Crime impossível

Ação por sonegação é abusiva se Estado diz que não há dívida

Autor

3 de novembro de 2008, 11h50

A ação penal por sonegação fiscal é abusiva e causa constrangimento ilegal se o Estado, na esfera administrativa, reconheceu que a dívida tributária que deu origem ao processo não existe. O ministro Cezar Peluso reafirmou o entendimento pacífico do Supremo Tribunal Federal para trancar ação penal contra dois empresários denunciados e condenados por sonegação fiscal, operações ilegais no mercado mobiliário e gestão fraudulenta.

 

Peluso lembrou que o STF costuma conceder Habeas Corpus para trancar ação penal por sonegação mesmo nos casos em que a suposta dívida ainda é discutida na esfera administrativa. Neste caso, frisou o ministro, a decisão administrativa do Conselho de Contribuintes cancelou definitivamente o crédito tributário. Logo, se o empresário não deve imposto, não há sonegação fiscal.

 

“Se a autoridade que, presentando ou representando o teórico credor, tem competência para fazê-lo, declara em definitivo com razões consistentes ou não — pouco se dá —, que não há tributo exigível, delito tributário material não há, nem pode haver”, afirmou Cezar Peluso. A decisão do ministro foi seguida por unanimidade pela 2ª Turma do STF.

 

Enrico Picciotto e Francisco Carlos Geraldo Calandrini Guimarães, donos da empresa Split Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários, tiveram a dívida tributária cancelada pelo Conselho de Contribuintes por falta de provas da sonegação. Na Justiça, em primeira instância, o juiz absolveu os empresários com base no entendimento do Supremo.

 

O Ministério Público recorreu e o Tribunal Regional Federal da 3ª região reformou a decisão e os condenou a 15 anos de prisão. A defesa recorreu e o Superior Tribunal de Justiça manteve a condenação.

 

De acordo com o STJ, a decisão do Conselho de Contribuinte de cancelar a inscrição da dívida, por ter sido baseada em falta de provas, “não é capaz de aniquilar o conjunto probatório produzido na esfera criminal”. O ministro Gilson Dipp, relator, entendeu que “a dúvida que prevaleceu na esfera administrativa foi vencida na esfera penal, após rica instrução, motivo pelo qual não se pode afastar a condenação dos réus”.

 

A decisão do STJ foi derrubada. Para os ministros do Supremo, é impossível processar um empresário por sonegação fiscal se o Estado declarou que ele não deve quaisquer tributos. “Se pretendessem os supostos devedores pagar o valor antes discutido, até para se livrar do risco ou da pendência de temerário processo criminal, não poderiam fazê-lo”, lembrou Peluso.

 

O STF já discutiu, mas ainda não aprovou, proposta de Súmula Vinculante para tratar do assunto. O texto que chegou a ser esboçado tinha o seguinte teor: “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, antes do lançamento definitivo do tributo”.

 

Leia a decisão

 

09/09/2008: SEGUNDA TURMA


 

HABEAS CORPUS 86.489-9 SÃO PAULO

 

RELATOR: MIN. CEZAR PELUSO

PACIENTE(S): ENRICO PICCIOTTO

PACIENTE(S): FRANCISCO CARLOS GERALDO CALANDRINI GUIMARÃES 

IMPETRANTE(S): DORA MARZO DE ALBUQUERQUE CAVALCANTI CORDANI  E OUTRO(A/S)

COATOR(A/S)(ES): SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

 

EMENTA: AÇÃO PENAL. Crime tributário, ou crime contra a ordem tributária. Art. 1º, incs. I e II, da Lei nº 8.137/90. Delito material. Tributo. Processo administrativo. Cancelamento do suposto crédito por decisão definitiva do Conselho de Contribuintes. Crédito tributário juridicamente inexistente. Falta irremediável de elemento normativo do tipo. Crime que se não tipificou. Trancamento do processo quanto ao delito de sonegação fiscal. HC concedido para esse fim. Precedentes. Não se tipificando crime tributário sem o lançamento fiscal definitivo, não se justifica pendência de ação penal, quando foi cancelada, por decisão definitiva do Conselho de Contribuintes, a inscrição do suposto crédito exigido.

 

A C Ó R D Ã O

 

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência da Senhora Ministra ELLEN GRACIE, na conformidade da ata de julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em deferir a ordem de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. Falou, pelos pacientes, a Dra. Dora Marzo de Albuquerque Cavalcanti Cordani e, pelo Ministério Público Federal, o Dr. Wagner Gonçalves. Ausente, justificadamente, neste julgamento, o Senhor Ministro CELSO DE MELLO.

 

R E L A T Ó R I O

 

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO – (Relator): 1. Trata-se de habeas corpus impetrado em favor de ENRICO PICCIOTTO e FRANCISCO CARLOS GERALDO CALANDRINI GUIMARÃES, contra acórdão relatado pelo Min. GILSON DIPP, do Superior Tribunal de Justiça, que denegou a ordem pleiteada no HC nº 42.165, com esta ementa:

“CRIMINAL. HC. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. EXCLUSÃO DO DÉBITO NA ESFERA ADMINISTRATIVA. AUSÊNCIA DE PROVAS. CONDENAÇÃO NA ESFERA CRIMINAL. AMPLA INSTRUÇÃO PROBATÓRIA. PAGAMENTO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. ORDEM DENEGADA.

 

I. Hipótese em que os pacientes foram condenados pela prática de crime contra a ordem tributária, não obstante a exclusão do débito por falta de provas na esfera administrativa.

 

II. O acórdão impugnado, com base na extensa e minuciosa análise do conjunto fático-probatório, verificou a existência de provas e elementos suficientes a configurar a responsabilidade penal dos pacientes.

 

III. A dúvida que prevaleceu na esfera administrativa foi vencida na esfera penal, após rica instrução, motivo pelo qual não se pode afastar a condenação dos réus, sob pena de se subordinar ao Poder Executivo a persecução penal para apuração de delitos contra a ordem tributária em quaisquer casos, indiscriminadamente.


 

IV. Não há coerência lógica no argumento de que a decisão do Conselho de Contribuintes teria fulminado as provas embasadoras da denúncia e, posteriormente, da condenação, pois se a decisão administrativa baseou-se exatamente na falta de provas, não é capaz de aniquilar o conjunto probatório produzido na esfera criminal e durante a instrução, sob o pálio do contraditório e da ampla defesa.

 

V. Se o acórdão condenatório está baseado em ampla reunião de evidências que comprovam a prática delitiva, não cabe, na via eleita, o reexame de tais elementos.

 

VI. O pagamento dos tributos devidos, a qualquer tempo, extingue a punibilidade, nos termos do art. 9º, § 2º, da Lei 10.684/2003. Precedentes do STJ e do STF.

 

VII. Ordem denegada”

 

A Procuradoria-Geral da Justiça opinou pela denegação da ordem (fls. 47/53). Sustentou, em síntese, que o minucioso acórdão condenatório do TRF da 3ª Região, mantido íntegro na decisão denegatória atacada neste writ, responde com vantagem às teses da impetração. Sintetizou que a matéria é complexa, e o reexame pretendido não cabe na estreita via do habeas corpus.

 

É o relatório.

 

 V O T O

 

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO – (Relator): 1. Afirmam os impetrantes que os ora pacientes foram denunciados pela prática dos delitos previstos no art. 1º, incs. I e II, da Lei nº 8.137/90, e arts. 4º, caput, e 7º, incs. II e III, da Lei nº 7.492/86. Sustentam que a decisão absolutória de primeira instância foi reformada por acórdão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que lhes impôs pena total de 15 anos de reclusão, em regime inicial fechado. O Ministério Público Federal conformou-se com a decisão condenatória. Interpostos recursos especial e extraordinário, não foram admitidos na Corte de origem, ensejando interposição de agravos, o primeiro já provido para conhecimento parcial do Superior Tribunal de Justiça.

 

Apontam ofensas a normas constitucionais e legais, sublinhando que uma delas comporta repulsa imediata: a condenação imposta por insulto ao art. 1º da Lei nº 8.137/90, não reconhecido no habeas corpus pedido ao Superior Tribunal de Justiça.

 

Invocam, a respeito, jurisprudência que, assentada do Supremo Tribunal Federal, impede instauração de ação penal, ou seu prosseguimento, por sonegação fiscal, quando o tributo tenha sido desconstituído na esfera administrativa.

 

2. A denúncia que atribuiu aos pacientes a prática de sonegação fiscal, operações no mercado mobiliário sem registro prévio de emissão e sem lastro, bem como gestão fraudulenta, consumadas no exercício da administração da empresa “SPLIT Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários”, fundou-se em apuração feita pelo Banco Central e por Comissão Parlamentar de Inquérito.


 

Os fatos e os valores mencionados nessas apurações, deveras, impressionam. É incontroverso, no entanto — e é-o, aliás, desde o oferecimento da denúncia —, o resultado favorável da impugnação oferecida pela empresa em sede administrativa. Ainda no ano de 2000, o Conselho de Contribuintes, mal ou bem, cancelou definitivamente o crédito tributário que deu suporte à imputação de sonegação fiscal (cf. Apenso nº 2, fls. 1.787/1.810 — numeração original). Como já o fizera a sentença de primeiro grau (cf. Apenso nº 1, fls. 2.139-2.195 – idem), reconheceu-o, às expressas, no acórdão aqui atacado, o Superior Tribunal de Justiça:

 

“O argumento básico da impetração é que o Poder Judiciário não poderia impor aos pacientes condenação pelo cometimento de crime contra a ordem tributária se a Autoridade Fazendária, em sede de procedimento administrativo, cancelou, definitivamente, o auto de infração que dava conta do débito tributário.

 

É certo que, segundo a nova orientação jurisprudencial da Suprema Corte, "nos crimes do art. 1° da Lei 8.137/90, que são materiais ou de resultado, a decisão definitiva do processo administrativo consubstancia uma condição objetiva de punibilidade, configurando-se como elemento essencial à exigibilidade da obrigação tributária, cuja existência ou montante não se pode afirmar até que haja o efeito preclusivo da decisão final em sede administrativa." (HC 81.611/DF, Relator Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE).

 

Ocorre que, na hipótese dos autos, a apontada exclusão do débito tributário não foi decorrente da análise do mérito das irregularidades imputadas aos pacientes, mas, sim, de aplicação do beneficio da dúvida à empresa da qual eram sócios-proprietários, já que a fiscalização empreendida na esfera administrativa não teria sido capaz de colacionar provas suficientes acerca da real obtenção de lucros sem a incidência de imposto.

 

O acórdão proferido pelo Conselho de Contribuintes, inclusive, foi enfático ao afirmar a simples ausência de provas a embasar a responsabilização tributária e, por isso, optou por não impor o ônus do débito tributário à empresa dos pacientes, SPLIT, tampouco à empresa de "fachada", IBF Factoring.

 

Pelo exame dos trechos da decisão da Autoridade Fiscal acima transcritos, facilmente se verifica que, diante do entendimento de que não existiriam provas a respeito de qual empresa efetivamente obteve o lucro sobre o qual se reduziu a tributação devida, não se procedeu à análise do mérito da questão.

 

A sentença condenatória, por sua vez, escorada na mera aplicação do novo entendimento que relativizou o princípio da independência das instâncias penal e administrativa, sem o exame das peculiaridades do caso concreto, absolveu os pacientes.

 

Todavia, ao contrário do ocorrido na instância administrativa, o acórdão da apelação, longamente exarado em 188 (cento e oitenta e oito) laudas, fundou-se em amplo conjunto fático-probatório, o qual foi capaz de demonstrar a caracterização de crime contra a ordem tributária consistente na sonegação de mais de R$ 60.000.000,00 (sessenta milhões de reais) a título de imposto de renda e contribuição social.”


 

(…)

 

“A Autoridade judicial, portanto, com base na extensa e minuciosa análise do conjunto fático-probatório, verificou a existência de provas e elementos suficientes a configurar a responsabilidade penal dos pacientes pela prática de crime contra a ordem tributária.

 

 

A dúvida que prevaleceu na esfera administrativa foi vencida na esfera penal, após rica instrução probatória, motivo pelo qual não se pode afastar a condenação dos réus, sob pena de se subordinar ao Poder Executivo a persecução penal para apuração de delitos contra a ordem tributária em quaisquer casos, indiscriminadamente.” (Apenso nº 3, fls. 747-748 e 749).

 

A despeito das boas razões deduzidas pelo acórdão impugnado, é evidente a ilegalidade do constrangimento que sofrem os pacientes, submetidos a acusação específica de crime tributário material, sem que subsista crédito tributário, à míngua de lançamento definitivo do tributo, reputado não devido pela autoridade administrativa competente, cuja decisão não pode desconsiderada por órgão jurisdicional, sobretudo em causa não tributária. Se a autoridade que, presentando ou representando o teórico credor, tem competência para fazê-lo, declara em definitivo com razões consistentes ou não — pouco se dá —, que não há tributo exigível, delito tributário material não há, nem pode haver. Basta atentar em que, se pretendessem os supostos devedores pagar o valor antes discutido, até para se livrar do risco ou da pendência de temerário processo criminal, não poderiam fazê-lo, senão mediante procedimento de inusitada doação ao ente público. Se juridicamente não há crédito da União, os valores que lhe fossem transferidos, sê-lo-iam apenas a título de liberalidade!

 

É, ao propósito, expressiva a ementa do “leading case” desta Corte, de cujo acórdão consta largo voto por mim declarado:

 

“Crime material contra a ordem tributária (L. 8137/90, art. 1º): lançamento do tributo pendente de decisão definitiva do processo administrativo: falta de justa causa para a ação penal, suspenso, porém, o curso da prescrição enquanto obstada a sua propositura pela falta do lançamento definitivo.

 

1. Embora não condicionada a denúncia à representação da autoridade fiscal (ADInMC1571), falta justa causa para a ação penal pela prática do crime tipificado no art. 1º da L. 8137/90 – que é material ou de resultado-, enquanto não haja decisão definitiva do processo administrativo de lançamento, quer se considere o lançamento definitivo uma condição objetiva de punibilidade ou um elemento normativo de tipo.

 

2. Por outro lado, admitida por lei a extinção da punibilidade do crime pela satisfação do tributo devido, antes do recebimento da denúncia (L. 9249/95, art. 34), princípios e garantias constitucionais eminentes não permitem que, pela antecipada propositura da ação penal, se subtraia do cidadão os meios que a lei mesma lhe propicia para questionar, perante o Fisco, a exatidão do lançamento provisório, ao qual se devesse submeter para fugir ao estigma e às agruras de toda sorte do processo criminal.


 

3. No entanto, enquanto dure, por iniciativa do contribuinte, o processo administrativo suspende o curso da prescrição da ação penal por crime contra a ordem tributária que dependa do lançamento definitivo” (HC nº 81.611, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, DJ 13.05.2005).”

 

E da declaração mencionada destaco o trecho seguinte:

 

“Na verdade, o que o Direito Penal faz aqui não é valorar determinado fato, mas valer-se de fato que já está valorado pelo Direito Tributário, com a particularidade de que ambos, assim o Direito Penal, como o Direito Tributário, são guiados pelo princípio da legalidade estrita, de modo que toda interpretação – agora por dois motivos – há de ser estritíssima. É só com lançamento definitivo que aparece obrigação exigível, por tanto tributo “devido”, que, presentes os demais elementos, configura o tipo penal, antes de cuja perfeição é impossível, do ponto de vista jurídico, propositura da ação penal. Não há crime!”

 

Essa postura do Supremo Tribunal Federal está agora assentada (cf. HC nº 85.299, DJ 08.03.2005, RE 230.020, DJ 06.04.2004, e AI nº 419.578, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE; HC nº 85.457, 22.03.2005, Rel. Min. ELLEN GRACIE; HC nº 84.423, DJ 24.08.2004, Rel. Min. CARLOS BRITTO; HC nº 84.092, DJ 22.06.2004, Rel. Min. CELSO DE MELLO; HC nº 83.414, DJ 02.03.04, e HC nº 83.901, 11.04.2006, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA; HC nº 84.105, DJ 15.06.2004, e HC nº 84.925, DJ 16.12.2004, Rel. Min. MARCO AURÉLIO).

 

Sua sedimentação tem até mitigado o rigor previsto na súmula 691, porquanto o simples indeferimento de liminar em writ impetrado ao Superior Tribunal de Justiça, a respeito, permite aqui o conhecimento de habeas corpus (cf. HC nº 85.185-1, DJ 01.09.2006, de minha relatoria; HC nº 84.014, DJ 25.06.2004, Rel. Min. MARCO AURÉLIO).

 

Os precedentes, convém frisar, no geral trataram de casos em que havia mera pendência de controvérsia administrativa, o que já é suficiente para inibir ajuizamento de ação penal e fluência do prazo prescritivo. No caso, a decisão administrativa cancelou definitivamente o crédito tributário, excluindo, de modo peremptório, admissibilidade de persecução penal por crime material contra a ordem tributária.

 

3. Isso posto, concedo a ordem, para absolver os pacientes, com fundamento no art. 386, I, do Código de Processo Penal, apenas em relação ao crime de sonegação fiscal (art. 1º da Lei 8.137/90).

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!