Houve ainda um recurso ao TRF, que foi rejeitado.

Em 17 de outubro, David Goldman desembarcou no Rio para visitar seu filho. Sua vinda foi anunciada por seu advogado ao advogado do padrasto. Houve uma forte chuva, o que acabou fazendo o próprio juiz determinar que a visita começasse no sábado pela manhã. Na manhã do sábado, dia 18, além de três oficiais de Justiça, acompanharam o americano dois agentes da Polícia Federal, um representante do Consulado Americano, e o advogado de Goldman.

O americano não conseguiu ver o filho. Foi informado que no apartamento onde consta na Justiça que o padrasto mora com o casal de filhos, só estavam a bebê nascida em agosto, os pais de Bruna e seu irmão. Na semana seguinte, a uma amiga, o padrasto alegou que desconhecia a vinda do americano ao Brasil e por isto foi para Búzios com o menino. O americano ainda permaneceu mais alguns dias até ser informado de que a visita seria adiada.

Advogados brasileiros versus David Goldman

Goldman voltou para os Estados Unidos. Os advogados brasileiros ingressaram com nova ação na 13ª Vara Cível pedindo indenização por danos morais por conta das entrevistas concedidas por Goldman. O padrasto alegou perdas inclusive internacionais por ter deixado de ser convidado para palestras. Eles pediram ainda que o juiz proíba o americano de divulgar o processo.

A juíza Marisa Simões Mattos atendeu ao pedido e determinou que Goldman “se abstenha de proferir e/ou divulgar, por qualquer meio, ofensas às pessoas dos autores, em especial, referentes aos fatos envolvendo a guarda do menor, bem como retire dos sites da internet as ofensas já feitas descritas na inicial, no prazo máximo de cinco dias, a contar da intimação pessoal da presente, sob pena de multa diária de R$ 300”. Ainda não há recurso contra essa decisão.

Procurado pela reportagem da revista Consultor Jurídico, o padrasto do menor disse que não vai se manifestar por conta das decisões judiciais, em ações impetradas por ele, que impediram a imprensa de divulgar o caso. “É uma questão de proteção à criança”, disse.

Ricardo Zamariola Junior, advogado de David Goldman, não se manifesta porque há decisões que estão em segredo de Justiça.

Texto alterado em 23 de dezembro de 2008, para retirada do nome do advogado e padrasto da criança em questão, uma vez que a informação indica a identidade do menor.

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