Interceptação Telefônica

Humilde só é protegido quando arrombam porta da autoridade

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2 de março de 2008, 0h01

Anos atrás, quando pela primeira vez surgiu a notícia de anteprojeto de lei do qual resultou a vigente legislação asseguradora da possibilidade de interceptação eletrônica dos meios de comunicação em geral, fui o único — e posso assegurá-lo — a investir contra aquela pretensão abstrusa. Afirmei, adverti, insisti e argumentei agressivamente no sentido de não se poder deixar que aquilo se transformasse em imposição quanto à intervenção do Estado no espionamento da privacidade do cidadão. Não houve, a menos que me engane e muito, quem partisse para oposição aberta àquela iniciativa malsã.

As previsões do velho marujo, acostumado a encontrar no meio das águas as sombras de predadores sanguinolentos, foram justificadas. O veneno se potencializou nos doze anos passados. Vagarosamente, o Supremo Tribunal Federal — com muito vagar por certo, como costuma acontecer às atividades de repressão ao autoritarismo — começou a refrear as extravagâncias a que os inquisidores chegaram, reprimindo, inclusive, a irresponsabilidade de alguns magistrados.

Conhecem-se, realmente, acórdãos da Suprema Corte censurando interceptações genéricas feitas com extremo desassombro, algumas delas, diga-se de passagem, impulsionadas, dirigidas e mecanizadas sob os auspícios de setores do próprio Ministério Público. Meses atrás, em artigo posto a público, noticiei — e não era segredo — o grampeamento de telefone de um dos ministros do Supremo Tribunal Federal.

Repentinamente, a própria imprensa que se mantinha silente começa a comentar a assustadora interpenetração de investigações, particulares ou não, nas comunicações telefônicas de outros augustos magistrados da maior Corte jurisdicional do país. Fazem-no como se isso fosse novidade, tomando por base declarações prestadas por um executivo da empresa “OI”, voltada tal instituição, sabe-se bem, à exploração de setores ligados à telefonia móvel. Surge o escândalo, mas já houve piores.

Por exemplo: a interceptação ambiental de diálogos entre advogados e clientes presos, postos microfones nos parlatórios de presídios, é atividade muito mais infamante do que aquela levada a lume, hoje, pois o ministro da Suprema Corte pode defender-se, requisitando inquéritos policiais e processos criminais contra os espiões, verrumando-lhes os segredos mefíticos escondidos nas gavetas dos técnicos especialistas em grampeamentos diversos.

O preso não tem como reagir, não sabe como resistir e, se reage, tem sua voz perdida nas paredes do calabouço. Tocante aos advogados, muitos deles ilustres, submetidos à escuta a poder da determinação de juízes excrescentes da normalidade, o grito de revolta se perde também no vazio. É preciso, então, que o telefone do ministro Marco Aurélio, realmente aquele juiz a sacudir masculamente as ofensas aos direitos constitucionais do cidadão, seja verrumado pela espionagem acústica. Impactantemente surgem providências imediatas valendo dizer que o humilde só é protegido eficazmente quando é arrombada a porta da autoridade maior.

Concomitantemente, o Ministério da Justiça manda anteprojeto modificando a lei satânica em vigor. Aquele anteprojeto, de alguma forma, pretende cinturar os absurdos praticados não só por autoridades policiais, mas igualmente por magistrados não amadurecidos no trato das intimidades e da privacidade do cidadão.

Não é momento, aqui, de se examinar o anteprojeto que o ministro da Justiça remeteu, admita-se, ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Menos mal. Este escriba, com dose grande de reflexão, há de examinar os dispositivos do anteprojeto mencionado, contribuindo, voluntária e espontaneamente, para a obtenção de um dimensionamento que possa diluir o veneno já evidenciado nestes 12 anos de aplicação da lei de interceptações telefônicas.

Vale a pena referir, aqui, a título de beliscamento do mérito daquele organograma governamental, a permissão a que a gravação seja feita, inclusive pelo particular, sem o conhecimento do ou dos outros, desde que o próprio autor da mesma seja parte na conversa. Isso pode chegar, em certas circunstâncias, a verdadeiro estelionato intelectual, porque quando duas pessoas conversam, fazendo-o livremente, dizem-se comentários, bazófias, observações que se perderiam no vazio, podendo, entretanto, ser estimulados por quem, do outro lado, estimula ardilosamente o outro a se despir de censuras postas a viger se e quando conhecendo o fator consistente na gravação. Relembre-se que o Código de Processo Civil admite, hoje, que as partes gravem os debates e/ou audiências, mas os advogados não o fazem, embora podendo fazê-lo escondidos até, por respeito aos próprios juízes que intervêm no entreato.

Parte o Ministério da Justiça, nessa peculiaridade, do princípio que já foi objeto de disputas judiciais, admitindo a jurisprudência a prevalência de prova assim obtida. Entretanto, a gravação de conversa por um dos interlocutores, sem o conhecimento do outro, deve ser expurgada da admissibilidade, porque significa, sim, e muita vez, armadilha que não cheira bem, desmerecendo permissão ou admissibilidade em diploma legislativo.

Fica o resto para mais tarde. O cronista, eventualmente, aponta um dedo censório para o futuro, divisando o que vai acontecer. Desgraçadamente, acontece. Então, encoraja-se a comunidade, porque não há mais receio de ataques maiores advindos dos censores. Perde-se um decênio na defesa dos direitos constitucionais e se fere profundamente muita gente honesta que teve seu lar, seu segredo profissional e sua liberdade perdidos em função da atividade de espiões atrabiliários.

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