Novo olhar

Caso da Raposa Serra do Sol fará STF renovar conceitos

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23 de maio de 2008, 19h00

Ao decidir sobre a legalidade da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, o Supremo Tribunal Federal também terá oportunidade de renovar a posição sobre outros conceitos como a dimensão institucional da posse indígena e a soberania do país no caso que envolve área de fronteira. Desta vez, com base na Constituição de 1988. Essa foi a convicção que o ministro Gilmar Mendes, presidente da Corte, trouxe da viagem que fez na quinta-feira (22/5) quando sobrevoou a área do conflito em Roraima acompanhado dos ministros Cármen Lúcia e Carlos Ayres Britto, relator das ações que questionam a demarcação da reserva.

“O Supremo tem sob sua apreciação um caso de escola. Ele vai poder realmente definir uma série de questões agora ventiladas e controvertidas. É uma boa oportunidade. Nesse sentido, acho importante que todos nós conheçamos essa realidade”, disse o presidente do Supremo em entrevista coletiva, nesta sexta-feira (23/5). Gilmar Mendes espera o julgamento para o final de junho ou, no máximo, no início de agosto.

A possibilidade de uma enxurrada de ações conseqüentes ao posicionamento do Supremo para questionar a criação de outras reservas não preocupa o presidente da Corte. Ele garantiu que o STF sabe lidar com efeitos de suas decisões. “O tribunal lida também, por ser uma corte suprema, com grandes responsabilidades e com a conseqüência dos seus julgados. Nós lidamos com isso com grande tranqüilidade. Sabemos modular e lidar com os efeitos políticos das nossas decisões”, disse Gilmar Mendes.

O presidente do Supremo ressaltou que o intuito da viagem não foi conversar com as partes envolvidas no conflito – índios e fazendeiros – e sim conhecer a realidade da área. “Queríamos confirmar alguns juízos que já estávamos a fazer”, afirmou ele.

Antes da homologação da reserva, em abril de 2005, fazendeiros já habitavam o local e não concordaram com a demarcação contínua da área.

No começo de abril, o STF determinou a suspensão de operação da Polícia Federal para retirar arrozeiros da área até um posicionamento final sobre a legitimidade do decreto presidencial que demarcou a região. Enquanto o julgamento no plenário do STF não acontece, o governo federal manterá os homens da Polícia Federal e da Força Nacional de Segurança na região. Também há orientações para desarmar as pessoas que estiverem no local.

Leia íntegra da coletiva de imprensa

Presidente, o senhor pode antecipar sua visão sobre o questionamento feito, em diversas ocasiões, sobre o formato da demarcação.

Gilmar Mendes — Quanto à primeira pergunta, creio que você já sabe a resposta: não posso emitir nenhuma opinião sobre as convicções que eventualmente tenha ganhado e que já eventualmente tivesse adquirido, mesmo antes da viagem a propósito desse tema. De qualquer sorte, estou convencido de que o Tribunal tem em mãos um caso peculiar, que vai propiciar a oportunidade de, talvez, pela primeira vez, já sob a Constituição Federal de 1988, se pronunciar — novamente agora, porque já tínhamos nos pronunciado antes — sobre o conceito de posse indígena, qual é sua dimensão institucional; a questão da soberania envolvida, porque nós temos toda essa discussão sobre presença ou não de forças militares.

É um caso peculiar, porque nós temos a faixa de fronteira e a demarcação em área de fronteira, e temos etnias que têm presença no Brasil — neste caso, na Venezuela ou na Guiana. Portanto, temos um caso extremamente singular. O Tribunal, na verdade, tem sob sua apreciação um caso de escola. Vai poder realmente definir uma série de questões agora ventiladas e controvertidas. E acredito, portanto, que é uma boa oportunidade. Nesse sentido, acho que é importante que todos nós conheçamos bem essa realidade.

Queria saber se o senhor entende que é possível propor a CPMF via lei complementar, se este dispositivo é comportado pela visão constitucional.

Gilmar Mendes — A questão da CPMF cabe ao Congresso, na verdade, buscar a forma de financiamento da seguridade. Não me cabe, aqui, emitir opinião sobre a via. É certo que qualquer via eleita será impugnada no STF. Parece algo bastante inequívoco, uma vez que, vocês sabem, a própria CPMF, no modelo de emenda constitucional, foi objeto de tanta polêmica, de tanta controvérsia, que as sucessivas prorrogações foram objeto de sucessivas impugnações, de sucessivas ADIs [Ações Diretas de Inconstitucionalidades] no Supremo Tribunal Federal. De modo que — e também não tem sido fácil a aprovação, mesmo por lei complementar — não têm sido isentas de impugnações as criações de novas contribuições, no contexto da Lei Complementar referida — o artigo 195, parágrafo 4º, da Constituição. De modo que, certamente, nós temos emoções pela frente em relação a essa matéria, também.


O senhor está dizendo, então, que é inconstitucional?

Gilmar Mendes — Não, não estou emitindo juízo sobre isso. Estou fazendo considerações isoladas. Só sei que cabe ao Congresso encontrar formas. Estou dizendo que é certo que vamos ter um “stress” do ponto de vista constitucional. Vamos ter alguma tensão dialética, vamos ter, certamente, alguma impugnação no Supremo Tribunal Federal, se chegar a tanto, se chegar a essa aprovação. Porque um modelo da CPMF, no sistema de emenda constitucional, prorrogável a cada cinco anos, como vinha sendo mantido, foi objeto de sucessivas ADIs, como os senhores podem verificar no protocolo do Supremo.

Sobre o incidente que ocorreu lá na Serra do Sol, em que um índio deu uma facada em um homem branco, um agricultor, me parece. Eu gostaria de saber, à luz da Constituição, que tipo de responsabilidade recai sobre este indígena?

Gilmar Mendes — Os tribunais têm tido várias provocações sobre a imputabilidade ou não de indígenas que se envolvem nestes fatos típicos. E as resposta têm sido, no mais das vezes, no sentido positivo, entendendo que — especialmente no caso de índios aculturados, capazes de entender a Língua Portuguesa, de discutir e de participar de debates. Eles são plenamente responsáveis, também do ponto de vista penal.

Como foi a visita, por onde passaram? Conversaram com alguma autoridade ou foram na área indígena, nas fazendas? E, outra coisa, já tem prazo ou data definida para o julgamento.

Gilmar Mendes — Na verdade, nós já tínhamos pensado nessa viagem há algum tempo, tanto é que os jornais noticiaram. Esse projeto é muito difícil. Manter um projeto dessa envergadura, com tantos partícipes em sigilo. Mas nós requisitamos o apoio da aeronáutica para que realizássemos essa viagem e fomos, então, de Brasília a Boa Vista e, lá, tomamos uma aeronave menor, em condições, portanto, de sobrevoar a área e, eventualmente, de pousar em pistas de terra.

Fomos acompanhados por um oficial da aeronáutica, o coronel Volkmer [José Hugo Volkmer], que foi comandante em Manaus, conhece bem a área, inclusive mantém relações bastante amistosas com os índios lá da região. Nós pudemos ver isso, o diálogo que ele manteve com o tuxaua Gelson, desta aldeia [Serra do Sol], que reclamava da ausência do poder público na região. Ele dizia: “Desde que o Volkmer saiu de Manaus, nós estamos em dificuldades, estamos de alguma forma sem apoio”.

Quanto ao projeto, quanto à necessidade de julgarmos ainda neste semestre, dependerá do ministro relator [Carlos Ayres Britto]. Aguardo ele nessa pauta, mas muito provavelmente nós votaremos ou iniciaremos, pelo menos, a decisão no processo no final de junho ou logo no início de agosto.

O senhor já está convencido se o governo fez bem em fazer a homologação da reserva Raposa Serra do Sol em área contínua?

Gilmar Mendes — Eu não posso emitir opinião neste momento sobre este modelo [de demarcação]. Acredito que esta questão nós vamos poder fixar neste caso, o modelo de demarcação contínua ou descontínua. Acredito que vai ser a oportunidade de, também, a partir do próprio texto constitucional, nós podermos extrair uma conclusão muito mais segura sobre esse tema. Mas, obviamente, eu não posso adiantar posição em relação a isso.

Sobre a situação da desembargadora Beatriz Figueiredo Franco, do estado de Goiás, que, conforme processo do MP, ela teria, numa gravação, pedido opinião ao ex-governador de Goiás, Marconi Perillo, sobre um processo que entraria em julgamento no dia seguinte, e o governador deu a opinião e, na mesma semana, ela passou a integrar o TRE de Goiás. Eu gostaria de saber se o CNJ vai abrir um processo para investigar a desembargadora.

Gilmar Mendes — O caso da desembargadora eu conheço tão-somente de leitura de jornal. Não sei se já chegou alguma representação ao CNJ. Vou verificar. E, certamente, se houver dados quanto a irregularidades, o Conselho vai proceder como tem procedido em todos os casos, poderá abrir processo administrativo cabível. Mas eu não tenho informações neste momento sobre o assunto.

Ainda sobre a visita que fizeram à reserva, pelo que eu entendi, vocês conversaram com a liderança indígena. Queria saber se conversaram com lideranças dos arrozeiros?

Gilmar Mendes — Não.

Pretendem conversar? Porque temos observado, nos últimos julgamentos de temas polêmicos, que o Supremo tem procurado ouvir sempre os lados envolvidos na questão, como no caso das células-tronco, que vai ser julgado semana que vem. E, nesse caso que é tão polêmico, vocês pretendem ouvir os dois lados?

Gilmar Mendes — Os dois lados já estão representados, já trouxeram memoriais. Não era essa a necessidade que nós tínhamos, mas de fato conhecer a área, o conflito. Conhecer essa realidade. Estamos diante de um modelo todo peculiar. Aqui nós temos uma tríplice fronteira. Comunidades indígenas que têm parentes em outros países. Presença bastante grande de Organizações não Governamentais de toda índole. Tudo isso está em discussão neste processo, o próprio modelo de autonomia da chamada área indígena. Não estávamos a buscar diálogo com as partes envolvidas. Claro que decidimos colocar os pés em terra firme, e foi nesta aldeia [Serra do Sol] que tivemos, então, o contato com este grupo. Mas eles não estão sequer preocupados com essa questão, de maneira direta pelo menos. Pois não são afetados, sua área está bem protegida e devidamente guarnecida. Afora outros aspectos, claro, porque é uma área de fronteira.


O senhor disse que vários ministros manifestaram interesse em conhecer esta região. Foram três. Quero saber se tem mais outra viagem desse tipo programada ou alguma outra iniciativa de conhecer melhor, “in loco”, essa região, antes de começar o processo de votação sobre esse assunto? O senhor falou que foram à vila Surumu, que é a área mais conflagrada. Pode detalhar o que vocês viram lá?

Gilmar Mendes — Fomos àquela ponte onde houve atentados. A cidade de Pacaraima está hoje em um ambiente de muita tensão, de uma situação de conflagração. Não há intenção de fazer nova visita. Evidente que havia dificuldade da agenda. O principal ator desse processo, claro, era o relator [Carlos Ayres Britto]. A ele cabe conduzir essas questões. As nossas agendas andam extremamente apertadas e, por isso, nós fizemos essa viagem com aqueles que dispunham de condição na data em que foi fixada, aproveitando o feriado. De modo que não há intenção de se fazer uma nova visita. Nós estamos recebendo informações de todos os interessados. O próprio ministro Britto recebeu subsídios da AGU e do governo de Roraima. E, por isso, entendeu que, talvez, já não tivesse condições de apresentar o relatório no final de maio. Por isso, estamos tendo um pequeno atraso que não afeta em nada a celeridade que nós estamos imprimindo ao caso.

Vocês desceram em Surumu? Só desceram na Serra do Sol?

Gilmar Mendes — Só na Serra do Sol.

Esse assunto desperta muito o interesse de algumas ONGs, algumas com ligação internacional. Elas têm se manifestado? Têm procurado o relator [Carlos Ayres Britto] ou o Supremo para manifestar o seu ponto de vista sobre a questão?

Gilmar Mendes — Eu tenho impressão que todos os interessados estão trazendo sua contribuição. Mas o que o Tribunal está procurando é um julgamento técnico. Desideologizar o debate. Tirar essa ideologia muito forte que está imantando toda essa questão. Aplicar o perfil fundamentalmente técnico ao tema.

Caso o STF venha a se posicionar contrário a homologação da forma que está, isso não pode abrir precedentes em outras reservas indígenas aqui no Brasil? Não existe essa preocupação dos ministros de que possa vir uma enxurrada de ações de partes interessadas na criação de outras reservas?

Gilmar Mendes — Primeiro, vamos fazer a análise sobre este caso. O Tribunal, certamente, está tendo a oportunidade de lidar com um caso de escola. Se nós fossemos selecionar um caso que reúne todos os problemas, talvez nós não conseguíssemos ter um caso de tantas peculiaridades. Por ser uma Corte Suprema com essa grande responsabilidade, o Tribunal lida também com as conseqüências de seus julgados. E, por isso, terá que, eventualmente, fazer alguma consideração sobre isso. Nós lidamos com isso com grande tranqüilidade, sabemos modular efeitos, sabemos lidar com os efeitos políticos das nossas decisões.

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