Cotas e discriminação

Sistema de cotas cria situação constrangedora e injusta

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3 de março de 2008, 19h13

O debate sobre a manutenção de cotas para negros, afro-descendentes e indígenas, nas universidades, não tem merecido tratamento adequado e inteligente. Há boa dose de preconceito, além de situar a capacidade do cidadão na origem, na cor da pele ou na etnia; a reserva de cotas, da forma como é tratada, implica admitir incapacidade dos segmentos favorecidos pelo benefício; afinal, para “acesso aos níveis mais elevados do ensino” deve haver salutar competição [Constituição, inc. V, art. 208].

A política de ação afirmativa foi admitida em muitos países, dentre os quais, Estados Unidos, Canadá, Alemanha, Nova Zelândia, e Índia; busca oferecer a segmentos discriminados da sociedade, tratamento diferenciado, como compensação pelas desvantagens, originadas das condições sociais da vida.

Nos Estados Unidos, o sistema de cotas tornou-se mais conhecido no ano de 1961; empresas e universidades buscaram aplicação das leis dos direitos civis e políticos, visando reduzir a discriminação racial. A ocorrência provocou maior distanciamento dos próprios negros, que ficavam isolados; recentemente, a Suprema Corte americana julgou o sistema de cotas inconstitucional.

A política de ação afirmativa, no Brasil, registra fatos marcantes na década de 90, quando a Lei 8.112/90, § 2º, artigo 5º, reserva vagas, no percentual de 20%, para deficientes físicos habilitados a cargos públicos; tratamento semelhante torna-se extensivo às empresas privadas, através da Lei 8.213/91, artigo 93, que fixa para deficientes a cota mínima de 2% e máxima de 5%. O desconhecimento do texto da lei e a falta de fiscalização impediram seu cumprimento. A Lei 9.504/97, artigo 10, § 3º, reserva para as mulheres percentual como candidatas dos partidos políticos.

Vê-se que o legislador ampliou o sistema de cotas do trabalho para o campo da educação. A chamada “lei do boi”, Lei 5.465/68, que criou a reserva de vagas (50%) “para candidatos agricultores ou filhos destes, proprietários ou não de terras, que residam com suas famílias na zona rural e 30% para agricultores ou filhos destes, proprietários ou não de terras, que residam em cidades ou vilas que não possuam estabelecimentos de ensino médio, nos cursos de graduação de Agricultura e Veterinária”.

A norma foi revogada, em 1985, depois que o Judiciário impediu que muitos abastados, filhos de pais ricos, possuidores de propriedades nas vizinhanças das universidades, continuassem se servindo indevidamente dos benefícios específicos da lei.

No âmbito estadual, as Leis 3.524/2000 que fixava cotas nas escolas públicas; 3.708/2001, que destinava cotas de até 40% para as populações negras e pardas no preenchimento das vagas relativas aos cursos de graduação nas universidades do Rio de Janeiro e Lei 4.061/2003, que reservava vagas para deficientes. As três leis foram agregadas na Lei 4.151/2003 que está sendo contestada através da ADI 3.197-0; sabe-se que a Corte superior já apreciou ação sobre a matéria no campo trabalhista e definiu cota.

Tramitou no Congresso Nacional o Projeto de Lei 3.627/2004 que pretendia instituir reserva de 50% para os estudantes negros nas escolas públicas durante dez anos. Referida proposição terminou sendo arquivada no ano passado. Registre-se que o sistema de cotas na educação fere a autonomia das universidades, art. 207 da Constituição.

Política de ação afirmativa é tratada por muitas leis: CLT que prevê cota de dois terços para brasileiros como empregados de empresas individuais ou coletivas, artigo 354; mais adiante, artigo 373-A, que visa corrigir distorções responsáveis pela desigualdade de acesso da mulher no mercado de trabalho; Lei 8.666/93 que dispensa licitação para contratação de associações filantrópicas de pessoas portadoras de deficiência, inciso XX, artigo 24.

Na verdade, a solução não reside em cotas, mas em maiores investimentos na educação, fundamentalmente na rede pública, no ensino fundamental e médio, além de criação de mais vagas nas universidades, para possibilitar aos negros, aos afro-descendentes e aos indígenas igualdade de condições na competição para acesso às universidades; indispensável alternativas para a formação de jovens tornarem-se profissionais buscados pelo mercado, sem necessariamente passarem pelas faculdades tradicionais; necessário conhecimentos e não privilégios momentâneos que se esvairão à medida que se depara com dificuldades técnicas e de manutenção para a compra de livros e outras despesas que tal sistema não soluciona.

Afinal, os vestibulares para ingresso nas universidades prestam-se para aferir aptidão intelectual ou suficiente a classificação do candidato que pertence a esta ou àquela raça?

Erros semelhantes têm-se cometido em outras áreas: a reforma agrária nunca solucionou o problema dos “sem terra”, porque nunca seguida do oferecimento de estrutura para se trabalhar na terra; a bolsa família serve para remediar, mas não resolve a situação de quem é pobre.

O fenômeno ocorrido com as mulheres bem mostra a desnecessidade do benefício governamental; sem cotas, mas contando com a simples igualdade de condições com os homens conseguiram obter maioria em quase todos os cursos universitários, além da conquista gradual em todos os segmentos do trabalho.

A Constituição Cidadã, que em 2008 completa vinte anos, enumera dentre outros os objetivos fundamentais da República: construção de sociedade livre, justa e solidária, inc. I, artigo 3º; erradicação da pobreza e da marginalização, além da redução das desigualdades sociais e regionais, inciso III; promoção do bem de todos, “sem preconceitos de raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, inc. IV, artigo 3º.

O capítulo “Da Educação”, mais específico sobre a matéria, inciso I, artigo 206, assegura “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”; mais adiante, o inciso V, artigo 208, afirma que para efetivação do dever do Estado com a educação necessário “o acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um”.

O sistema de cotas suspende a aplicação do mérito do candidato, criando situação constrangedora e injusta pela dificuldade na classificação do indivíduo, sem, entretanto, conceituar exatamente quem é desta ou daquela raça. As desigualdades sociais serão afastadas na medida em que se cuidar da erradicação da pobreza, disseminada entre negros, brancos e índios.

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