Estrutura do processo

MP não pode fazer sustentação oral depois da defesa

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27 de março de 2008, 20h43

No processo criminal, a sustentação oral do representante do Ministério Público deve sempre preceder à da defesa, sob pena de nulidade do julgamento. O entendimento foi firmado pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, em fevereiro, ao seguir voto do ministro Cezar Peluso — para quem permitir ao MP sustentar depois da defesa compromete o exercício do contraditório.

Com a decisão, está anulado o julgamento contra dois diretores do Banco Mercantil de São Paulo. Os diretores eram responsáveis pelas áreas de contabilidade, auditoria e carteira de crédito imobiliário do Banco Mercantil. Eles respondem o processo na 6ª Vara Federal Criminal de São Paulo por crime contra o sistema financeiro e nacional.

“O direito de a defesa falar por último decorre, aliás, do próprio sistema, como se vê, sem esforço, a diversas normas do Código de Processo Penal. As testemunhas da acusação são ouvidas antes das arroladas pela defesa. É conferida vista dos autos ao Ministério Público e, só depois, à defesa, para requerer diligências complementares, bem como para apresentação de alegações finais. A defesa manifesta-se depois do Ministério Público até quando este funciona exclusivamente como custos legis, o que ocorre nas ações penais de conhecimento, de natureza condenatória, de iniciativa privada”, argumentou Cezar Peluso.

O ministro sustentou que “invocar a qualidade de custos legis do Ministério Público perante os tribunais, em sede recursal, parece-me caracterizar um desses expedientes que fraudam as garantias essenciais a sistema penal verdadeiramente acusatório, ou de partes”.

Para Peluso, a sustentação oral da defesa antes das considerações do MP violenta a própria estrutura acusatória do processo penal. “O exercício do contraditório deve, assim, permear todo o processo, garantindo sempre a manifestação da defesa, desde a possibilidade de arrazoar e de contra-arrazoar os recursos, até a de se fazer ouvir no próprio julgamento destes nos tribunais”, observou.

Depois do voto de Peluso (relator do caso), o ministro Joaquim Barbosa pediu vista dos autos. Quando analisou o processo, propôs submetê-lo ao Plenário da Corte, no que foi seguido pelos ministros que compõem a 2ª Turma. O Plenário, por unanimidade, corroborou a decisão do relator.

Leia o voto

21/11/2006

SEGUNDA TURMA

HABEAS CORPUS 87.926-8 SÃO PAULO

RELATOR: MIN. CEZAR PELUSO

PACIENTE(S): PAULO FRANCISCO DA COSTA AGUIAR TOSCHI

PACIENTE(S): SÉRGIO ANTÔNIO BERTUSSI

IMPETRANTE(S): ARNALDO MALHEIROS FILHO E OUTRO(A/S)

COATOR(A/S)(ES): SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

R E L A T Ó R I O

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO – (Relator): 1. Trata-se de habeas corpus impetrado em favor de PAULO FRANCISCO DA COSTA AGUIAR TOSCHI e SÉRGIO ANTÔNIO BERTUSSI, contra decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça que, por maioria de votos, lhes denegou a ordem nos autos do HC nº 41.667, nos seguintes termos:


HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO. DENÚNCIA REJEITADA. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. PROVIMENTO. SUSTENTAÇÃO ORAL PERANTE O TRIBUNAL. ORDEM. ART. 610, PARÁGRAFO ÚNICO, E ART. 618, AMBOS DO CPP. ÓRGÃO MINISTERIAL, NA FUNÇÃO PRECÍPUA DE CUSTUS LEGIS (sic) FALA POR ÚLTIMO. AUSÊNCIA DE OFENSA À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO. PREJUÍZO INDEMONSTRADO.

1. A ordem estabelecida pela lei processual para a sustentação oral em sede de recurso em sentido estrito, diferentemente do que estatui o art. 500 do CPP, deixa o representante do Ministério Público por último. Inteligência dos arts. 610, parágrafo único, e 618, do CPP.

2. De um lado, resta claro o papel de parte do órgão ministerial que recorre, como no caso, buscando o recebimento da denúncia; de outro lado, o representante do Parquet que atua em segundo grau e nas instâncias extraordinárias exerce o papel precípuo de custus legis (sic). E, inclusive, não está ele vinculado às razões recursais, podendo tranqüilamente, por ocasião do julgamento, opinar em sentido diverso, em favor do réu. É o que acontece também neste Superior Tribunal de Justiça, em que o Regimento Interno dispõe no seu art. 159, § 2º, que, nessa condição de fiscal da lei, o Ministério Público Federal "fala após o recorrente e o recorrido".

3. Ainda que assim não fosse, "ne pas de nulitté sans grief", ou seja, não há nulidade sem prejuízo (art. 563, CPP), que deve ser demonstrado. O simples fato de ter sido dado provimento ao recurso ministerial não implica, necessariamente, ter havido prejuízo à defesa. É evidente que a decisão lhe foi desfavorável, mas o prejuízo a ser demonstrado para a nulificação do ato deve estar ligado aos fundamentos utilizados como razão de decidir, ou quaisquer outras circunstâncias que, sem ter podido reagir a defesa, foram decisivas no resultado.

Seria o caso, por exemplo, de demonstrar o réu que sua defesa ficou prejudicada porque tal ou qual argumento deduzido pela acusação não pôde ser, na oportunidade, contraditado. Se não houve qualquer relevância na ordem de apresentação dos respectivos argumentos, tendo sido todos contrapostos, não há falar em ofensa ao contraditório ou à ampla defesa. Cumpre destacar, nesse ponto, que a impetração se limitou a argüir a nulidade, sem demonstrar efetivo prejuízo. Precedente.

4. Ordem denegada” (fls. 37-58).

Os pacientes estavam sendo processados, perante a 1a Vara Federal Criminal da Subseção Judiciária de São Paulo, pela prática do delito previsto no art. 10 da Lei nº 7.492/86, em razão de o Banco Mercantil Finasa S/A – instituição financeira de que são diretores responsáveis, respectivamente, pela área contábil/auditoria e pela carteira de crédito imobiliário – ter, segundo narra a denúncia, promovido a baixa de 987 e, depois, de 797 contratos de financiamento, sem efetivo ingresso dos respectivos recursos na instituição.


O Juízo de 1o grau rejeitou a denúncia por entender que a imputação implicava atribuição de responsabilidade unicamente objetiva.

O Ministério Público interpôs recurso em sentido estrito, o qual foi provido pelo Tribunal Regional Federal da 3a Região, dando início, então, ao processo-crime registrado sob o nº 2001.61.81.005478-9 e ora em trâmite na 6a Vara Criminal Federal de São Paulo, especializada em Crimes contra Sistema Nacional e Lavagem de Dinheiro.

Alegam os impetrantes que o julgamento do recurso em sentido estrito, pelo Tribunal Regional Federal da 3a Região, é absolutamente nulo, eis que, na sessão, o patrono dos pacientes foi instado a proferir sustentação oral antes do Procurador-Geral.

Segundo narra a inicial, “tratando-se, porém, de recurso da Acusação, o primeiro impetrante levantou questão de ordem, pedindo que o recorrente sustentasse oralmente suas razões antes do procurador dos recorridos”.

A questão de ordem foi, contudo, rejeitada à unanimidade, sob argumento de que o Ministério Público, em segundo grau, funciona apenas como custos legis:

“A Turma, à unanimidade, rejeitou a questão de ordem suscitada pela defesa no sentido de que o Ministério Público Federal se manifestasse previamente à sua sustentação oral, ao argumento de que não se confundem os papéis do Ministério Público ora como recorrente, ora como ‘custos legis’ e, na presente situação, o Procurador Regional da República atua como ‘custos legis’. No mérito, a Turma, à unanimidade, deu provimento ao recurso para receber a denúncia oferecida em face de Paulo Francisco da Costa Aguiar Toschi e de Sérgio Antônio Bertussi, nos termos do voto do(a) relator(a)”.

Foi, então, impetrado habeas corpus perante o Superior Tribunal de Justiça, que, como visto, denegou a ordem, por maioria de votos.

Contra tal decisão volta-se o presente pedido de writ, onde os impetrantes, em síntese, sustentam que o Ministério Público é órgão uno e indivisível, sendo impróprio invocar-se a figura de custos legis para justificar a imposição, feita à defesa dos pacientes, de que procedesse à sustentação oral antes do representante do Ministério Público. Alegam, pois, ofensa à garantia constitucional do contraditório, que pressupõe o direito de a defesa falar por último, notadamente nos recursos exclusivos da acusação, como ocorre no caso.

A Procuradoria-Geral da República opinou pela denegação da ordem (fls. 62-66), verbis:

“7. Como se vê, não merece prosperar a impetração.

8. Primeiro, a manifestação oral do Ministério Público Federal, feita quando do julgamento do recurso em sentido estrito, não se encontra nos autos, de modo a falar que a sustentação tenha influenciado no julgamento do referido recurso, que recebeu a denúncia. Assim, não há prejuízo, a justificar a anulação do julgamento. Não havendo prejuízo, não há falar em nulidade. Ademais, trata-se de questiúncula, no caso, de menor importância, que não teve qualquer influência no julgamento.


9. Assim, mesmo corretos os argumentos dos impetrantes, para argumentar, haveria necessidade de existir prejuízo, como mencionado. Prejuízo este decorrente de novos argumentos do parquet, quando do julgamento, que tenham servido de base para os desembargadores federais decidirem. Isso não ocorreu. Desse modo, não estando aqui transcritos os argumentos apresentados, nem evidenciados que foram eles, em 2a. Instância, que deram origem à decisão hostilizada, não há porque anular o julgado – ne pas de nullité sans grief.

10. Segundo, não há ofensa ao contraditório, porque não houve qualquer relevância na ordem de apresentação dos respectivos argumentos, como menciona a ilustre Ministra do Superior Tribunal de Justiça (fl. 49). Ainda: ‘cumpre destacar, nesse ponto, que a impetração se limitou a argüir a nulidade, sem demonstrar efetivo prejuízo.’ – grifos do original (fl. 49).

11. Por igual, são relevantes os argumentos da r. Ministra Relatora, que, com espeque no art. 618 do C.P.Penal, salienta serem os regimentos internos dos Tribunais complementares à norma processual, quanto aos processos e julgamentos de recursos e apelações. Diz, no ponto, verbis (fls. 48):

‘Note-se que a ordem estabelecida pela lei processual para a sustentação oral em sede de recurso em sentido estrito, diferentemente do que estatui o art. 500 do CPP, deixa o representante do Ministério Público por último.

De um lado, resta claro o papel de parte do órgão ministerial que recorre, como no caso, buscando o recebimento da denúncia; de outro lado, o representante do Parquet que atua em segundo grau e nas instâncias extraordinárias exerce o papel precípuo de custus legis (sic). É bom lembrar, inclusive, que não está ele cinvulado às razoes recursais, podendo tranqüilamente, por ocasião do julgamento, opinar em sentido diverso, em favor do réu. É o que acontece também neste Superior Tribunal de Justiça, em que o Regimento Interno dispõe no art. 159, § 2o, que, nessa condição de fiscal da lei, o Ministério Público Federal ‘fala após o recorrente e o recorrido’. Ao que consta, no mesmo sentido é o Regimento Interno do TRF da 3a. Região’.

12. Terceiro, como reconhecido pelo Tribunal dito coator, o Ministério Público, em 2a. Instância atua como fiscal da lei, quando a ação não é de competência originária. E, portanto, como custos legis pode ele, inclusive, manifestar-se contra a própria ação, como muitas vezes acontece. Em 2a. Instância, o membro do parquet não é obrigado a manter a pretensão posta pelo seu colega de 1a. Instância. Por isso, corretas as palavras do Ministro Félix Fischer (fls. 51):

‘Se ele não fosse custos legis, seria declaradamente inconstitucional a manifestação feita por escrito por órgão que atua em segundo grau ou então aqui também. É que haveria uma intervenção a mais, em frontal quebra do contraditório. Com o custos legis não há qualquer irregularidade.


A existência de um parecer no nosso sistema, que inegavelmente é híbrido — dificilmente tem alguma correlação com outros sistemas — temos uma intervenção a mais que só é possível se o Ministério Público for considerado, nesses casos, como sendo fiscal da lei.

Penso que, sendo fiscal da lei, obrigá-lo, a não ser nas hipóteses em que a lei assim o exija, a atuar conforme o recurso seja do Ministério Público ou da defesa, não tem sentido porque, afinal de contas, ele é o fiscal da lei em segundo grau. E é assim também aqui. Só deixa de ser fiscal da lei quando o Ministério Público atua junto aos Tribunais na competência originária.

É, repito, um sistema híbrido, mas se entendermos que não é assim, teremos de pensar que o parecer não pode existir, pois seria uma intervenção a mais, que a defesa não possui’.

13. Quarto, se a Constituição (art. 96, item I, letra a, da Constituição) defere aos Tribunais elaborar as normas de processo e deferir as garantias das partes, não havendo norma processual em sentido contrário no Tribunal Regional Federal da 3a. Região, deve prevalecer, como no caso, a norma gera que estabelece que o custos legis fala, na sessão, após o(s) advogado(s) das partes.

14. Por estas breves razões, manifesta-se a Procuradoria Geral da República pelo indeferimento do writ” (fls. 64-66).

Concedi liminar (fls. 98-101), determinando a suspensão do processo-crime movido contra os pacientes, até o julgamento final deste pedido.

Iniciado o julgamento em 21 de novembro de 2006, o Min. JOAQUIM BARBOSA pediu vista dos autos.

Retomado o julgamento, em 13 de novembro p.p., a Segunda Turma, acolhendo proposta do Min. JOAQUIM BARBOSA, deliberou submeter o julgamento da presente causa do Plenário do Supremo Tribunal Federal.

Neste ínterim, o juízo da 6ª Vara Federal Criminal Especializada em Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e em Lavagem de Dinheiro informou que foi declarada extinta a punibilidade dos fatos imputados ao paciente PAULO FRANCISCO DA COSTA AGUIAR, com fundamento nos arts. 107, inc. IV, 109. inc. III e 115 do Código Penal e art. 61 do Código de Processo Penal (fls. 130-136).

A defesa reiterou os termos da impetração, porque a ação penal prossegue em relação ao outro paciente, SÉRGIO ANTÔNIO BERTUSSI (fl. 143).

É o relatório.


O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO – (Relator):

1. A questão última desta causa está em saber se, em sessão de julgamento de recurso exclusivo da acusação, pode o representante do Ministério Público manifestar-se somente depois da sustentação oral da defesa. Penso que não.

2. Ainda que invoque a qualidade de custos legis, o representante do Ministério Público deve sempre pronunciar-se, na sessão de julgamento de recurso, antes da sustentação oral da defesa. As partes têm direito à estrita observância do procedimento tipificado na lei, como concretização do princípio do devido processo legal, a cujo âmbito pertencem as garantias específicas do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, da Constituição da República).

O exercício do contraditório deve, assim, permear todo o processo, garantindo sempre, como ônus, a possibilidade de manifestações oportunas e eficazes da defesa, desde a de arrazoar e contra-arrazoar recursos, até a de se fazer ouvir no próprio julgamento destes.

Em recurso em sentido estrito, interposto contra decisão de rejeição da denúncia, o denunciado, que, como é óbvio, ainda não foi citado, deve ter assegurado o exercício do ônus de se manifestar nos autos, pois seu interesse primordial reside em não ser réu, ou seja, em não lhe ser instaurada ação penal. Foi tal entendimento que levou esta Casa a editar a súmula 707, a qual enuncia que “constitui nulidade a falta de intimação do denunciado para oferecer contra-razões ao recurso interposto da rejeição da denúncia, não a suprindo a nomeação de defensor dativo”.

Estou em que fere, igualmente, as garantias da defesa todo expediente que impeça o acusado de, por meio do defensor, usar da palavra por último, em sustentação oral, sobretudo nos casos de julgamento de recurso exclusivo da acusação. Invocar, para negá-lo, a qualidade de custos legis do Ministério Público perante os tribunais, em sede recursal, parece-me caracterizar um desses artifícios linguísticos que tendem a fraudar as garantias essenciais a sistema penal verdadeiramente acusatório ou de partes.

Em excelente estudo sobre o tema, o ex-Procurador-Geral do Distrito Federal, ROGÉRIO SCHIETTI, anota:

“É, pois, superficial e simplista a distinção entre Ministério Público agente (parte) e Ministério Público consulente (fiscal), eis que, na ação penal condenatória, por mais que uma dessas funções se esconda por trás da roupagem verbal ou escrita da manifestação do membro do Parquet, estará ela presente”.[1]

De fato, na ação penal de iniciativa pública, condicionada ou não, o Ministério Público é parte, se não em sentido material – porque o poder-dever de acusar e punir não é dele, mas do Estado[2] —, é-o, ao menos formalmente, parte acusadora:


“O Ministério Público atua no pólo ativo de toda ação penal por ele iniciada, formulando a acusação, recolhendo provas e promovendo a ação penal rumo à obtenção de uma decisão judicial. Logo, não é de negar-se-lhe a qualidade de ‘parte’ na relação processual penal. […] O Ministério Público, por conseguinte, é uma parte diferenciada, sui generis, e em virtude dessa peculiaridade em seu modo de agir diz-se que o Ministério Público é ‘parte formal’, ‘parte instrumental’, ou mesmo, paradoxalmente, ‘parte imparcial’”.[3]

Desse modo, entendo difícil, senão ilógico, cindir a atuação do Ministério Público no campo recursal, em processo-crime: não há excogitar que, em primeira instância, seu representante atue apenas como parte formal e, em grau de recurso — que, frise-se, constitui mera fase do mesmo processo —, se dispa dessa função para entrar a agir como simples fiscal da lei.

Órgão uno e indivisível, na dicção do art. 127, § 1o, da Constituição da República, não há como admitir que o Ministério Público opere tão-só como custos legis no curso de processo onde, em fase diversa, já tenha funcionado, mediante outro órgão, como encarregado da acusação, sob pena de se violentar a própria sintaxe acusatória do processo penal. O conteúdo da opinião legal, de fundo, exposto no parecer ou na sustentação oral, é de pouco relevo neste tema. Ou seja, ainda que, no mérito, o Ministério Público postule a absolvição do acusado, continua sempre órgão incumbido da acusação e não deixa de agir ou de poder agir como parte que é. Conclusão diversa levaria à concepção de processo de parte única parte, o acusado, o que parece absurdo diante de um sistema garantista, acusatório, agônico, marcado pela garantia de contraditoriedade.[4]

Permitir, pois, que o representante do Ministério Público promova sustentação oral depois da defesa, ainda mais no caso de ser ele o recorrente, comprometeria o pleno exercício do contraditório, que pressupõe o direito de a defesa falar por último, a fim de poder, querendo, reagir à opinião do Parquet. Afinal, na lição velha e clássica de JOAQUIM CANUTO MENDES DE ALMEIDA, contraditório é a “ciência bilateral dos atos e termos processuais e possibilidade de contrariá-los,[5] ou seja, ordem que implica possibilidade estrutural de realizar ações lingüísticas ou reais de contradição, a título de reação regrada a ações da outra parte.

Visando, pois, a dar-lhe plena eficácia, pugna a doutrina pelo reconhecimento e garantia do direito ou poder de o acusado falar por último, notadamente nas sessões de julgamento de recursos interpostos apenas pela acusação:

“Podendo ser a manifestação do Ministério Público, como parte ou fiscal da lei, ‘carga contra o réu’, já que em tese pode se colocar ao lado do colega acusador de primeira instância, é evidente, por força do contraditório, da garantia do devido processo legal e do princípio da ampla defesa, que não pode ser a última. […] A inversão processual consagrada pela intelecção que prestigia a manifestação do Procurador (de Justiça ou da República) por último, ocasiona um sério prejuízo ao recorrido, que não pode se manifestar repelindo os argumentos eventualmente incriminadores ou mesmo para ampliar e melhor trabalhar os que lhe forem favoráveis. Nessa ordem de idéias, torna-se irrefutável a conclusão de que, sob pena de nulidade, o representante do Ministério Público em segunda instância não pode se manifestar por último quando o órgão recorrente for seu colega de primeira instância”.[6]


“O acusado, independentemente da sua posição contingencial (recorrente ou recorrido) durante o processamento do recurso, deve ter sempre assegurada a palavra por último, ou, ao menos, após a intervenção oral do acusador, enquanto exteriorização concreta do princípio do favor defensionis. Isso porque, considerando-se a ação penal em sua inteireza, e não apenas em suas fases procedimentais estanques, o acusado estará sempre na posição defensiva, rebatendo a imputação que lhe foi endereçada pelo órgão de acusação, já que, sendo uma a relação processual penal, o conflito entre o direito de punir do Estado e o direito à liberdade do acusado permanece íntegro no segundo grau de jurisdição. […] Ainda que, portanto, o acusado venha a ser o autor do recurso, continuará sendo ele o réu da ação penal, com todo o interesse em perseverar na tentativa de expor suas razões fático-jurídicas e de mostrar ao tribunal ad quem o desacerto da tese acusatória e da sentença que lhe foi desfavorável”.[7]

Comungo da idéia de que, no julgamento de recursos exclusivos da acusação, o princípio do contraditório assegura o uso da palavra ao acusado, por intermédio do defensor, sempre depois da intervenção oral do Ministério Público que oficie no tribunal:

“Mesmo que, gratia argumentandi, se adote o entendimento de que o Ministério Público não exerce qualquer função acusatória no juízo de segundo grau […] ou mesmo quando se trate de ação penal privada (onde o Parquet é, aí sim, apenas fiscal da lei), o tribunal deverá conceder a palavra à defesa após a sustentação oral do Parquet”.[8]

O direito de a defesa falar por último decorre, aliás, do próprio sistema normativo como se vê, sem esforço, a diversos preceitos do Código de Processo Penal. As testemunhas da acusação são ouvidas antes das arroladas pela defesa (art. 396, caput). É conferida vista dos autos ao Ministério Público e, só depois, à defesa, para requerer diligências complementares (art. 499), bem como para apresentação de alegações finais (art. 500, incs. I e III). A defesa manifesta-se depois do Ministério Público ainda quando funcione este apenas como custos legis, o que ocorre nas ações penais de conhecimento, de natureza condenatória, de iniciativa privada: determina o art. 500, § 2O, que o Ministério Público, nesses casos, tenha vista dos autos depois do querelante – e, portanto, antes do querelado. O próprio RISTF, no art. 132, § 5o, tem previsão análoga à do art. 500, § 2o, do CPP. Neste ponto, aliás, andou bem o Regimento Interno do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao prever, no art. 470, inc. VI, que, nas ações penais onde houver recurso do Ministério Público, falará em primeiro lugar o seu representante em segunda instância.

Daí, a inadmissibilidade de interpretação estrita ou dita literal do art. 610, § único, do Código de Processo Penal, no sentido de que o Ministério Público poderia, na sessão de julgamento relativo a recurso, fazer sustentação oral após a defesa, ainda quando se trate de recurso interposto pela própria acusação.


Na verdade, leitura atenta do art. 610, § único, não induz sequer à conclusão de que, nele, teria o Código estabelecido alguma ordem invariável de manifestação, pois é regra que contém mera referência à necessidade de o Ministério Público manifestar-se, donde a pressuposição, esta, sim, de toda a lógica e coerência com os princípios, de que deva fazê-lo, quando menos, segundo a ordem decorrente da sua posição processual perante o recurso, senão oriunda da sua contraposição teórica à condição do réu.

De igual modo merece releitura constitucional o disposto no § 2o do art. 143 do Regimento Interno do Tribunal Regional Federal da 3a Região, que dispõe que o Ministério Público Federal fará uso da palavra após o recorrente (que, no casos dos autos, é ele próprio, por meio do órgão de primeiro grau) e o recorrido.

3. Ademais, é claro, aqui, o prejuízo da inversão na ordem das sustentações orais:

“O parecer (ou qualquer nome que se dê à manifestação escrita ou oral do Parquet), mesmo despido de roupagem acusatória, pode, como já ressaltado linhas atrás, ser determinante do resultado desfavorável do julgamento em relação ao acusado, o que legitima este, por conseguinte, a merecer a oportunidade de exercitar o contraditório”.[9]

O fato de ter sido dado provimento ao recurso do Ministério Público indica, desde logo e com clareza, gravame suficiente ao reconhecimento da nulidade, embora não se negue que defesa eficiente — aquela que, em tese, garantiria resultado absolutório ou, de outra forma, favorável ao acusado — não se confunde com defesa efetiva, esta, sim, exigível à vista da garantia constitucional.

Quando, porém, se impõe ao réu que promova sustentação oral antes da intervenção do representante do Ministério Público, sobretudo no caso de ser este o recorrente, cria-se manifesta restrição à defesa, com afronta ao art. 5o, LV, da Constituição da República, o que conduz à nulidade do julgamento. A defesa aí já não é plena, como deve sê-lo, e, por sustentar a invalidez, prejuízo virtual bastaria, porque é, a rigor, impossível sua demonstração em ato, como tem a Corte reconhecido:

“1. Defesa: Defensoria Pública: ausência de intimação pessoal da pauta de julgamento do recurso em sentido estrito: nulidade absoluta: precedentes. 2. Sustentação oral frustrada pela ausência de intimação da pauta de julgamento: demonstração de prejuízo: prova impossível (v.g., HC 69.142, 1ª T., 11.2.92, Pertence, RTJ 140/926). Frustrado o direito da parte à sustentação oral, nulo o julgamento, não cabendo reclamar, a título de demonstração de prejuízo, a prova impossível de que, se utilizada aquela oportunidade legal de defesa, outra teria sido a decisão do recurso” (RHC nº 85.443, rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, DJ de 13.05.2005. No mesmo sentido, cf. HC nº 83.835, rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, DJ de 26.08.2005).

Senhora Presidente, quero fazer, aqui, um adendo a meu voto escrito, para insistir nesse ponto, que merece consideração particular.


Alegou-se — e, em casos análogos, se alega sempre – não ter sido demonstrado o prejuízo da defesa. Mas o dano, esse resulta do teor mesmo do julgamento contrário ao réu e, como tal, é certo e induvidoso. Tenho relevado este fato intransponível. O prejuízo da defesa, em casos semelhantes, é sempre certo. Presumida é apenas a relação jurídico-causal entre o vício do processo e o teor gravoso do julgamento. E tal relação não pode deixar de presumir-se ante a impossibilidade absoluta de se atribuir o resultado injurioso ao réu a causa jurídica independente.

Só se poderia, deveras, afastar, quando menos, esse nexo entre o defeito processual e a certeza do prejuízo da defesa, se o resultado concreto do julgamento, caso em que qualquer recurso seria absolutamente anódino e infrutífero, lhe tivesse sido favorável. Todas as vezes em que, sob argüição de vício processual na sessão de julgamento ou na decisão, a defesa saia de algum modo prejudicada, não é lícito opor argumentação baseada na hipótese de que, fosse outro o procedimento adotado, segundo a lei, o resultado teria sido o mesmo. É simplesmente impossível saber como se comportariam os julgadores, ou o prolator da decisão, se houvera sido observada a ordem legal do processo garantido pela Constituição!

Noutras palavras, não há como nem por onde argumentar com o fato de que a defesa não seria capaz de demonstrar outro prejuízo, senão com resultado danoso do caso concreto, porque não se pode predizer, ou melhor, não se pode adivinhar que, se tivesse sido outra a ordem observada, o resultado do julgamento teria sido o mesmo.

Por isso, esta Corte, não poucas vezes, aludiu à impossibilidade de o réu provar prejuízo, que eu nem diria mais concreto, porque não há nada mais concreto que ato de todo em todo contrário aos interesses da defesa, como é o juízo condenatório.

A mim me parece, dessarte, que tal objeção, aliás acolhida no acórdão ora impugnado, não tem, com o devido respeito, consistência alguma, porque parte de lucubração, qual seja, a de que, eventualmente, o mesmo resultado seria obtido, se a defesa, no caso, por exemplo, se tivesse manifestado depois do representante do Ministério Público. Não sabemos se o seria. Podemos até imaginar que, se se repetir o julgamento, o resultado da causa será o mesmo. Mas isso fora puro exercício de imaginação, que nada tem a ver com a necessidade de resguardar a ordem do justo processo da lei (due process of law), garantido como direito fundamental pela Constituição da República. Até porque, doutro modo, se introduz este princípio incomentável: a ordem legal do processo pode ser sempre violada, desde que o resultado seja esse ou aquele! Isto é, outorga-se ao arbítrio do julgador, ao arbítrio de quem deve controlar a legalidade e a justiça do processo, o poder de decidir se deve, ou não, observar a Constituição da República, secundum eventum litis!

A ordem estrita de ações na particular estrutura dialética do processo penal – primeiro acusação, depois defesa – é imperativa e independe do teor do parecer do órgão acusatório, que também vela pela correta aplicação da lei.

Nesse sentido, é lapidar acórdão de lavra do Min. XAVIER DE ALBUQUERQUE, e cuja ementa reza:

“Julgamento de apelações criminais. Inversão na ordem das sustentações orais, das quais a da acusação sucedeu à da defesa. Inobservância dos princípios constitucionais de ampla defesa e contrariedade no processo penal. Nulidade reconhecida. Recurso extraordinário conhecido e provido” (RE nº 91.661, rel. Min. XAVIER DE ALBUQUERQUE, DJ de 14.12.1979).

No voto do Relator, lê-se:


“Penso que a prerrogativa de falar por último constitui, para a defesa, manifestação natural da amplitude com que a Constituição a garante, do mesmo passo que traduz aplicação do princípio, também constitucional, da contrariedade no processo criminal”.

E abro mais um parêntese, para notar que, se, por especulação, entendermos que eventual repetição do julgamento terá ou teria, no caso, por conseqüência o mesmo resultado, em razão dos dados constantes dos autos – que não examino, nem me parece estaria autorizado a fazê-lo aqui -, então é razão a mais por que se repita, agora de acordo com a Constituição!

4. Diante do exposto, nos termos do art. 659 do Código de Processo Penal, julgo prejudicado o pedido em relação ao paciente PAULO FRANCISCO DA COSTA AGUIAR TOSCHI, pela extinção da punibilidade dos fatos a ele imputados, em razão da prescrição (fls. 130-136).

E concedo a ordem em favor de SÉRGIO ANTÔNIO BERTUSSI, para anular o julgamento do Recurso em Sentido Estrito nº 2001.61.81.005478-9, do Tribunal Regional Federal da 3a Região, procedendo-se a novo julgamento, observado o direito de a defesa do paciente, se pretenda proceder à sustentação oral, somente fazê-lo depois do representante do Ministério Público.


[1] CRUZ, Rogério Schietti Machado. Garantias processuais nos recursos criminais. São Paulo: Atlas, 2002, p. 94-95.

[2] TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 146-159; MAZZILLI, Hugo Nigro. Introdução do ministério público. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 259.

[3] CRUZ, Rogério Schietti Machado. Garantias…, op. cit., p. 80-81.

[4] CRUZ, Rogério Schietti Machado. Garantias…, op. cit., p. 89.

[5] Princípios fundamentais do processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, p. 82. Grifei.

[6] TORON, Alberto Zacharias. O contraditório nos tribunais e o Ministério Público. In: Estudos em homenagem a Alberto Silva Franco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 99-100.

[7] CRUZ, Rogério Schietti Machado. Garantias…, op. e loc. cit..

[8] CRUZ, Rogério Schietti Machado. Garantias…, op. cit, p. 192-193.

[9] CRUZ, Rogério Schietti Machado. Garantias…, op. cit,, p. 193.

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