Defesa coletiva

Legitimidade da defensoria pública em ações consumeristas

Autor

  • Vitor Vilela Guglinski

    é advogado especialista em Direito do Consumidor professor de diversos cursos jurídicos e de pós-graduação membro da Comissão de Professores de Direito do Consumidor do Instituto Nacional de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon) e autor de obras jurídicas.

24 de maio de 2008, 0h01

A 2ª Câmara Especial Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul julgou recentemente Ação coletiva onde a Defensoria Pública do mesmo estado logrou êxito na pretensão da tutela coletiva dos consumidores, em relação ao direito dos poupadores do Banco Itaú a receberem os expurgos da caderneta de poupança existentes durante a incidência dos planos Bresser, Verão, Collor I e II (processo 70023232820).

Houve recursos do Ministério Público e do Banco Itaú, onde ambos, preliminarmente, alegaram a ilegitimidade ativa da Defensoria Pública para a propositura de ações coletivas, em razão de vedação constitucional, neste particular.

O artigo 5º, XXXII, da Constituição de 1988 estatuiu que cabe ao Estado promover, na forma da lei, a defesa do consumidor, razão pela qual o artigo 48 do ADCT determinou que o Congresso, dentro de 120 dias da promulgação da Constituição, elaborasse o Código de Defesa do Consumidor, evidenciando, assim, a vocação constitucional da legislação consumerista.

José Afonso da Silva consigna que: “a Constituição foi tímida no dispor sobre a proteção dos consumidores. Estabeleceu que o Estado proverá, na forma da lei, a defesa do consumidor (art. 5º, XXXII)”, realçando a importância de sua inserção dentre os direitos fundamentais, ou seja, conferindo àqueles a titularidade de tais direitos, bem como adverte-nos para a regra do artigo 170, V, da CF 88, que toma a defesa do consumidor como princípio da ordem econômica, o que, nos dizeres de Gomes Canotilho e Vital Moreira, vem a “legitimar todas as medidas de intervenção estatal necessárias a assegurar a proteção prevista” (In Curso de direito constitucional positivo, 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997, páginas. 254 e 255).

O Código de Proteção e Defesa do Consumidor dispôs no artigo 81 que “a defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercido individualmente, ou a título coletivo””. Posteriormente, no artigo 82, definiu os legitimados para a defesa coletiva, dentre os quais, a União, os estados, os municípios e o Distrito Federal.

Proposto um diálogo entre a Constituição de 1988 e o CDC, pode-se estabelecer uma congruência entre a disposição constitucional e o artigo 1º do diploma consumerista, que consigna, em seu preâmbulo, serem as normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social.

Assim, se por um lado a Constituição, bem como a legislação infraconstitucional deixou de conferir à Defensoria Pública expressa legitimação para a propositura de Ação Civil Pública, uma interpretação teleológica se faz necessária, a fim de garantir o devido processo legal como instrumento que vise efetivar o pleno acesso à Justiça, com a efetiva defesa do consumidor, dada a relevância social que lhe é intrínseca.

A Defensoria Pública, na condição de órgão instituído pelo Estado, encaixa-se perfeitamente como legitimada concorrente, consoante dicção do inciso II do artigo 82, do CDC, não havendo razão para que o Ministério Público pretenda sua exclusão do pólo ativo das lides coletivas relacionadas à defesa do consumidor. Ademais, especial atenção deve ser dispensada ao estatuído no artigo 5º, I, do CDC, in verbis:

Artigo 5º Para a execução da Política Nacional das Relações de Consumo, contará o poder público com os seguintes instrumentos, entre outros:

I – manutenção de assistência jurídica, integral e gratuita para o consumidor carente.

Nesse aspecto, a decisão proferida pelo TJRS sustentou:

“De fato, em leitura literal e apressada do texto constitucional, a ação proposta pela Defensoria Pública só aproveitaria aos consumidores que demonstrassem efetivamente sua condição de necessitados.

Ocorre, todavia, que, em se tratado de norma constitucional, a exegese do dispositivo há de ser sistemática e material, isto é, de molde a garantir sua plena eficácia, e portanto em atenção aos princípios que dão sustentação ética e concreta ao texto fundamental”.

Nada obstante, o STJ já havia decidido com base em fundamentos semelhantes, no julgamento do REsp. 555111 / RJ:

PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO NO JULGADO. INEXISTÊNCIA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DEFESA COLETIVA DOS CONSUMIDORES. CONTRATOS DE ARRENDAMENTO MERCANTIL ATRELADOS A MOEDA ESTRANGEIRA. MAXIDESVALORIZAÇÃO DO REAL FRENTE AO DÓLAR NORTE-AMERICANO. INTERESSES INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. LEGITIMIDADE ATIVA DO ÓRGÃO ESPECIALIZADO VINCULADO À DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO.

I – O Nudecon, órgão especializado, vinculado à Defensoria Pública do estado do Rio de Janeiro, tem legitimidade ativa para propor açãocivil pública objetivando a defesa dos interesses da coletividade de consumidores que assumiram contratos de arrendamento mercantil, para aquisição de veículos automotores, com cláusula de indexação monetária atrelada à variação cambial.

II – No que se refere à defesa dos interesses do consumidor por meio

de ações coletivas, a intenção do legislador pátrio foi ampliar o campo da legitimação ativa, conforme se depreende do artigo 82 e

incisos do CDC, bem assim do artigo 5º, inciso XXXII, da Constituição Federal, ao dispor, expressamente, que incumbe ao “Estado promover, na forma da lei, a defesa do consumidor”.

III – Reconhecida a relevância social, ainda que se trate de direitos essencialmente individuais, vislumbra-se o interesse da sociedade na solução coletiva do litígio, seja como forma de atender às políticas judiciárias no sentido de se propiciar a defesa plena do consumidor, com a conseqüente facilitação ao acesso à Justiça, seja para garantir a segurança jurídica em tema de extrema relevância, evitando-se a existência de decisões conflitantes.

Recurso especial provido.

Contudo, o acórdão, além de promover a exegese de dispositivos constitucionais e infraconstitucionais, destacou, ainda, que o art. 5°, inc. II, da Lei 7.347/85, foi alterado pela Lei 11.448/07, vindo a conferir legitimidade à Defensoria Pública para a propositura de Ação Civil Pública, fundamentando a decisão também em lei específica editada no Estado do Rio Grande do Sul (Lei nº. 11.795/02), cujo art. 3°, parágrafo único, VIII, diz:

“Artigo 3.° — Aos membros da Defensoria Pública do Estado incumbem a orientação jurídica e assistência judiciária, integral e gratuita, dos necessitados, assim considerados na forma da lei, incluindo a postulação e a defesa, em todos os graus e instâncias, dos direitos e interesses individuais e coletivos, além das atribuições contidas na Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública (Lei Complementar 82, de 12 de janeiro de 1994) e na Lei Complementar Estadual 9.230, de 07 de fevereiro de 1991, alterada pela Lei Complementar Estadual n.° 10.194, de 30 de maio de 1994.

“Parágrafo único – No exercício de suas atividades os membros da Defensoria Pública do Estado devem:

“…

“VIII – patrocinar defesa dos direitos dos consumidores que se sentirem lesados na aquisição de bens e serviços;

Sem embargos à tradicional caracterização do Poder Judiciário como ente competente para a composição de conflitos de interesse, devido ao atual contexto social instalado pela globalização, pensamos ser um dever da magistratura sub-rogar-se no desempenho de funções estranhas à de sua competência estrita, com o fim de realizar efetivamente a justiça social, de forma a atingir os fins traçados pelo Estado Democrático de Direito, em resposta ao individualismo que outrora dominava a sociedade. Mais do que nunca, a função do juiz, como “administrador” das tensões sociais, emerge de forma destacada, sendo imperioso registrar o disposto no artigo 5º da LICC, o qual determina que “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.

Em se tratando de defesa do consumidor, o dispositivo acima transcrito deve ser veementemente observado pelos magistrados, uma vez que o paradigma sócio-econômico reclama uma tutela enérgica por parte dos mesmos, e até mesmo em razão do Judiciário assoberbado hodiernamente. Por isso, conferir legitimidade ativa à Defensoria Pública para a propositura de ações coletivas é medida que também ajudará a “desafogar” os órgãos jurisdicionais, prestigiando-se, ainda, a economia e celeridade processuais.

Foge à sensatez dispensar tratamento individual a situações geradas por uma sociedade de consumo de massas. Da mesma forma, as questões levadas à apreciação do Judiciário devem receber tratamento massivo diante da permissão do ordenamento jurídico pátrio, em homenagem à dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, não havendo maior respeito à democracia do que tratar o mesmo fato de maneira uniforme.

Kazuo Watanabe, em seus comentários ao CDC, afirmou, de forma categórica, e com rara felicidade, ao discorrer acerca das principais medidas protetivas do consumidor nele previstas, que “de nada adiantará tudo isso sem que se forme nos operadores do direito uma nova mentalidade capaz de fazê-los compreender, aceitar e efetivamente pôr em prática os princípios estabelecidos no Código de Defesa do Consumidor”. Em outras palavras, tão importante quanto nosso avanço legal, é o correspondente avanço daqueles que têm o dever de garantir a eficácia da lei perante a realidade social a que ela se destina tutelar. Dessa forma, a lei se engrandece. Caso contrário tornar-se-á pequena e ineficaz.

Causa estranheza o fato de o Ministério Público tentar impedir a Defensoria Pública de figurar no pólo ativo de uma ação coletiva, como esta julgada pelo TJ-RS, uma vez que é sua função institucional zelar pelo efetivo respeito dos serviços de relevância pública, bem como dos direitos assegurados na Constituição Federal, consoante reza o respectivo artigo 129, I. Isto porque logrando êxito naquela actio, a Defensoria Pública certamente garantiu o cumprimento dos preceitos constitucionais atinentes à defesa do consumidor.

De seu turno, o impedimento pretendido pelo MP só traria prejuízos aos consumidores, atrasando a prestação jurisdicional, além de não cumprir com sua missão institucional, e tudo isso simplesmente para garantir o cumprimento de literal disposição da lei, esquecendo-se que o direito processual, no Estado Democrático de Direito, visa, precipuamente, a prestar de fato a jurisdição aos que dela necessitam, não mais sendo aceitável a discussão de pormenores processuais há muito considerados arcaicos pela moderna doutrina, portanto ineficazes e totalmente divorciados da realidade social.

Diante de tais considerações, o Ministério Público deve se orgulhar de poder contar com a Defensoria Pública como aliada na exigência do cumprimento dos preceitos constitucionais, especialmente aqueles ligados à dignidade humana, devendo, ainda, lembrar mais uma vez que, como defensor do povo, não deve ser escravo das instituições, na medida em que aquelas devem sim servir ao povo, sob pena de se preterir os legítimos fins do Estado.

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