Dupla face

Anistia e punição a torturadores dividem opiniões e governo

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31 de outubro de 2008, 23h00

A Constituição Federal informa que o crime de tortura é imprescritível no Brasil. Mas não afastou a possibilidade da anistia, como ato de soberania do país, a exemplo do que foi acordado em 1979. Reaberta a discussão, lógica e emoção se misturam, ao mesmo tempo em que o viés mais populista da questão virou bandeira eleitoral de uma facção do partido governista. Com ela em punho, o ministro da Justiça Tarso Genro tenta credenciar-se para a vaga que até agora é de sua colega da Casa Civil, Dilma Roussef. Genro tem como cabos eleitorais a Ordem dos Advogados do Brasil e Paulo Vanucchi, secretário especial de Direitos Humanos do governo.

Em favor do entendimento da Advocacia-Geral da União, que se manifestou pela impossibilidade de anular a anistia de 79, Nelson Jobim, ministro da Defesa, repete o óbvio: se a imprescritibilidade fizer sucumbir o direito dos anistiados da direita, fará o mesmo com esquerda. Os ministros do STF e do STJ que já opinaram sobre o tema consideram o parecer técnico do advogado-geral da União, José Antonio Dias Toffoli “inatacável”.

Não deixaram boas lembranças nos tribunais a devolução a Cuba dos boxeadores que queriam asilar-se no Brasil nem as relações complicadas entre o PT e o grupo que se autodenomina Farc (Forças Armadas Revolucionárias Colombianas). Essa noção mutante do significado dos direitos humanos a serem respeitados pelo Estado revela a ideologização do debate.

A questão, como se vê, transcende o debate jurídico e tange um modo específico de ver a situação política nacional. Os defensores da punição aos torturadores se dizem movidos pela convicção de que o debate fortalece a democracia brasileira. Os defensores da anistia plena, por sua vez, sustentam que esses fatos estão superados e voltar a eles contribui para a desestabilização política da Nova República. O Supremo irá decidir a questão da punibilidade, mas o caso já chegou à esfera da Justiça internacional.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos convocou uma audiência nessa segunda-feira (27/10) para que o governo brasileiro explique a Lei da Anistia perante a comunidade internacional. A Comissão de Direitos Humanos da OEA quer saber se o governo brasileiro está sendo negligente na punição aos torturadores.

A controvérsia a respeito da interpretação da Lei da Anistia, que entrou em vigor ainda no regime militar, está na caracterização do crime de tortura. Um lado defende que tortura se enquadra na categoria de crimes políticos, anistiados em 1979. Outros afirmam que a tortura é crime contra a humanidade e, portanto, não prescritível nem anistiável.

Essa é precisamente a questão que está na mesa do ministro Eros Grau, relator da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental que a OAB ajuizou no Supremo Tribunal Federal dia 21 de outubro. A ação provoca o STF a se manifestar quanto à natureza do crime de tortura. O resultado desse julgamento criará jurisdição para os processos que tratam do tema na Justiça brasileira.

Em processos anteriores, ministros do STF se pronunciaram contra a anulação da anistia. Para o presidente do tribunal, Gilmar Mendes a questão básica “é que se faz uma distinção entre eventuais crimes perpetrados por agentes de estado e militantes políticos. Para um órgão judicial imparcial, como é o Supremo Tribunal Federal, é difícil distinguir assassinatos ou barbaridades feitas por um ou por outro agente, seja ele privado ou público”, disse em entrevista à ConJur. Para o ministro é complicado repudiar a tortura praticada pelo agente público no quartel e, ao mesmo tempo, defender o assalto a banco ou o atentado a bomba feito pelo militante político.

Pedidos de extradição, feitos pela Argentina e Uruguai, de um ex-militar uruguaio acusado de crimes relacionados à Operação Condor começou a ser julgado pelo STF no dia 11 de setembro. Em seu voto, ministro Marco Aurélio afirmou que “anistia é esquecimento, perdão no sentido maior” e “bilateral”. Questionado se o silencio sobre a questão não seria prejudicial à democracia, o ministro responde: “Ninguém é saudosista do período anterior. Mas é o caso de perguntar-se: por que houve a lei de anistia? Justamente para apagar o passado. Interessa à sociedade brasileira voltar àquela situação de conflito?”.

O julgamento, suspenso por um pedido de vista do ministro Cezar Peluso após votarem Carmem Lúcia, Eros Grau e Menezes Direito contra a extradição e Ricardo Lewandowski a favor, foi retomado nessa quinta-feira (30/10). Peluso reconheceu a ocorrência de crime continuado e votou a favor da extradição. Pelas mesmas razões apontadas pelo ministro, Carmem Lúcia mudou seu voto contra a extradição e foi acompanhada por Joaquim Barbosa e Carlos Ayres Britto. O julgamento foi novamente suspenso com pedido de vista do ministro Eros Grau, com a alegação de que pretende analisar o pedido de extradição juntamente com a ADPF da OAB, da qual é relator.


A punição aos torturadores da ditadura esbarra em um preceito jurídico fundamental. De acordo com os princípios constitucionais do Brasil, a lei não pode ser aplicada retroativamente, com exceção de mudança na lei penal que beneficie o réu. De acordo com o advogado criminalista Arnaldo Malheiros Filho, em artigo publicado na revista Consultor Jurídico em 20 de agosto de 2008 “no Brasil, a punibilidade pela prática de qualquer crime se extingue pela prescrição no prazo máximo de 20 anos, com exceção do racismo ou da ação de grupos armados contra o Estado democrático (artigo 5º, XLII e XLIII). A imprescritibilidade, criada pela Carta de 1988, só vale a partir de sua vigência. Como a tortura na repressão política é anterior a 1988 e mais de 20 já passaram, os delinqüentes têm assegurada a prescrição. Ainda que se tente enquadrar os torturadores na categoria dos “grupos armados”, o prazo já decorreu, porque anterior à norma penal prejudicial para o acusado”.

Quem defende a punição alega que as garantias constitucionais de 1988 não livram os acusados de serem processados com base em tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil já era signatário na época dos crimes, e que caracterizam a tortura como crime lesa-humanidade e imprescritível.

Um fator preponderante é, na expressão do ministro Marco Aurélio, o ponto de vista de quem está com o cabo do chicote na mão. Quando o general-presidente João Figueiredo propôs a anistia, o advogado Dalmo Dallari, como representante da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, foi contra o projeto. Ele não admitia que quem tivesse praticado os chamados “crimes de sangue”, fossem beneficiados. À época, essa expressão era utilizada para designar os “subversivos” que defenderam suas idéias de arma na mão.

Coronel Ustra

Em meio à abstração da constitucionalidade, um caso concreto tornou-se metonímia da disputa. O réu é Carlos Alberto Brilhante Ustra, coronel reformado do Exercito e ex-comandante do DOI-Codi, o principal aparelho de repressão política a opositores da ditadura. Diversos processos movidos na Justiça buscam responsabilizá-lo por mortes e desaparecimentos ocorridos nas dependências do DOI-Codi nos tempos da ditadura.

Em decisão de primeira instância, a Justiça de São Paulo declarou, Ustra culpado pelo crime de tortura no dia 9 de outubro. A condenação teve efeito declaratório e foi movida na esfera civil. O juiz da 23ª Vara Cível de São Paulo, Gustavo Santini Teodoro, afirmou na sentença que a Lei da Anistia vale para a esfera penal mas não interfere em outras responsabilidades, o que significa que sua decisão não contraria a Lei da Anistia. A decisão de primeiro grau, contudo, pode esbarrar na jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo. Em setembro, o TJ paulista extinguiu outro processo movido contra Ustra pela família do jornalista Luiz Eduardo Merlino que foi detido pelo DOI-Codi e torturado até a morte. O processo não teve seu mérito analisado, sendo extinto pois os desembargadores não consideraram apropriado o instrumento de ação declaratória para o caso.

A controvérsia do caso Ustra também se estende pela Justiça federal. O Ministério Público Federal em São Paulo move ação em que o coronel e a União são réus. Chamada a se manifestar, a Advocacia Geral da União sustentou que a Lei 9.104/95, que concedeu indenização à família dos mortos e desaparecidos na ditadura, “traz um espírito de reconciliação e de pacificação nacional”, assim como a Lei de Anistia 6.683/79. Afirmou ainda que é dever da AGU a defesa da legalidade e da constitucionalidade das leis e dos atos normativos.

O parecer provocou reações contrárias dentro do próprio governo. O titular da Secretária Especial de direitos Humanos, Paulo Vanucchi afirmou que, caso a União mantenha essa posição, deixará o governo. Decisão coerente, já que como agente público tem de colocar as razões de Estado acima de suas preferências pessoais. Tarso Genro, que ocupa a pasta da Justiça, não manifestou intenção de deixar o cargo mas também expressou insatisfação com o parecer do representante legal de seu governo. Reiterou a posição já demonstrada em ocasiões anteriores que considera tortura crime contra a humanidade. O ministro da Defesa Nelson Jobim se posicionou de acordo com o governo.

Um dos autores da ação que a OAB ajuizou no Supremo, o advogado Maurício Gentil explica: “Foi aproveitando essa controvérsia pública entre autoridades que a Ordem provocou o STF a se manifestar. Além da divergência dentro do próprio governo, é notório que juristas como o ex-ministro Carlos Velloso e o atual presidente da Comissão da Anistia, Paulo Abrão, divergem quanto à pergunta: tortura é ou não crime político?”. A ação da OAB cita ainda as opiniões de Tércio Sampaio Ferraz, Gilmar Mendes e Celso de Mello. Todos se posicionam contra a punição. “Mas, no caso dos ministros, as opiniões foram expostas fora dos tribunais e não prejudicam o posicionamento jurídico frente os argumentos da ação”, completa Maurício.


Histórico

A punibilidade dos crimes cometidos durante a ditadura é o desdobramento mais recente de uma política que busca rever ilegalidades cometidas durante a ditadura. A ação tem duas frentes com a perseguição penal de torturadores e com a reparação dos danos provocados pela repressão durante o regime militar através do pagamento de indenizações pecuniárias aos perseguidos políticos. A compensação financeira está prevista no artigo 8ª do Ato das Disposições Constitucionais Provisórias da Constituição de 1988 e foi regulamentada pela Lei 10559/2002. Desde a regulamentação, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça já analisou 37.270 pedidos e concedeu indenizações materiais a 24.560.

A bolsa ditadura sai cara para a União. Segundo a Comissão de Anistia, de 2001 até o final de 2007 foram gastos R$ 2,5 bilhões com indenizações a perseguidos pela ditadura. A lei diz que elas devem reparar o prejuízo de quem perdeu o emprego, o cargo ou sofreu outro revés econômico motivado por perseguição política. Em média, cada vítima da ditadura que provou seu prejuízo perante a Comissão recebeu R$ 104.428,21 de indenização.

O advogado Aderson Bussinger representa ex-trabalhadores da General Motors e da Embraer que foram demitidos por conta de suas posições políticas. Ele explica que para ter direito à reparação, a vítima precisa provar que era monitorada pela ditadura. As indenizações podem ser pagas em parcela única ou continuada sendo que no primeiro caso, o valor é calculado com base no salário do emprego perdido. Na indenização única, o valor é decidido pela Comissão de Anistia até o limite de R$100 mil.

O advogado não nega a validade das indenizações a todos os perseguidos da ditadura mas crítica a desigualdade do processo entre classes econômicas. “Não se dá a devida atenção à anistia dos operários, dos trabalhadores, dos militares de baixa patente. Isso é uma lacuna grave pois foram justamente as camadas mais pobres que mais sofreram economicamente com a perseguição e que mais merecem que se faça justiça hoje. São cabos, soldados, marinheiros, operários que até hoje não foram anistiados, isso é um absurdo. Os setores médios da sociedade tiveram mais atenção e receberam sua devida reparação” afirma o advogado.

O procurador Marlon Weichert, do Ministério Público Federal em São Paulo, insere a reparação financeira dos perseguidos pela ditadura como parte de um conceito maior de Justiça Transicional. “Trata-se de um tipo específico de justiça, que é aplicada na reconstrução de um Estado de Direito, em bases mais sólidas, após o fim de um regime autoritário”, afirmou o procurador em seminário realizado na USP sobre o tema. Segundo ele, os cinco objetivos dessa justiça são: buscar a verdade, punir os criminosos, reparar os prejudicados, conservar a memória das atrocidades cometidas e reformar os órgãos de segurança da nação.

No caso brasileiro, diz o procurador, cuidou-se apenas da reparação financeira às vítimas, “o que alguns mal-intencionados tacharam de dinheiro para calar a boca”.

A política de pagar indenizações materiais teve um péssimo impacto na opinião pública. As reivindicações atuais, não abordam indenização. Em sentido contrário, o advogado Fábio Konder Comparato escreveu a representação, parte da ação movida pelo MPF-SP, que exige que a União passe a conta das indenizações para os torturadores. A AGU, em seu parecer, afirma que as leis que concederam o direito à indenização foram aprovadas pelo congresso nacional e portanto não é possível cobrar o prejuízo dos responsáveis pelos danos: “Não há como exigir da União que busque o ressarcimento das indenizações por ela pagas, se foi o próprio Poder Legislativo quem concedeu tais indenizações”, diz a peça.

Nova democracia

Os defensores da revisão dos crimes da ditadura alegam que é um passo necessário para se consolidar a democracia no Brasil. Para Flávia Piovesan, professora de Direito da PUC de São Paulo, o Brasil se recusa a julgar os crimes da ditadura e essa impunidade alimenta até hoje o uso da tortura como ferramenta nas delegacias.

Para a professora, a tortura praticada por agentes do Estado compromete o próprio contrato social entre povo e governo. “O monopólio da violência que a população concede ao Estado foi deturpado e usado contra ela de maneira indevida”, diz Flávia. “O Brasil assinou tratados internacionais proibindo a tortura e precisa prestar contas à comunidade internacional, pois, em última instância, a vítima da tortura é a própria humanidade.”

Em palestra proferida sobre a questão, ela citou estudo da cientista política norte-americana Kathryn Sikkink, professora da Universidade de Minessota, que comparou países latino-americanos marcados por ditaduras no passado recente. O estudo demonstrou que as nações que puniram os crimes do período de exceção, hoje, têm mais sucesso em proteger os direitos humanos.

Leia aqui o parecer da AGU

Texto alterado às 14h20 de 1/11/2008

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