Retrato da advocacia

Entrevista: Luciana Gross Cunha, pesquisadora da FGV

Autor

16 de março de 2008, 0h01

Luciana Gross Cunha - por SpaccaSpacca" data-GUID="luciana_gross_cunha.jpeg">Jovem, branco, pós-graduado, que atua em mais de uma área do Direito e tem como principal preocupação manter um bom relacionamento com o cliente. Este é o retrato do profissional que trabalha nas sociedades de advogados de São Paulo. Não foi fácil convencê-los a responder um questionário que possibilitasse traçar um perfil da advocacia, mas a professora e pesquisadora da Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas Luciana Gross Cunha conseguiu e, em entrevista à revista Consultor Jurídico, falou sobre os resultados da pesquisa.

Luciana tem certa experiência em pesquisas na área jurídica: já fez levantamentos com os delegados de Polícia Civil e os membros do Ministério Público. A curiosidade e a percepção de que os escritórios e advogados estavam se profissionalizando e especializando cada vez mais fizeram com que Luciana fosse atrás de dados sobre a advocacia. Para confirmar as suas impressões ou desfazê-las.

Ao todo, 239 advogados juniores, seniores e sócios concordaram em responder ao questionário, que perguntava desde a cor da pele do entrevistado ao salário. Escritórios de todos os portes foram pesquisados. Luciana conta que encontrou “enorme resistência” de muitos advogados e bancas em participar da pesquisa. E também da Ordem dos Advogados do Brasil, que não forneceu a lista de escritórios cadastrados. As bancas pesquisadas fazem parte do banco de dados do Cesa (Centro de Estudos das Sociedades de Advogados).

A pesquisa constatou, em relação aos escritórios, que há um mercado estratificado de acordo com o tamanho da banca. As grandes sociedades concentram grandes empresas em sua clientela. As pequenas, clientes individuais. A estratificação também pode ser percebida na contratação dos profissionais, de acordo com a pesquisadora. Formados em faculdades públicas estão mais concentrados nos grandes escritórios. Mas, como sócios, a concentração é maior nos pequenos escritórios.

Entre os advogados que têm até 30 anos, 67% atuam como advogados juniores e seniores e 33% são sócios. Os dados, na interpretação de Luciana, revelam que há uma rápida mobilidade na carreira. Para subir, é preciso estudar. Por isso, 68% dos entrevistados têm pós-graduação. Entre eles, 72% fizeram especialização e 15% possuem mestrado.

Luciana Gross Cunha tem 35 anos e se enquadraria muito bem no perfil que traçou dos advogados, mas preferiu seguir a linha acadêmica. Estudou Direito na PUC e Ciências Sociais na USP, ao mesmo tempo. Logo em seguida fez doutorado em Ciências Políticas na USP. “Decidi estudar o Judiciário com o olhar da ciência política”, revela. A tese de doutorado foi transformada no livro Juizado Especial — Criação, Instalação, Funcionamento e a Democratização do Acesso à Justiça, que acaba de ser lançado pela editora Saraiva.

Na GVLaw, dá aulas na graduação, pós-graduação e mestrado. Luciana foi uma das primeiras a ser convidada para compor a equipe que criou o curso de Direito na fundação. Antes, trabalhou com a professora da USP e especialista em pesquisas sobre o Judiciário, Maria Thereza Sadek.

Os alunos do primeiro semestre têm aulas de Política e Instituições brasileiras com Luciana. “Uma das minhas preocupações é estudar a política brasileira. E não há como fazer isso sem estudar o Judiciário, que também é um poder político.” Outra disciplina que ministra chama-se Organização da Justiça e do processo. Ela explica que nesta aula leva os alunos a olharem para a administração da Justiça, como está organizada e qual é a função do processo dentro desse sistema. Os jornalistas Daniel Roncaglia e a Rodrigo Haidar também participaram da entrevista.

Leia a entrevista

ConJur — Qual o perfil do advogado das sociedades de São Paulo?

Luciana Gross Cunha — É um advogado jovem, com curso de pós-graduação. Para ele, a formação é um dos critérios mais importantes para o sucesso. Os advogados formados na USP ocupam cargos mais altos em escritórios menores. Alunos de escolas particulares, como Mackenzie e PUC, ocupam o mesmo posto em sociedades maiores. Também pudemos verificar que as mulheres ocupam cargos mais baixos dentro das sociedades. E isso não acontece por discriminação. É clara a opção pessoal da mulher. Em posições mais altas, elas não conseguem conciliar a família com a vida profissional. São poucas as que ocupam posto de sócias. As que chegaram lá, normalmente não têm filhos. Entre os homens, 57% são solteiros.

ConJur — Em quais faculdades eles são formados?

Luciana — A maioria, 30%, formou-se pela PUC. Em segundo lugar vem a USP com 22%. Em seguida, aparece o Mackenzie com 16%. E, empatadas, FMU e Unip, com 13%. As escolas tradicionais ainda ocupam o maior espaço nos escritórios. O interessante é que, em 2002, participei de uma pesquisa com delegados de Polícia Civil e o resultado foi inverso. A maioria é formada pela Unip e FMU. É importante observar que os advogados vêm de famílias com alto grau de instrução.


ConJur — Em outras carreiras jurídicas não é assim?

Luciana — Não. Entre juízes é comum a mãe, por exemplo, não ter feito faculdade. No caso das sociedades de advogados é diferente: 54% das mães e 73% dos pais dos advogados têm superior completo. Muitos indicam que o pai fez pós-graduação, o que é uma novidade dessa geração. Também é comum terem ao menos um familiar ligado à área jurídica.

ConJur — Pode-se dizer, então, que esses advogados fazem parte da elite econômica.

Luciana — Em São Paulo, sim. Grande parte da mostra de advogados entrevistados saiu da lista do Cesa (Centro de Estudos das Sociedades de Advogados). Cerca de 60% dos escritórios paulistas estão filiados à entidade. Os advogados entrevistados, mesmo os de escritórios menores, fazem parte da elite econômica que tem formação endógena. Isto é, vieram de família com boa formação.

ConJur — Para eles, fazer parte de uma sociedade de advogados é chegar ao topo da carreira?

Luciana — Sim, esse é o perfil. Eles gostam do que fazem. Querem ser sócios de grandes escritórios ou ter a sua própria grande sociedade.

ConJur — Eles pensam em adquirir experiência nas grandes sociedades para depois abrir um escritório especializado na área que mais gostam?

Luciana — Hoje, os grandes escritórios são cada vez menos especializados em uma ou poucas áreas. Os principais clientes são grandes corporações e aí as bancas passam a ter a função de atender em todas as áreas. Na pesquisa, antes da aplicação de questionários, fizemos longas entrevistas qualitativas com sócios de escritórios. Eles observaram que desde o início da década de 90, com as privatizações, o mercado está muito competitivo. Se a banca não oferece serviço em todas as áreas, perde o cliente para outro que ofereça.

ConJur — Na época, a quantidade de negócios aumentou substancialmente.

Luciana — Sim. Muitos clientes vieram do exterior e não conheciam a realidade brasileira na área do Direito. Eles queriam um escritório que atendesse desde o processo de aquisição até o problema trabalhista. Isso fez com que os grandes escritórios deixassem de ser conhecidos pela atuação em uma área específica. Grandes bancas são aquelas com mais de 50 advogados.

ConJur — E os profissionais? Estão mais especializados?

Luciana — Também não. Quando perguntávamos aos advogados a área de atuação, pouquíssimos indicavam uma única área. Hoje em dia é difícil encontrar advogados muito especializados. Eles têm de ser flexíveis.

ConJur — A pesquisa identificou a área de maior interesse dos entrevistados?

Luciana — É a área consultiva de negócios. Essa classificação nós tivemos que criar. Ela engloba atividades ligadas aos negócios de grandes corporações e especialidades como Direito Comercial, Direito Societário, Direito Penal Econômico. O contencioso também foi citado pelos entrevistados. Em segundo lugar, áreas tradicionais como penal, cível, família, trabalhista e tributário. Elas ainda aparecem como setores promissores. O Direito Público vem em seguida, muito por conta do crescimento de parcerias público-privadas, que demandam conhecimento bem específico.

ConJur — Qual tipo de especialização os advogados fazem mais: lato sensu ou stricto sensu?

Luciana — Lato sensu, porque permite estudar e trabalhar ao mesmo tempo. Eles fazem pós-graduação para crescer na carreira. Os escritórios estão se profissionalizando. Em muitos, a área administrativa não é mais tocada por um advogado, o que é uma novidade. Especialistas em administração de empresas preparam um plano de carreira. Um dos requisitos para o advogado subir de cargo é ter curso de especialização. É uma exigência dos escritórios.

ConJur — O escritório paga o curso para o advogado?

Luciana — Não. Apesar de cobrar um curso de especialização, quem paga é o próprio advogado.

ConJur — E eles ganham bem?

Luciana — A maior parte dos 239 entrevistados não respondeu à pergunta sobre os rendimentos. O que conseguimos constatar foi que, hoje, eles são advogados contratados. E não mais associados, sem direitos trabalhistas. Com fiscalização mais intensa da Receita Federal, os escritórios passaram a contratar.

ConJur — Qual a porcentagem de advogados contratados?

Luciana — Os dois terços que não são sócios são contratados. É difícil encontrar advogados que não são funcionários do escritório.

ConJur — Qual a idade média dos advogados?

Luciana — 65% deles tem até 30 anos.

ConJur — As sociedades de advogados estão sendo tomadas por jovens?

Luciana — Essa não é uma característica só das sociedades de advogados. Nos últimos anos, em todas as carreiras jurídicas houve diminuição da idade de entrada no mercado de trabalho. No entanto, com as restrições implementadas com a Reforma do Judiciário, como a necessidade de tempo de atividade como advogado para prestar concurso, a advocacia passou a ser uma opção. E muitas das sociedades de advogados têm ano limite de aposentadoria. A idade varia entre 60 e 65 anos, que é cedo para parar de trabalhar.


ConJur — Há ainda o fato de ter aumentado o número de cursos de Direito, o que coloca mais gente no mercado.

Luciana — Sim. Aumentou o número de cursos, o mercado cresceu e, obrigatoriamente, houve uma absorção por essas sociedades. Criaram uma nova categoria. Depois do estagiário, o advogado júnior.

ConJur — Como eles vêem a advocacia? Eles têm uma visão de negócios? Ou mantém aquela visão romântica da advocacia, de defesa das liberdades, da justiça?

Luciana — A visão é de negócio. Quando perguntamos quais as principais características de uma boa sociedade de advogados, 90% responderam que tem de ter boa comunicação com o cliente, conquistá-lo. Essa é uma resposta nova, que aparece inclusive em entrevista com sócio. Um sócio disse que o maior problema de hoje é que o advogado que entra no mercado não sabe lidar com o cliente. Não basta só saber a lei e o direito. O mercado é de alta concorrência. Saber lidar com o cliente pode ser o diferencial em relação a outras bancas. Conhecer a lei aparece em segundo lugar. O nome do sócio aparece como a última resposta para que a sociedade tenha sucesso.

ConJur — Quais eram as possibilidades de resposta?

Luciana Gross Cunha — Comunicação com o cliente, conhecer a lei, conhecer a realidade brasileira ou o nome do sócio. O entrevistado podia escolher todas, se quisesse. O conhecimento sobre a realidade brasileira ficou em terceiro lugar. Os advogados observaram ainda que a linguagem usada com o cliente não pode ser técnica. A necessidade de informações sobre o mercado e a realidade brasileira aparece aí. É essencial que o advogado esteja bem informado, que saiba o que está acontecendo na economia, na área social, na política. Nos jornais, a cobertura da área jurídica vem aumentando. As decisões do Supremo Tribunal Federal todos os dias estão estampadas nos jornais.

ConJur — O ingresso em uma sociedade é por mérito?

Luciana — Não pesquisei a forma de ingresso, mas a promoção na carreira é por mérito.

ConJur — O filho do sócio não tem mais a primazia de chegar a determinado posto sem passar por todos os estágios.

Luciana — Não dá para afirmar isso de forma categórica. Mas com a profissionalização, a administração interna funciona independentemente da família. O mais importante é que esse administrador é um administrador, não um advogado que cumpre a função de olhar a carreira. Isso era normal nas sociedades de advogados.

ConJur — A pesquisa identificou outras diferenças entre homens e mulheres, além do cargo?

Luciana — As mulheres normalmente são menos especializadas nas áreas de atuação. Elas continuam nas áreas tradicionais: cível, penal, trabalhista, família e tributário. O homem aparece mais nas áreas de telecomunicação, patentes, energia. As especialidades são marcadamente masculinas.

ConJur — Por quê?

Luciana — Talvez pela própria organização interna da sociedade de advogados. Atuando em uma área menos especializada, ela consegue conciliar melhor as tarefas que tem.

ConJur — O que leva um advogado a se associar a uma banca?

Luciana — Normalmente não é uma escolha pessoal. Todos eles pretendem se associar a uma banca ou se tornarem sócios de escritórios. Mas não é uma escolha pessoal. É uma trajetória de carreira. Virar sócio é uma questão de status.

ConJur — Isso importa bastante?

Luciana — Importa. É uma questão tão importante como no mundo empresarial. Podemos tratar as sociedades de advogados como mais um negócio. Um grande negócio, com todas as suas características. Eles têm de saber concorrer no mercado e ganhar.

ConJur — O trabalho é artesanal?

Luciana — Não. Eles funcionam como mais um funcionário da empresa atendendo o cliente.

ConJur — Nem nas grandes causas?

Luciana — Nas grandes causas, o sócio tem de se envolver pessoalmente. Só nesses casos o tratamento é artesanal. O envolvimento do sócio se dá, principalmente, para cuidar da relação e atendimento ao cliente. E o atendimento é um fator tão importante que muitos escritórios criaram áreas que não existiam para atender às necessidades dos clientes. Antes, havia escritórios que só faziam Direito do Trabalho e, outros, só Direito Penal. Hoje, essas áreas entraram nos grandes escritórios. O setor de Direito Penal Econômico vem recebendo atenção das bancas.

ConJur — Os escritórios estão organizados como se fossem pequenos escritórios dentro de um grande guarda-chuva?

Luciana — Não. Há interligação entre as áreas. Por isso, os advogados dizem que trabalham em mais de uma área. Eles têm de se comunicar entre si. O cliente exige isso.

ConJur — Se um escritório não tem a área trabalhista e precisa dela, se associa a outro ou costuma terceirizar o serviço?


Luciana — O que eles têm feito é trazer a área para dentro do escritório. Há uma expansão forte neste sentido. Por isso, hoje em dia há um número maior de sociedades grandes.

ConJur — O que significa tratar bem o cliente?

Luciana — Ter um canal aberto com ele. Facilitar a forma de pagamento também conta. Hoje, os escritórios oferecem um pacote fechado de remuneração, o que influencia na concorrência pelo preço.

ConJur — Há muita concorrência em relação ao preço?

Luciana — Alguns sócios tocaram nesta questão durante a pesquisa. Para ser atrativa, a sociedade de advogados tem de personalizar a forma de prestação do serviço. Essa é uma questão importante. A profissionalização dos escritórios também é um indicativo de concorrência. A necessidade de criar carreira e apontar para o advogado a possibilidade de ascensão dentro do escritório. O plano de carreira ajuda a não desperdiçar os talentos. Eles não querem correr o risco de formar o advogado e depois ele ser contratado por outra banca.

ConJur — O investimento em material humano é grande?

Luciana — Na pesquisa, os advogados, principalmente os juniores, achavam que as sociedades deveriam investir mais na mão-de-obra. Já que eles mesmos pagam a pós-graduação.

ConJur — Quantas línguas os advogados falam?

Luciana Gross Cunha — A maior parte deles fala inglês. Muitos falaram sobre a possibilidade de estudar em outro país. A maior parte pensa em ir para os Estados Unidos. A Itália também aparece, na área de Direito Civil.

ConJur — A entrada de alguns escritórios estrangeiros no país causou receio entre os sócios?

Luciana — A maior parte não vê isso como um problema. Pelo contrário, eles acham que vão ganhar, porque serão consultados por esses escritórios. E também acham que terão vantagem porque conhecem como funciona o mercado nacional.

ConJur — Na pesquisa, houve algum resultado que você tinha previsto e se confirmou? Ou algum que surpreendeu?

Luciana — O resultado que se confirmou foi a idéia de que os escritórios estão se profissionalizando. A maior surpresa é que as áreas tradicionais ainda são muito procuradas na especialização e continuam sendo apontadas como promissoras. A profissionalização da sociedade de advogados não acabou com o tradicionalismo da atuação do profissional. Uma idéia criada e que caiu por terra foi a de que os advogados seriam altamente especializados. Eles não são.

ConJur — Há diferença entre escritórios e grandes empresas?

Luciana — As diferenças diminuíram bastante. Hoje, os advogados têm de cumprir metas. Eles não podem perder o cliente e têm de cumprir um determinado número de atendimentos por mês. Internamente, também é um mercado competitivo.

Clique aqui para ver a pesquisa completa.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!