Privação de liberdade

Suspensão do processo cabe em todos os crimes de pena mínima

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21 de março de 2008, 0h00

Desde 1995, quando da edição da Lei 9.099/95, ainda não conseguimos resolver todos os problemas decorrentes da aplicação de seus institutos. Quanto à suspensão condicional do processo, em particular, uma discussão que acreditamos esteja chegando ao fim é a referente o seu cabimento nos crimes em que a pena de multa é uma alternativa à pena privativa de liberdade, e não um plus.

Diz o artigo 89, da lei 9.099/95, que a suspensão condicional do processo cabe nos “crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a 1 (um) ano, abrangidas ou não por esta Lei”. Nesses casos, pouco importa se há ou não pena de multa cumulada.

Porém, há casos em que a pena de multa não é cumulada, mas aplicável como alternativa à pena privativa de liberdade. Nesses casos, a expressão legal é “ou multa”, e não “e multa”. Em várias dessas situações (“ou multa”), a pena privativa de liberdade mínima prevista é superior a 1 (um) ano. É o que ocorre sobretudo com os crimes contra a ordem econômica e contra as relações de consumo, previstos nos artigos 4º, 5º e 7º da Lei 8.137/90. Neles, a pena de multa é sempre uma alternativa à pena privativa de liberdade. Vejamos um exemplo: se alguém induz o consumidor a erro, fazendo afirmação falsa sobre a natureza da coisa (artigo 7º, VII), fica sujeito a uma pena de detenção de dois a cinco anos, ou multa.

Pergunta-se, então, se cabe ou não a suspensão condicional do processo em uma hipótese como essa. A resposta depende basicamente de qual deve ser considerada a pena mínima. Embora o artigo 89 da lei 9.099/95 só faça referência à pena privativa de liberdade, parece evidente que qualquer outra pena prevista, seja restritiva de direitos, seja de multa, como alternativa à privação de liberdade, deve ser considerada a pena mínima.

Em nosso sistema de distribuição de penas, há inequívoca gradação, conforme sua gravidade. É o que se vê do artigo 32 do Código Penal: privação de liberdade, restrição de direitos e multa. Tanto é assim que apenas infrações muito leves, usualmente contravenções, são apenadas exclusivamente com multa. A restrição de direitos, por sua vez, é aplicada quase sempre em substituição à privação de liberdade, nos termos do artigo 44 do Código Penal, justamente como benefício ao acusado. A pena privativa de liberdade, por fim, é, segundo a criminologia moderna, medida grave, de eficácia duvidosa, recomendável apenas para casos graves.

Diante desse panorama, é certo que em nosso sistema a pena mais grave é a privativa de liberdade e a mais leve é a de multa. Mesma que ambas possam variar dentro dos limites legais, parece induvidosa a gradação legal mencionada.

Portanto, em casos como o acima utilizado como exemplo, em que a pena prevista é de “dois a cinco anos, ou multa”, a pena mínima prevista é a de multa, posto que pode ser aplicada isoladamente. Assim, pouco importa, para efeito da proposta de suspensão condicional do processo, o mínimo da pena privativa de liberdade prevista.

Uma recente decisão do Supremo Tribunal Federal, unânime, deve contribuir para a pacificação da discussão. Vejamos trechos do voto do relator, Ministro Cesar Peluzo:

“Para a suspensão condicional do processo, a Lei 9.099/95 exige que a infração imputada ao réu tenha mínima cominada igual ou inferior a 1 (um) ano.

Entendo que entra no âmbito de admissibilidade da suspensão condicional a imputação de delito que comine pena de multa de forma alternativa à privativa de liberdade, ainda que esta tenha limite mínimo superior a 1 (um) ano.

Nesses casos, a pena mínima cominada, parece-me óbvio, é a de multa, em tudo e por tudo, menor em escala e menos gravosa do que qualquer pena privativa de liberdade ou restritiva de direito. É o que se tira ao art. 32 do Código Penal, onde as penas privativas de liberdade, restritivas de direitos e de multa são capituladas na ordem decrescente de gravidade.

Por isso, se prevista, alternativamente, pena de multa, tem-se por satisfeito um dos requisitos legais para a admissibilidade de suspensão condicional do processo.

É o que convém ao caso.”1

Aliás, no julgamento do referido Habeas Corpus, o próprio Ministério Público, através da Procuradoria-Geral da República, entendeu ser cabível a proposta da suspensão condicional do processo quando a pena de multa pode ser a única aplicada:

“5. A impetração, no que lhe assiste razão, insiste na tese do cabimento da suspensão condicional do processo. Com efeito, para os delitos do artigo 7º da Lei 8.137/90 são cominadas as penas alternativas de reclusão, de 2 a 5 anos, ou multa. Tais as circunstâncias, bem demonstram a esmerada petição que, para fins de aplicação do artigo 89 da Lei 9.099/95, a pena mínima a ser considerada é a de multa que, em tese, pode ser a única aplicada.

[…]

6. Tal o quadro, resulta caracterizado o constrangimento ilegal decorrente do ato da Procuradoria-Geral de Justiça que, incorretamente, afirmou a impossibilidade jurídica da suspensa condicional do processo.

7. Isso posto, retificando-me a manifestação anterior, opino pelo deferimento da ordem, com extensão de ofício ao co-réu, para que, reconhecida em tese a possibilidade de suspensão condicional do processo cuja proposta foi indevidamente recusada, gerando ameaça à liberdade do paciente, retornem os autos ao Ministério Público estadual para manifestação fundamentada do Promotor de Justiça sobre a oportunidade ou não da proposta de suspensão do processo”2.

Essa também é a opinião daqueles que idealizaram a lei, mencionada no acórdão do Supremo, que formam a doutrina mais autorizada sobre o tema:

“Nas hipóteses em que penas diversas vêm cominadas alternativamente (prisão mínima acima de um ano ou multa, ad exemplum, artigo 4º, 5º e 7º da Lei 8.137/90), nos parece muito evidente o cabimento da suspensão do processo, pela seguinte razão: a pena mínima cominada é a de multa. Se a lei (art. 89) autoriza a suspensão condicional do processo em caso de pena privativa de liberdade mínima até um ano, a fortiori, conclui-se que, quando a pena mínima cominada é a multa, também cabe tal instituto. Pouco importa que a multa seja, no caso, alternativa. Se o legislador previu tal pena como alternativa possível é porque, no seu entender, o delito não é daqueles que necessariamente devam ser punidos com pena de prisão. Se, para os efeitos de prevenção geral, contentou-se a lei, em nível de cominação abstrata, com a multa alternativa, é porque, conforme seu entendimento, não se trata de delito de alta reprovabilidade. Sendo assim, entra no amplo espectro da sua nova política criminal de priorizar a ressocialização do infrator por outras vias, que não a prisional. Na essência da suspensão condicional, ademais, outros interesses estão presentes: reparação da vítima, desburocratização da Justiça etc. Para os crimes de média gravidade (e dentro desse conceito entram evidentemente os delitos punidos em abstrato com pena – alternativa — de prisão ou multa) a resposta estadual adequada é a de que acaba de ser descrita”3.

Dessa breve exposição, vê-se que a suspensão condicional do processo cabe em todos aqueles crimes que tenham pena mínima igual ou inferior a um ano, incluindo-se no conceito de pena mínima inferior a um ano as restritivas de direitos e de multa, se previstas com exclusividade ou como opção alternativa à privação de liberdade.

Gabriel Bertin de Almeida é advogado. Professor de Processo Penal na PUC-PR, campus Londrina. Mestre e Doutorando em Filosofia pela USP. Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais desde 1996. Membro da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais. Membro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa.

Notas de rodapé

1-STF, 2ª T., HC 83.926-6, rel. Min. Cezar Peluso — j. 07.08.07.

2- Parecer do PGR no HC 83.926-6.

3- GRINOVER, Ada Pellegrini, GOMES FILHOS, Antonio Magalhães; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES, Luiz Flavio. Juizados especiais criminais. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 255-265.

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