Cobrança indevida

Prêmio esportivo não deve pagar contribuição previdenciária

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27 de março de 2008, 20h43

I – Colocação do tema

Ao analisarmos outro dia o artigo 676 do RIR/99[1], em conjunto com os termos do Parecer Normativo CST 173, de 26.09.74, e de diversas Soluções de Consulta[2], constatamos que a Receita Federal do Brasil atribui à premiação em dinheiro auferida pelos concorrentes em competições esportivas[3], para fins de definição do regime de apuração e pagamento do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), a natureza jurídica de “remuneração do trabalho”.

Diante dessa constatação, imediatamente nos surgiu a seguinte indagação: se tal premiação é paga a título de remuneração do trabalho, não seriam devidas, nesse caso, além do IRPF na fonte, as contribuições previdenciárias autorizadas pelos incisos do artigo 195 da Constituição Federal?

A resposta a esse questionamento, a nosso ver, é negativa, consoante passamos a demonstrar nas linhas que seguem.

II — Os fatos geradores das contribuições previdenciárias

A Seguridade Social, que deve ser entendida como “o conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”[4], será financiada por meio dos recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios e também pelas receitas provenientes das denominadas contribuições previdenciárias.

Com base nos incisos do artigo 195 da Constituição Federal, identificamos sete fatos geradores possíveis para essas contribuições previdenciárias[5][6], as quais podem ser divididas ou classificadas em dois grandes grupos, tendo por norte a pessoa eleita para arcar com dever do pagamento desses tributos (sujeito passivo).

O primeiro desses grupos comporta as contribuições previdenciárias devidas pelos empregadores, empresas ou por entidade equiparada e que incidem sobre os seguintes fatos geradores: (i.1) folha de salários, (i.2) rendimentos do trabalho pagos à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício, (i.3) receita ou faturamento, (i.4) lucro, (i.5) receitas de concursos de prognósticos e (i.6) importação de bens e serviços[7].

O segundo, por sua vez, abrangendo as contribuições previdenciárias devidas pelos trabalhadores e demais segurados da Previdência Social, possui um só fato gerador permitido constitucionalmente, qual seja: (i.7) a remuneração percebida em função do trabalho que tiver sido exercido.

III — A não-incidência de contribuições previdenciárias sobre a premiação paga em dinheiro em competições esportivas

Fixados acima, portanto, os fatos geradores admitidos constitucionalmente para incidência das contribuições previdenciárias, a tarefa que nos cabe a partir daqui desdobra-se em avaliar a possibilidade de a premiação paga em dinheiro aos competidores dos eventos ser enquadrada numa das sete hipóteses acima elencadas.

No entanto, por medida de economia e considerando a absoluta desnecessidade de dizer aquilo que de pronto salta aos olhos de qualquer um, prenderemos nossa atenção somente sobre a análise dos dois fatos geradores que guardam certa proximidade com o cenário fático em tela, ou seja, com o pagamento de prêmio em favor de competidor participante de evento desportivo.

Nessa linha de desenvolvimento, então, sentimo-nos autorizados a excluir desse nosso arrazoado as linhas que seriam direcionadas à não-caracterização da premiação como “importação de bens e serviços”, “folha de salários”, “receita ou faturamento”, “lucro” e “receitas de concursos de prognósticos” restringindo-o, então e tão-somente, à análise das hipóteses de incidência indicadas nos itens “i.2” e “i.7”, respectivamente relacionadas aos “rendimentos do trabalho pagos à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício” e à “remuneração percebida em função do trabalho que tiver sido exercido”.


Façamos isso!

IV — A inexistência de prestação de serviço a afastar a incidência das contribuições previdenciárias — Inocorrência do fato gerador

Já numa primeira análise das duas hipóteses que nos resta avaliar, identificamos logo que a suas materialidades possuem traços em comum; em verdade, quase idênticos em seus contornos.

Isso porque tanto os “rendimentos do trabalho pagos à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício”, que implica o dever da empresa (ou pessoa equiparada) de pagar contribuições previdenciárias sobre esses valores, quanto a “remuneração percebida em função do trabalho que tiver sido exercido”, cuja concretização faz com que o trabalhador arque com o peso do correspondente tributo, possuem a sua incidência condicionada a ocorrência, na realidade dos fatos, do evento “trabalho”.

Mas não é qualquer trabalho!

Considerando que o direito exige a participação de pelo menos dois sujeitos para sua materialização[8], sempre enquanto relação jurídica[9], descartamos, de pronto, a possibilidade de o conceito de “trabalho” ser empregado aqui como esforço desenvolvido em benefício do próprio trabalhador[10].

O conceito de trabalho que deve ser tomado aqui se relaciona necessariamente, então, a idéia de um esforço humano, de um fazer desenvolvido em favor e proveito de outra pessoa; noutras palavras, o trabalho aqui é sinônimo de prestação de serviço, conforme expressamente consta do próprio texto do artigo 195, inciso I, alínea “a”, da Constituição Federal, ao que se refere à contribuição previdenciária devida pela empresa.

Ei-lo:

“Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direita e indireta, nos termos da lei , mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:

I – do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre:

a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à Pessoa Física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício” (destaques e grifos nossos)

Seguindo por essa mesma trilha, José Eduardo Soares de Mello, valendo-se das lições professadas por Hugo de Brito Machado, não deixa dúvidas sobre o fato de que a materialidade da contribuição previdenciária a cargo do trabalhador também se relaciona com a prestação de serviço.

Nesse sentido, afirma o professor que, in verbis:

“Caracterizado como tradicional contribuinte do sistema previdenciário, o trabalhador é compreendido como ‘todo aquele que presta serviços, seja o empregador, seja a pessoa com a qual não mantém vínculo empregatício. Por isto mesmo, o trabalhador autônomo e avulso são contribuinte da Previdência Social. Em relação a ele a Constituição não definiu o suporte para a exigência da contribuição, mas é razoável entender-se que está incidir sobre a remuneração percebida em razão do seu trabalho. Não se pode a contribuição do trabalhador ter base em qualquer outra coisa que não seja essa remuneração, posto que é ela que o qualifica como trabalhador” [11]

Ademais, a própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal já afirmou, sob a lavra do ministro Carlos Velloso, que trabalhador é, de regra, “quem trabalha para empregador privado, inclusive os que prestam serviços a empresas públicas, sociedades mistas e entidades estatais que explorem atividade econômica”[12] [13].

Pois bem.

Sendo certo que as duas contribuições previdenciárias em foco têm como fato gerador uma prestação de serviço, a qual deve ser entendida como ato positivo praticado em benefício do credor ou de terceira pessoa[14], entendemos não ser juridicamente possível sujeitar os prêmios pagos em dinheiro à incidência também dessas contribuições.


E a razão que sustenta esse nosso entendimento repousa no fato de que os prêmios não são pagos em contraprestação de um serviço prestado pelos competidores.

E assim é porque simplesmente a promotora do evento, seja empresa ou equiparada, não aufere qualquer benefício em razão da atividade praticada por aqueles que competem nos seus eventos esportivos, porquanto todos os esforços dos competidores inscritos são, em verdade, direcionados única e exclusivamente em favor deles próprios, sempre visando atingir o melhor desempenho possível com vistas à premiação oferecida.

Inclusive, o fato de a empresa promotora não possuir nenhuma ingerência sobre o desempenho dos competidores, figura essa [ingerência] que é própria de uma relação de serviço, reforça ainda mais esse nosso entendimento.

Sendo assim, embora possua natureza de trabalho, a atividade exercida pelos competidores não poderá nunca, a nosso ver, ser qualificada como “prestação de serviços”, tampouco, por isso, ser admitida como fato gerador das contribuições previdenciárias sob análise.

Convém destacar, nesse ponto, que a própria Receita Federal do Brasil já se pronunciou, em situação bastante semelhante a ora analisada, no sentido de que os prêmios pagos em dinheiro em competições não se sujeitam à incidência das contribuições previdenciárias exatamente sob o fundamento da inocorrência do fato gerador.

Nesse sentido, vale conferir a íntegra da ementa que foi redigida para a recente Solução de Consulta 27, de 01.08.2007:

“CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. COMPETIÇÃO DE CANTADORES E REPENTISTAS. PRÊMIO. FATO GERADOR. NÃO INCIDÊNCIA. O PAGAMENTO DE PRÊMIO EM DINHEIRO A VENCEDOR DE COMPETIÇÃO DE CANTADORES E REPENTISTAS NÃO CONSTITUI FATO GERADOR SUJEITO À INCIDÊNCIA DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA.”[15]

Não bastasse isso, cumpre-nos consignar, por fim, que o competidor ganhador de prêmios em competições esportivas não foi enquadrado pela legislação previdenciária como segurado obrigatório ou especial da Previdência Social[16], nem como contribuinte individual[17], o que também reforça o nosso entendimento de que não há, de fato, incidência de qualquer contribuição previdenciária sobre as premiações pagas aos competidores de eventos desportivos.

V — Conclusão

Tendo em vista, portanto, a que a premiação paga em dinheiro aos participantes de competições esportivas não configura nenhuma das hipóteses elencadas pelos incisos do artigo 195 da Constituição Federal, entendemos pela impossibilidade jurídica de tais valores serem tributados pelas contribuições previdenciárias.


[1] “Art. 676. Estão sujeitos à incidência do imposto, à alíquota de trinta por cento, exclusivamente na fonte: I — os lucros decorrentes de prêmios em dinheiro obtidos em loterias, inclusive as instantâneas, mesmo as de finalidade assistencial, ainda que exploradas diretamente pelo Estado, concursos desportivos em geral, compreendidos os de turfe e sorteios de qualquer espécie, exclusive os de antecipação nos títulos de capitalização e os de amortização e resgate das ações das sociedades anônimas (Lei 4.506, de 1964, artigo 14);”.

[2] SRF, Solução de Consulta 461, de 02.10.07 — destaques nossos.

[3] Por “competições esportivas” entenda-se, nesse caso, todo e qualquer concurso ou competição na qual o pagamento do prêmio dependa do desempenho do corrente, do participante. Estão excluídos, assim, aquelas competições que dependem exclusivamente da sorte, como ocorre com o turfe, por exemplo.


[4] CF, art. 194, caput.

[5] “Relativamente às destinadas à seguridade social, há referência expressa no Texto Constitucional — artigo 195, I a IV — às materialidades que especificamente devem ser colhidas pelo legislador ordinário federal para criar as contribuições que objetivem financiar a atividade estatal” (BARRETO, Paulo Ayres. Contribuições. Regime Jurídico, Destinação e Controle. Ed. Noeses: São Paulo, 2006, p. 125).

[6] Sobre a taxatividade do rol prescrito pelo artigo 195 da CF, confira-se o emblemático voto que proferido pelo ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 166.77, oportunidade na qual foi declarada à época (antes da LC 84/96 e EC 20/98), em Sessão Plenária, a inconstitucionalidade da tributação pelas contribuições previdenciárias dos valores pagos a trabalhadores autônomos e a título de pró-labore.

[7] Nesses específicos itens estão compreendidas todas as contribuições previdenciárias devidas pelas empresas, inclusive as destinadas ao Sistema “S” (SESC, SENAT, SEBRAE etc), ao Seguro de Acidente do Trabalho (SAT), ao Salário-Educação, ao PIS, à COFINS, etc.

[8] “O átomo não é o sujeito sozinho: é, pelo menos, um em face do outro. A sociedade não tem ponto de partida no sujeito-indivíduo, mas na relação minimal: pelo menos um sujeito diante de um outro sujeito” (VILANOVA, Lourival. Causalidade e Relação no Direito. 4ª Ed. Ed. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2000, p. 11).

[9] “Ora, a disciplina do comportamento humano, na convivência social, é obtida mediante a criação de direitos subjetivos e deveres jurídicos que a eles correspondem, podendo dizer-se que á perfeita correlação entre cada direito e cada dever. Esses direitos e seus correlatos deveres têm um único veículo: a relação jurídica.” (CARVALHO, Paulo de Barros. Teoria da Norma Tributária. Ed. Max Limonad: São Paulo, 1998, p. 57).

[10] “Conceitualmente, parece que são rigorosamente procedentes essas observações. O conceito de serviço supõe uma relação com outra pessoa, a que se serve. Efetivamente, se é possível dizer-se que se fez um trabalho ‘para si mesmo’, não o é afirmar-se que se prestou serviço ‘a si próprio’. Em outras palavras, pode trabalho, sem que haja relação jurídica, mas só haverá serviço no bojo de uma relação jurídica.” (BARRETO, Aires Fernandino. ISS na Constituição e na Lei. Ed. Dialética, São Paulo: 2003, p. 29).

[11] MELO, José Eduardo Soares de. Contribuições Sociais no Sistema Tributário. 3ª Edição. Ed. Melhoramentos, São Paulo: 2000, p. 204 — destaques nossos.

[12] STF, Tribunal Pleno, ADI 492-1/DF, relator ministro Carlos Velloso.

[13] "Por outro lado, ao se falar em relação de trabalho, tem-se em foco o fato de uma pessoa, natural ou jurídica, figurar como tomador do serviço auferindo a energia de trabalho da pessoa natural que se coloca na posição de trabalhador com a finalidade de, utilizando-se essa energia como incremento da produção ou melhoria de suas atividades, agregar valor para a exploração de seus próprios produtos ou serviços junto ao consumidor final" (CALVET, Otávio. Curso de Processo do Trabalho. 4ª Ed. Ed. Método, São Paulo : 2005, p. 74)

[14] DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 9ª Ed. 2° Volume. São Paulo: Ed. Saraiva, 1995, p. 85.

[15] SRF, 3ª RF, Solução de Consulta 27, de 01.08.2007 — destaques nossos.

[16] Lei 8.212/91, artigo 12, incisos II a IV.

[17] Lei 8.212/91, artigo 12, inciso V.

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