Lei de biossegurança

Direitos sociais devem prevalecer sobre os individuais

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23 de março de 2008, 0h00

A despeito dos rumores irresignados acerca do pedido de vista pelo ministro Carlos Alberto Direito (ADI 3.510), nada há para se fazer faticamente no caso. Poderíamos apenas bater panelas, se na anomia não estivéssemos tão profundamente imergidos. No entanto, nada nos obsta a levar pelo menos a discussão mais a fundo, buscando as causas e concausas que permitiram os autos processuais atravessarem quase-incólumes os anos de 2005, 2006 e 2007, chegando a 2008 ainda com a necessidade de uma premeditada vista, advinda da falta de tempo que esses infindáveis anos não supriram.

Dessarte, já que ainda não houve definição da matéria, evidenciaremos o fundamento prático dessa discussão, que se resvalará na dicotomia entre Direitos difusos e coletivos, Direitos Individuais e Sociais, Religião e Ciência.

As discussões decorrentes da ADI em comento, em suma, versam sobre quando se inicia a vida (Religião — Igreja Católica, sobretudo) ou do quanto se adianta o sofrimento ou a morte (Ciência — sociedade, sobretudo humanistas e pessoas beneficiadas/interessadas pelas pesquisas com as células-tronco). Essas duas correntes são defendidas, respectivamente, pelo autor da ADI, Cláudio Fonteles (ex-procurador-geral da República e religioso fervoroso), e pelos autores da Lei de Biossegurança (Lei 11.105/2005), representados publicamente por uma casta da sociedade que entende pela constitucionalidade da norma.

Mas, a par de qualquer artifício inoportuno suscitado (argumentos falaciosos, vistas reiteradas, etc.), talvez com o escopo de se protelar o desfecho da ação, cumpre esclarecer que essa discussão não deveria ser originalmente sobre a utilização ou não das células-tronco embrionárias, mas sim sobre a fecundação e congelamento dos, já prontos, embriões. Pois, uma coisa decorre da outra, e, admitindo-se estas, não se poderá negar aquela, sob pena de inconsistência argumentativa, ou, melhor dizendo, contradição lógica. Senão vejamos. Além dos embriões inviáveis para fecundação, há também os congelados, que ainda podem ser inseridos (nidados) no útero, mesmo após vários anos de congelamento – sendo 8 anos o maior período já experimentado até hoje.

O que ocorre na prática é que não há fiscalização sobre os embriões congelados, de maneira que, embora haja regulamentação do Conselho Federal de Medicina proibindo, o descarte torna-se mais comum do que se espera ou imagina. Seja porque as pretensas mães têm receios de tentar a fertilização in vitro com embriões descongelados, seja pelo alto custo de manutenção dos embriões nos laboratórios.1

Sendo assim, sabendo do descarte dos embriões inviáveis e daqueles inutilizados pela desídia de interessados na fertilização ou dos doadores do material genético; se o fim do embrião é certo, qual será o problema de fomentar as pesquisas com o material?

Mesmo que este motivo seja religioso, político, social ou jurídico. O que vale a pena observar é que a vida não começa na concepção, mas sim no nascimento com vida2. E mais. Sendo ou não sendo, tendo ou não tendo o embrião vida, sabe-se que o artigo 5º da Lei de Biossegurança apenas permite a utilização dos embriões, senão invalidados, ao menos com uma margem muito grande de invalidação. Se a discussão sobrevier sobre os 3 anos de congelamento in vitrio, que o legislador de então já se acautele em editar outra lei derrogando o referido artigo 5º, estabelecendo um prazo mais confortável, que denote a inexistência de vida potencial no objeto da pesquisa.

Isso para não falarmos na causa maior, adstrita aos direitos humanos inerentes à personalidade, que nada é senão a prevalência das normas constitucionais e supranacionais (como o princípio da dignidade da pessoa humana) sobre as convicções pessoais ou interesses específicos, que, se acolhidos, agiriam em detrimento de toda a sociedade — mundial, inclusive. Ou ainda, como disse o Nobel Medicina e Fisiologia, Oliver Smithies, numa palestra no Parque do Ibirapuera, dia 9 de março, “um país que não tomar parte (nas pesquisas com células-tronco embrionárias) perderá a oportunidade de oferecer sua contribuição à humanidade.”

Enfim, há que se levar em conta as milhares de vidas que se salvarão com a evolução e continuidade das pesquisas. Que os direitos sociais prevalecem sobre os individuais. Que a religião deve se isentar da tentativa de fazer ciência. Precisa-se, também, considerar as infindáveis vidas e histórias salvas pela melhora da saúde de seus sujeitos… E, tudo isso, só será possível sem a nonchalance do Poder Constituído (Executivo, Legislativo e Judiciário), tão característica em uma vista e outra.

Quisera ser poeta para finalizar com a perspicácia e abrangência dos textos shakesperianos, mas, não sendo, recorremo-nos ao próprio, que diz:

“Talvez sonhar! Sim, eis aí a dificuldade! (…) Aí está a reflexão que torna uma calamidade a vida assim tão longa! Porque, senão, quem suportaria os ultrajes e desdéns do tempo, a injúria do opressor, a afronta do soberbo, as angústias do amor desprezado, a morosidade da lei, as insolências do poder e as humilhações que o paciente mérito recebe do homem indigno.”3

Notas de rodapé:

1. PAVANETI, M. C. Utilização de células-tronco e a inviolabilidade da dignidade humana – TCC, FEMA, CAP. V, 2005

2. RECURSO EXTRAORDINÁRIO – HC 72.131 – O Pacto de São José da Costa Rica, além de não poder contrapor-se à permissão do artigo 5º, LXVII, CF/88, não derrogou, por ser norma infraconstitucional geral, as normas infraconstitucionais especiais.

3. – SHAKESPEARE, W. Tragédias – Hamlet, Príncipe da Dinamarca. Trad. Carlos de Almeida e Oscar Mendes, São Paulo: Abril, Ato terceiro, Cena I, pg 252.

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