Exploração sustentável

Biopirataria e o desafio da gestão de florestas públicas

Autor

  • Maria Rachel Coelho Pereira

    é professora de pós-graduação e de Graduação nos cursos de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É coordenadora acadêmica de pós-graduação em Direito Civil e Processual Civil da Estácio de Sá.

29 de março de 2008, 0h01

Raros são os debates sobre a licitação para explorar a primeira Floresta Nacional do país, a Flona Jamari, embora seus resultados afetem diretamente a vida de todos os brasileiros. A Flona Jamari, localizada ao lado do Rio Jamari, é um território verde de 220 mil hectares, distribuídos entre os municípios de Candeias do Jamari, Itapuã do Oeste e Cujubim. Deste total, 96 mil hectares foram divididos em três glebas. Só põe a mão sobre ela quem garantir o melhor projeto de sustentabilidade ambiental, garante o recém-criado Serviço Florestal Brasileiro (SFB).

A Lei de Gestão das Florestas Públicas regulamenta a exploração sustentável de florestas públicas (matas naturais ou plantadas em terras da União), sem que o Estado perca a posse sobre a área. O projeto cria ainda o Serviço Florestal Brasileiro, institui o Fundo Nacional de Desenvolvimento Florestal (FNDF) e permite concessões florestais pagas, baseadas em processos de licitação pública.

Cada uma das concessionárias deverá pagar uma quantia anual ao governo federal pelo uso dos recursos florestais. Até 30% serão destinados à manutenção do sistema de gestão, pelo SFB e Ibama (para atividades de monitoramento e controle das áreas licitadas). Os outros 70% serão assim distribuídos: 20% ao Estado onde a área está localizada; 20% aos municípios; 40% ao Instituto Chico Mendes e 20% ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Florestal. Os investimentos privados são também uma forma de fortalecer a economia e assegurar empregos.

Anuncia-se a Flona no momento em que uma imensurável reserva de madeira nobre situada entre o Vale do Jamari e a região central do estado é cobiçada por empresas locais e internacionais. Sucessivos roubos de madeira tiram o sono dos órgãos ambientais. Em 2007, o estado foi campeão em desmatamento, com um índice 600% ao registrado no ano anterior. As áreas mais afetadas estão localizadas em propriedades da Zona 1 do Zoneamento Agroecológico e Econômico. De agosto daquele ano a julho de 2007, a Amazônia brasileira bateu recorde de desmatamento.

O SFB tem o encargo de analisar as propostas das concorrentes à concessão. Apresentaram propostas ao SFB as seguintes empresas: Alex Madeira Ltda., Amata SA, Civarro Agropecuária, Engenharia e Comércio Ltda., Con & Sea Ltda., Construção e Incorporação Kabajá Ltda., Porta Júnior Construções Ltda., Sakura Indústria e Comércio de Madeiras Ltda. e Zn Indústria, Comércio e Exportação de Madeiras Ltda. ME.

O direito de exploração de áreas da Floresta Amazônica dura até 40 anos. O manejo deve ser feito com período de recuperação de 30 anos. A área licitada da Jamari equivale a mais de duas áreas da cidade de Curitiba (PR), ou 53.333 campos de futebol. Mede 96 mil hectares, em três glebas (17 mil hectares; 33 mil hectares e 46 mil hectares).

Do total de 193,8 milhões de hectares de florestas públicas federais, 43 milhões de hectares são considerados legalmente passíveis de concessão. Destes, o Plano Anual de Outorga Florestal considerou passíveis das primeiras concessões as florestas públicas inseridas numa área de 11,7 milhões de hectares (6% do total).

Além da devastação, é necessário também combater o analfabetismo entre os moradores da região. Sobretudo com educação ambiental, sem a qual não será possível coibir a invasão que já ocorre debaixo da sombra de organizações não-governamentais e religiosas que adentram a mata, alegando a evangelização dos povos da floresta. São várias as denúncias sobre a especulação imobiliária das terras do Estado.

Um levantamento da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) encaminhado ao Ministério da Justiça para amparar a operação de combate à biopirataria, compra ilegal de terras, interferência indevida em áreas indígenas e exploração de recursos minerais, lista pelo menos 25 organizações não-governamentais com atuação na Amazônia e que devem ser investigadas pela força tarefa criada pelo Ministério da Justiça. No grupo estão as entidades mais expressivas com atuação nas áreas indígenas e na defesa do meio ambiente. O relatório traz um cadastro completo das entidades, nome ou razão social, origem, sede, dirigentes, fontes de financiamento, área de atuação e as atividades desenvolvidas, mas deixa claro que nem todas exercem atividades suspeitas.

Entre as ONGs ambientalistas, um dos alvos certos da investigação é a inglesa Cool Earth, dirigida pelo milionário sueco Johan Eliasc, que oferece terras pela internet no Amazonas, Mato Grosso e em determinadas regiões do Equador com o pretexto de arrecadar dinheiro para preservação de áreas “adotadas”. Cerca de 20 mil pessoas fizeram doações na primeira semana de campanha do site da Cool Earth. Em 2005, Johan Eliasch comprou uma área de 160 mil hectares em Manicoré (a 332 quilômetros ao sul de Manaus). A campanha recebeu o apoio de várias personalidades e entidades ambientalistas britânicas.

Outra ONG com atuação na área, a amazonense Comissão Pró-Yanomami (CCPY), segundo as anotações da Abin, chegou a celebrar convênio com o laboratório americano Shaman Pharmaceuticals, sem o conhecimento da Funai ou da Fundação Nacional da Saúde (Funasa), para repassar conhecimentos tradicionais dos índios sobre medicina em troca de recursos, o que caracterizaria, segundo o governo amazonense, a prática de etnobiopirataria.

Na lista de 25 ONGs, a Abin aponta 13 com atuação em áreas indígenas e, entre elas, as suspeitas. As que mereceram maior atenção são entidades como a Amazon Conservation (ACT), de origem americana, que desenvolveu campanhas para compra de terras e é suspeita de biopirataria. Dados coletados pela Abin, a entidade repassaria conhecimentos indígenas sobre substâncias extraídas de plantas e animais a laboratórios estrangeiras ligados à produção de cosméticos e medicamentos. Grupos indígenas chegaram a acusar a ACT de não prestar contas e nem repassar recursos prometidos às aldeias.

Nos resta acreditar nesse novo mecanismo, que só permite que participem das licitações empresas brasileiras. Aparentemente, o projeto da Flona é ousado e prevê a fiscalização das concessões em três frentes: o Ibama cuidaria do monitoramento ambiental da implementação do plano de manejo florestal sustentável e o Serviço Florestal Brasileiro fiscalizaria o cumprimento dos contratos de concessão. O governo ainda não revelou quantos fiscais serão designados para a fiscalização permanente da Flona.

Há obrigatoriedade de uma auditoria independente das práticas florestais, no mínimo a cada três anos, por entidade previamente credenciada pelo Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Inmetro). Para o monitoramento, o SFB se utilizará, entre outras ferramentas, do Sistema de Detecção de Exploração Seletiva, que permite detectar a exploração florestal por sensoreamento remoto (por meio de imagens de satélite).

Esse sistema, desenvolvido em conjunto com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, deverá estar em funcionamento até o fim do ano. Elogiável para nossa realidade atual onde as cargas são achadas em terrenos baldios e seus donos nunca aparecem. Temos que assimilar o projeto como única forma do governo federal controlar a exploração de terras na Amazônia e acabar com a grilagem.

A gestão de florestas públicas é um plano bem elaborado, uma inovação ambiental, e que precisa do conhecimento, reconhecimento e confiança da sociedade brasileira. Promove conservação e uso sustentável da floresta. Com esses novos mecanismos, o Ibama deve exercer sua atividade de fiscalização e inibição das agressões ambientais e identificar os culpados. E o Ministério Público deve fiscalizar o cumprimento da Lei 11.284/2006 que prevê, inclusive, a anulação e rescisão dos contratos de concessão. E nada impede que cada um faça a sua parte. Afinal, a Amazônia é nossa.

Autores

  • é professora de pós-graduação e de Graduação nos cursos de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É coordenadora acadêmica de pós-graduação em Direito Civil e Processual Civil da Estácio de Sá.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!