Tempo inaceitável

Excesso de prazo na prisão preventiva afronta dignidade

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30 de março de 2008, 0h01

Réu, especialmente o que está preso, tem o direito público de ser julgado dentro de um prazo razoável, sob pena de caracterizar situação de injusto constrangimento. Se o Poder Público não consegue julgar em tempo aceitável, então também não justifica manter esta pessoa presa, sem culpa formada, por violar a dignidade da pessoa humana.

O entendimento foi usado pelo ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, para garantir a liberdade de uma acusada de formação de quadrilha e porte ilegal de arma. Katiane dos Santos está presa preventivamente desde junho de 2006. Um pedido de Habeas Corpus já foi negado pelo Superior Tribunal de Justiça que disse que a complexidade do processo justificava a demora do Estado em julgar a acusada.

“Trata-se de processo com quatro denunciados presos em comarcas distintas, cuja instrução está sendo realizada somente através de cartas precatórias, tanto para a oitiva dos acusados, quanto para a inquirição das testemunhas. Portanto, as peculiaridades da causa tornam razoável a demora na formação da culpa, de modo a afastar, por ora, o alegado constrangimento ilegal”, afirmou o STJ.

Celso de Mello considerou o contrário. Para ele, o excesso de prazo “traduz situação anômala que compromete a efetividade do processo, pois, além de tornar evidente o desprezo estatal pela liberdade do cidadão, frustra um direito básico que assiste a qualquer pessoa: o direito à resolução do litígio, sem dilações indevidas e com todas as garantias reconhecidas pelo ordenamento constitucional, inclusive a de não sofrer o arbítrio da coerção estatal representado pela privação cautelar da liberdade por tempo irrazoável ou superior àquele estabelecido em lei”.

Para o ministro, afronta a ética-jurídica o excesso de prazo da prisão processual, além da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que prevê no artigo 7º: “toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade”.

Ele ressaltou que “o réu — especialmente aquele que se acha sujeito a medidas cautelares de privação de sua liberdade — tem o direito público subjetivo de ser julgado, pelo Poder Público, dentro de um prazo razoável, sob pena de caracterizar-se situação de injusto constrangimento ao seu ‘status libertatis’”.

Foram citados como precedentes o julgamento do Habeas Corpus que garantiu a liberdade para um acusado que estava submetido à prisão cautelar há 4 anos, 1 mês e 4 dias, sem julgamento e outro que ficou quatro anos e 28 dias “abusivamente” preso preventivamente. “É preciso enfatizar, uma vez configurado excesso irrazoável na duração da prisão cautelar de qualquer acusado, que este não pode permanecer exposto a tal situação de evidente abusividade, sob pena de o instrumento processual da tutela cautelar penal transmudar-se, mediante subversão dos fins que o legitimam, em inaceitável (e inconstitucional) meio de antecipação executória da própria sanção penal”, concluiu o ministro.

Leia o voto

04/03/2008

SEGUNDA TURMA

HABEAS CORPUS 91.662-7 PARANÁ

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

PACIENTE(S): KATIANE DOS SANTOS

IMPETRANTE(S): MATHEUS GABRIEL RODRIGUES DE ALMEIDA E OUTRO(A/S)

COATOR(A/S)(ES): SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

E M E N T A: “HABEAS CORPUS” – PROCESSO PENAL – PRISÃO CAUTELAREXCESSO DE PRAZOINADMISSIBILIDADEOFENSA AO POSTULADO CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA (CF, ART. 1º, III) – TRANSGRESSÃO À GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL (CF, ART. 5º, LIV) – PEDIDO DEFERIDO.


O EXCESSO DE PRAZO NÃO PODE SER TOLERADO, IMPONDO-SE, AO PODER JUDICIÁRIO, EM OBSÉQUIO AOS PRINCÍPIOS CONSAGRADOS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA, O IMEDIATO RELAXAMENTO DA PRISÃO CAUTELAR DO INDICIADO OU DO RÉU.

Nada pode justificar a permanência de uma pessoa na prisão, sem culpa formada, quando configurado excesso irrazoável no tempo de sua segregação cautelar (RTJ 137/287 – RTJ 157/633 – RTJ 180/262-264 – RTJ 187/933-934), considerada a excepcionalidade de que se reveste, em nosso sistema jurídico, a prisão meramente processual do indiciado ou do réu.

O excesso de prazo, quando exclusivamente imputável ao aparelho judiciário – não derivando, portanto, de qualquer fato procrastinatório causalmente atribuível ao réu – traduz situação anômala que compromete a efetividade do processo, pois, além de tornar evidente o desprezo estatal pela liberdade do cidadão, frustra um direito básico que assiste a qualquer pessoa: o direito à resolução do litígio, sem dilações indevidas (CF, art. 5º, LXXVIII) e com todas as garantias reconhecidas pelo ordenamento constitucional, inclusive a de não sofrer o arbítrio da coerção estatal representado pela privação cautelar da liberdade por tempo irrazoável ou superior àquele estabelecido em lei.

A duração prolongada, abusiva e irrazoável da prisão cautelar de alguém ofende, de modo frontal, o postulado da dignidade da pessoa humana, que representa – considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) – significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo. Constituição Federal (Art. 5º, incisos LIV e LXXVIII). EC 45/2004. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Art. 7º, ns. 5 e 6). Doutrina. Jurisprudência.

– O indiciado e o réu, quando configurado excesso irrazoável na duração de sua prisão cautelar, não podem permanecer expostos a tal situação de evidente abusividade, sob pena de o instrumento processual da tutela cautelar penal transmudar-se, mediante subversão dos fins que o legitimam, em inaceitável (e inconstitucional) meio de antecipação executória da própria sanção penal. Precedentes.

A C Ó R D Ã O

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Segunda Turma, na conformidade da ata de julgamentos e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em deferir o pedido de “habeas corpus”, nos termos do voto do Relator.

Brasília, 04 de março de 2008.

CELSO DE MELLO – PRESIDENTE E RELATOR


R E L A T Ó R I O

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO – (Relator): Trata-se de “habeas corpusimpetrado contra decisão, que, emanada do E. Superior Tribunal de Justiça, denegou a ordem requerida em sede de processo idêntico (HC 70.097/PR, Rel. Min. FELIX FISCHER), em acórdão que restou consubstanciado na seguinte ementa (Apenso, fls. 259):

PROCESSUAL PENAL. ‘HABEAS CORPUSSUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. ARTIGOS 288 DO CP E 14 DA LEI Nº 10.826/03. PRISÃO EM FLAGRANTE. EXCESSO DE PRAZO. COMPLEXIDADE DO FEITO. RAZOABILIDADE.

IÉ cediço que o prazo para a conclusão da instrução criminal não tem as características de fatalidade e de improrrogabilidade, fazendo-se imprescindível raciocinar com o juízo de razoabilidade para definir o excesso de prazo, não se ponderando mera soma aritmética de tempo para os atos processuais.

IITrata-se de processo com quatro denunciados presos em Comarcas distintas, cuja instrução está sendo realizada somente através de cartas precatórias, tanto para a oitiva dos acusados, quanto para a inquirição das testemunhas. Portanto, as peculiaridades da causa tornam razoável a demora na formação da culpa, de modo a afastar, por ora, o alegado constrangimento ilegal (Precedentes).

Ordem denegada.” (grifei)

A parte ora impetrante, para justificar a sua pretensão, apoiou-se, em síntese, na alegação de excesso de prazo na duração da custódia processual da ora paciente, que, presa em flagrante em 17/06/2006, permaneceu cautelarmente privada de sua liberdade por mais de 01 (um) ano e 07 (sete) meses, pela suposta prática dos delitos previstos no art. 288, parágrafo único, do Código Penal (quadrilha armada) e no art. 14 da Lei nº 10.826/2003 (Estatuto de Desarmamento).

Ao apreciar o pedido liminar formulado nesta sede processual, indeferi-o (fls. 35/36), pois considerei, então, que seria aplicável, à espécie, o entendimento firmado por esta Suprema Corte no sentido de que a complexidade dos fatos, de um lado, e o número elevado de litisconsortes penais passivos, de outro, tornavam justificável eventual retardamento na conclusão do procedimento penal, desde que a demora registrada observasse padrões de estrita razoabilidade (RTJ 93/1021 – RTJ 110/573 – RTJ 123/545 – RTJ 124/1087 – RTJ 128/652 – RTJ 128/681 – RTJ 129/746 – RTJ 135/554 – RTJ 136/604 – RTJ 178/276, v.g.).

Ocorre, no entanto, que, decorridos quase 07 (sete) meses após o indeferimento desse provimento cautelar, a parte impetrante informou que ainda não havia sido concluído o procedimento penal instaurado contra a ora paciente, estando ela(…) custodiada há mais de um ano e meio e que a instrução, por prognose, está longe de se findar, posto que ainda se busca a intimação de co-réus (…), para que constituam novo defensor para apresentação das Alegações Finais (…)” (fls. 66).


Reconsiderei, então, a mencionada decisão denegatória da liminar e deferi o pedido de medida cautelar, para assegurar, à ora paciente, o direito de permanecer em liberdade até o julgamento final desta ação de “habeas corpus”.

O Ministério Público Federal, em parecer da lavra do ilustre Subprocurador-Geral da República, Dr. EDSON OLIVEIRA DE ALMEIDA, manifestou-se pela denegação da ordem (fls. 47/49).

É o relatório.

V O T O

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO – (Relator): Entendo assistir plena razão à parte ora impetrante, eis que evidente o excesso de prazo alegado.

Com efeito, as informações prestadas pelo impetrante e o exame dos elementos constantes destes autos evidenciam, considerada a seqüência cronológica dos dados juridicamente relevantes, a ocorrência, na espécie, de superação irrazoável dos prazos legais.

É que, considerado o quadro registrado no caso em análise, a ora paciente permaneceu, na prisão, por período superior àquele que a lei permite, dando ensejo à situação de injusto constrangimento a que alude o ordenamento positivo (CPP, art. 648, II).

Com efeito, tal como anteriormente referido, a ora paciente foi presa em flagrante, em 17/06/2006, pela suposta prática dos crimes previstos no art. 288, parágrafo único, do CP e no art. 14 da Lei nº 10.826/2003, sendo que, até a presente data, não foi julgada pelo magistrado processante, permanecendo cautelarmente presa (certidão a fls. 67) mais de 01 (um) ano e 07 (sete) meses.

É sempre importante relembrar, neste ponto, que ninguém pode permanecer preso, especialmente quando sequer proferida sentença penal condenatória, por lapso temporal que exceda ao que a legislação autoriza, consoante adverte a própria jurisprudência constitucional que o Supremo Tribunal Federal firmou na matéria ora em exame:

O EXCESSO DE PRAZO, MESMO TRATANDO-SE DE DELITO HEDIONDO (OU A ESTE EQUIPARADO), NÃO PODE SER TOLERADO, IMPONDO-SE, AO PODER JUDICIÁRIO, EM OBSÉQUIO AOS PRINCÍPIOS CONSAGRADOS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA, O IMEDIATO RELAXAMENTO DA PRISÃO CAUTELAR DO INDICIADO OU DO RÉU.

Nada pode justificar a permanência de uma pessoa na prisão, sem culpa formada, quando configurado excesso irrazoável no tempo de sua segregação cautelar (RTJ 137/287 – RTJ 157/633 – RTJ 180/262-264 – RTJ 187/933-934), considerada a excepcionalidade de que se reveste, em nosso sistema jurídico, a prisão meramente processual do indiciado ou do réu, mesmo que se trate de crime hediondo ou de delito a este equiparado.

O excesso de prazo, quando exclusivamente imputável ao aparelho judiciário – não derivando, portanto, de qualquer fato procrastinatório causalmente atribuível ao réu – traduz situação anômala que compromete a efetividade do processo, pois, além de tornar evidente o desprezo estatal pela liberdade do cidadão, frustra um direito básico que assiste a qualquer pessoa: o direito à resolução do litígio, sem dilações indevidas (CF, art. 5º, LXXVIII) e com todas as garantias reconhecidas pelo ordenamento constitucional, inclusive a de não sofrer o arbítrio da coerção estatal representado pela privação cautelar da liberdade por tempo irrazoável ou superior àquele estabelecido em lei.


A duração prolongada, abusiva e irrazoável da prisão cautelar de alguém ofende, de modo frontal, o postulado da dignidade da pessoa humana, que representa considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) – significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo. Constituição Federal (Art. 5º, incisos LIV e LXXVIII). EC 45/2004. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Art. 7º, ns. 5 e 6). Doutrina. Jurisprudência.

– O indiciado e o réu, quando configurado excesso irrazoável na duração de sua prisão cautelar, não podem permanecer expostos a tal situação de evidente abusividade, ainda que se cuide de pessoas acusadas da suposta prática de crime hediondo (Súmula 697/STF), sob pena de o instrumento processual da tutela cautelar penal transmudar-se, mediante subversão dos fins que o legitimam, em inaceitável (e inconstitucional) meio de antecipação executória da própria sanção penal. Precedentes.

(RTJ 195/212-213, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)

O quadro exposto nos presentes autos registra que a ora paciente esteve cautelarmente presa há mais de 01 (um) ano e 07 (sete) meses, sem que, nesse período, tenha sido ela julgada.

O excesso verificado – posto que irrazoável revela-se inaceitável (RTJ 187/933-934), ainda mais porque essa situação anômala não foi provocada pela ora paciente, mas, isso sim, pelo próprio aparelho de Estado, o que impõe, em conseqüência, o acolhimento deste pedido de “habeas corpus”.

Nada pode justificar a permanência de uma pessoa na prisão, sem culpa formada, quando configurado excesso irrazoável no tempo de segregação cautelar do acusado, considerada a excepcionalidade da prisão processual (RTJ 137/287 – RTJ 157/633 – RTJ 180/262-264, v.g.).

É que a prisão de qualquer pessoa, especialmente quando se tratar de medida de índole meramente processual, por revestir-se de caráter excepcional, não pode nem deve perdurar, sem justa razão, por período excessivo, sob pena de consagrar-se inaceitável prática abusiva de arbítrio estatal, em tudo incompatível com o modelo constitucional do Estado Democrático de Direito.

É preciso reconhecer, neste ponto, que a duração prolongada, abusiva e irrazoável da prisão cautelar de alguém, como sucede na espécie, ofende, de modo frontal, o postulado da dignidade da pessoa humana, que representa – considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) – significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo.


Ou, em outras palavras, cumpre enfatizar que o excesso de prazo na duração irrazoável da prisão meramente processual do réu, de qualquer réu, notadamente quando não submetido a julgamento por efeito de obstáculo criado pelo próprio Estado, revela-se conflitante com esse paradigma ético-jurídico conformador da própria organização institucional do Estado brasileiro.

Cabe referir, ainda, por relevante, que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – tendo presente o estado de tensão dialética que existe entre a pretensão punitiva do Poder Público, de um lado, e a aspiração de liberdade inerente às pessoas, de outro – prescreve, em seu Art. 7º, n. 5, que “Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade (…)” (grifei).

Na realidade, o Pacto de São José da Costa Rica constitui instrumento normativo destinado a desempenhar um papel de extremo relevo no âmbito do sistema interamericano de proteção aos direitos básicos da pessoa humana, qualificando-se, sob tal perspectiva, como peça complementar e decisiva no processo de tutela das liberdades públicas fundamentais.

O réu – especialmente aquele que se acha sujeito a medidas cautelares de privação de sua liberdade – tem o direito público subjetivo de ser julgado, pelo Poder Público, dentro de um prazo razoável, sob pena de caracterizar-se situação de injusto constrangimento ao seu “status libertatis”, como já o reconheceu esta Suprema Corte ao deferir o HC 84.254/PI, Rel. Min. CELSO DE MELLO, em julgamento no qual a Colenda Segunda Turma, por votação unânime, concedeu liberdade ao paciente que se encontrava submetido à prisão cautelar há 4 (quatro) anos, 1 (um) mês e 4 (quatro) dias, sem julgamento perante órgão judiciário competente, entendimento esse reiterado, também pela Egrégia Segunda Turma do Tribunal, quando da concessão do HC 83.773/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, em face de excesso de prazo da prisão cautelar do paciente, que se prolongava, abusivamente, naquele caso, por 04 (quatro) anos e 28 (vinte e oito) dias.

Como bem acentua JOSÉ ROGÉRIO CRUZ E TUCCI (“Tempo e Processo – Uma análise empírica das repercussões do tempo na fenomenologia processual – civil e penal”, p. 87/88, item n. 3.5, 1998, RT), “o direito ao processo sem dilações indevidas” – além de qualificar-se como prerrogativa reconhecida por importantes Declarações de Direitos (Convenção Americana sobre Direitos Humanos, art. 7º, n. 5 e 6; Convenção Européia para Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, art. 5, n. 3, v.g.) – representa expressiva conseqüência de ordem jurídica que decorre da cláusula constitucional que a todos assegura a garantia do devido processo legal.

Isso significa, portanto, que o excesso de prazo, analisado na perspectiva dos efeitos lesivos que dele emanam – notadamente daqueles que afetam, de maneira grave, a posição jurídica de quem se acha cautelarmente privado de sua liberdade – traduz, na concreção de seu alcance, situação configuradora de injusta restrição à garantia constitucional do “due process of law”, pois evidencia, de um lado, a incapacidade de o Poder Público cumprir o seu dever de conferir celeridade aos procedimentos judiciais e representa, de outro, ofensa inequívoca ao “status libertatisde quem sofre a persecução penal movida pelo Estado.

A respeito desse específico aspecto da controvérsia, revela-se valiosa a observação de LUIZ FLÁVIO GOMES (“O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos e o Direito Brasileiro”, p. 242/245, 2000, RT), cujo magistério – expendido a propósito da garantia que assiste, a qualquer acusado, de ser julgado em prazo razoável, sem demora excessiva ou sem dilações indevidasexpõe as seguintes considerações:


Nossa Constituição Federal expressamente não prevê a garantia do encerramento do processo em prazo razoável, mas, como sabemos, contemplou não somente a previsão genérica do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV), senão também a regra de que os direitos e garantias nela expressamente contemplados não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais (art. 5º, § 2º).

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A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, por seu turno, enfatiza que ‘Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável…’ (art. 8.1). No que diz respeito ao preso: ‘Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade…’ (art. 7.5); ‘Toda pessoa privada da liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que este decida, sem demora…’ (art. 7.6).

Em harmonia com esses textos internacionais, é bem verdade que o nosso Código de Processo Penal contém um conjunto de dispositivos (CPP, art. 799 a 801) que cuida da necessidade do cumprimento dos prazos, estabelecendo inclusive sanções em caso de violação. Porém o que mais sobressai em conformidade com a valoração doutrinária é sua total e absoluta ‘inocuidade’: os prazos não são, em geral, cumpridos e muito raramente aplica-se qualquer sanção.

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De um aspecto da garantia de ser julgado em prazo razoável, a jurisprudência brasileira, em geral, vem cuidando com certa atenção: trata-se do excesso de prazo no julgamento do réu preso. Há constrangimento ilegal (CPP, art. 648) quando alguém está preso por mais tempo do que determina a lei. Com base nesse preceito, o direito jurisprudencial criou a regra de que o julgamento do réu preso, em primeiro grau, tem que acontecer no prazo de 81 dias (que é a soma de todos os prazos processuais no procedimento ordinário; são outros os prazos nos procedimentos especiais). Havendo excesso, sem justificação, coloca-se o acusado em liberdade, sem prejuízo do prosseguimento do processo.” (grifei)

Extremamente oportuno referir, ainda, neste ponto, o douto magistério do eminente Professor ROGÉRIO LAURIA TUCCI (“Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro”, p. 249/254, itens ns. 10.1 e 10.2, 2ª ed., 2004, RT), que oferece importante reflexão sobre o tema, cujo significado – por envolver o reconhecimento do direito a julgamento sem dilações indevidas – traduz uma das múltiplas projeções que emanam da garantia constitucional do devido processo legal:

Outra garantia’ que se encarta no ‘devido processo penal’ é a referente ao desenrolamento da ‘persecutio criminis’ emprazo razoável’.

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Ora, nosso País é um dos signatários da Convenção americana sobre direitos humanos, assinada em San José, Costa Rica, no dia 22.11.1969, e cujo art. 8.º, 1, tem a seguinte (também ora repetida) redação: ‘‘Toda pessoa tem direito de ser ouvida’ com as devidas garantias e ‘dentro de um prazo razoável’ por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por lei anterior, ‘na defesa de qualquer acusação penal contra ela formulada’ (…).


Por via de conseqüência, dúvida não pode haver acerca da determinação (…) na Carta Magna brasileira em vigor, do término de qualquer procedimento, especialmente o relativo à persecução penal, emprazo razoável’.

Essa, aliás, é concepção que se universalizou, sobretudo a partir daConvenção Européia para salvaguarda dos direitos do homem e das liberdades fundamentais’, como anota JOSÉ ROGÉRIO CRUZ E TUCCI, asserindo que, desde a edição, em 04.11.1950, desse diploma legal supranacional, ‘‘o direito ao processo sem dilações indevidas’ passou a ser concebido como um direito subjetivo constitucional, de caráter autônomo, de todos os membros da coletividade (incluídas as pessoas jurídicas) à ‘tutela jurisdicional dentro de um prazo razoável’, decorrente da proibição do ‘non liquet’, vale dizer, do dever que têm os agentes do Poder Judiciário de julgar as causas com estrita observância das normas de direito positivo’.

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Afigura-se, com efeito, de todo inaceitável a delonga na finalização do processo de conhecimento (especialmente o de caráter condenatório), com a ultrapassagem do tempo necessário à consecução de sua finalidade, qual seja a de definição da relação jurídica estabelecida entre o ser humano, membro da comunidade, enredado napersecutio criminis’, e o Estado: o imputado tem, realmente, direito ao pronto solucionamento do conflito de interesses de alta relevância social que os respectivos autos retratam, pelo órgão jurisdicional competente.

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Realmente, tendo-se na devida conta as graves conseqüências psicológicas (no plano subjetivo), sociais (no objetivo), processuais, e até mesmo pecuniárias, resultantes da persecução penal para o indivíduo nela envolvido, imperiosa torna-se a agilização do respectivo procedimento, a fim de que elas, tanto quanto possível, se minimizem, pela sua conclusão numprazo razoável’.” (grifei)

Assinale-se, por relevante, que esse entendimento encontra pleno apoio na jurisprudência que o Supremo Tribunal Federal firmou na matéria em exame, tanto que se registrou, nesta Corte, em diversas decisões, a concessão de ordens de “habeas corpus”, em situações nas quais o excesso de prazo – reconhecido em tais julgamentos – foi reputado abusivo por este Tribunal (RTJ 181/1064, Rel. Min. ILMAR GALVÃO).

Refiro-me, particularmente, aos casos nos quais a duração da privação cautelar da liberdade do acusado era semelhante ou, até mesmo, inferior ao período de encarceramento processual a que esteve submetida, na espécie, a ora paciente: 01 (um) ano, 05 (cinco) meses e 15 (quinze) dias (HC 79.789/AM, Rel. Min. ILMAR GALVÃO); 01 (um) ano e 03 (três) meses (HC 84.907/SP, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE); 01 (um) ano e 05 (cinco) dias (HC 84.181/RJ, Rel. Min. MARCO AURÉLIO); 10 (dez) meses e 21 (vinte e um) dias (HC 83.867/PB, Rel. Min. MARCO AURÉLIO); 04 (quatro) meses e 10 (dez) dias (RTJ 118/484, Rel. Min. CARLOS MADEIRA).

Todos os aspectos ora ressaltados põem em evidência um fato que assume extremo relevo jurídico, consistente na circunstância de que se registra, na espécie, evidente excesso de prazo, eis que a prisão cautelar da ora paciente, sem causa legítima, excedeu o período de 01 (um) ano e 07 (sete) meses de duração, sem que, até o presente momento, e por razões exclusivamente imputáveis ao Estado, essa mesma paciente tenha sido julgada.

É preciso enfatizar, uma vez configurado excesso irrazoável na duração da prisão cautelar de qualquer acusado, que este não pode permanecer exposto a tal situação de evidente abusividade, sob pena de o instrumento processual da tutela cautelar penal transmudar-se, mediante subversão dos fins que o legitimam, em inaceitável (e inconstitucional) meio de antecipação executória da própria sanção penal.

Sendo assim, em face das razões expostas, e considerando os elementos produzidos nestes autos, concedo a ordem de “habeas corpus”, para permitir que a ora paciente permaneça solta, se por al não estiver presa, eis que excessivo o período de duração da prisão cautelar a que foi submetida nos autos do Processo-crime nº 065/06, ora em tramitação perante o Juízo da Vara Criminal, Execuções Penais e Tribunal do Júri do Foro Regional de Fazenda Rio Grande/PR (comarca da Região Metropolitana de Curitiba).

É o meu voto.

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