Acerto com a história

Vítima do nazismo pode processar a Alemanha no Brasil

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22 de maio de 2008, 13h35

Durante a ocupação da França pelas tropas nazistas, na Segunda Guerra Mundial, Salomon Simon Frydman sofreu todo tipo de perseguições e humilhações em Paris. Viu a família ser presa e a mãe morta pela Gestapo, a polícia política de Adolf Hitler. Passou fome, foi obrigado a viver escondido, privado de estudos e de oportunidades. Nesta semana, o judeu francês, naturalizado brasileiro, conseguiu o direito de processar a Alemanha na Justiça do Brasil pelos danos morais e materiais que sofreu durante aquele período.

O direito de processar a Alemanha foi reconhecido pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que acompanhou por unanimidade o voto da ministra Nancy Andrighi. Frydman recorreu ao STJ depois que a 3ª Vara Federal de Santo André (SP) extinguiu sua ação contra o governo da Alemanha sem análise de mérito. O argumento da primeira instância foi o de que a Justiça brasileira não tem competência para apreciar o tema. Com a decisão do STJ, a ação de indenização proposta por Frydman deve ter continuidade.

“A imunidade de jurisdição não representa uma regra que automaticamente deva ser aplicada aos processos judiciais movidos contra um Estado Estrangeiro. Trata-se de um direito que pode, ou não, ser exercido por esse Estado. Assim, não há motivos para que, de plano, seja extinta a presente ação”, disse a ministra Nancy Andrighi em seu voto.

Não é a primeira vez que o STJ admite ação de indenização por fato degradante praticado contra brasileiro, por Estado estrangeiro, fora do território nacional. No ano passado, o tribunal admitiu ação de indenização de um grupo de brasileiros contra Portugal, por terem sido extraditados daquele país. O grupo chegou a ser mantido em cárcere privado no aeroporto e foi extraditado sem qualquer direito a defesa.

Há interesse da jurisdição brasileira em atuar na repressão dos ilícitos descritos no caso de Frydman, segundo a relatora no STJ. Nancy Andrighi lembra que é princípio constitucional basilar do Brasil o respeito à dignidade da pessoa humana: “No plano internacional, especificamente, há expresso compromisso do país com a prevalência dos direitos humanos, a autodeterminação dos povos e o repúdio ao terrorismo e ao racismo. Disso decorre que a repressão de atos de racismo e de eugenia tão graves como os praticados pela Alemanha durante o regime nazista, nas hipóteses em que dirigidos contra brasileiros, mesmo naturalizados, interessam à República Federativa do Brasil e podem, portanto, ser aqui julgados”.

Leia a decisão

RECURSO ORDINÁRIO Nº 64 – SP (2008/0003366-4)

RELATORA: MINISTRA NANCY ANDRIGHI

RECORRENTE: SALOMON SIMON FRYDMAN

ADVOGADO: LUIZ EDUARDO DE CARVALHO E OUTRO(S)

RECORRIDO: REPÚBLICA FEDERAL DA ALEMANHA

EMENTA

DIREITO PROCESSUAL E DIREITO INTERNACIONAL. PROPOSITURA, POR FRANCÊS NATURALIZADO BRASILEIRO, DE AÇÃO EM FACE DA REPÚBLICA FEDERAL DA ALEMANHA VISANDO A RECEBER INDENIZAÇÃO PELOS DANOS SOFRIDOS POR ELE E POR SUA FAMÍLIA, DE ETNIA JUDAICA, DURANTE A OCUPAÇÃO DO TERRITÓRIO FRANCES NA A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL. SENTENÇA DO JUÍZO DE PRIMEIRO GRAU QUE EXTINGUIRA O PROCESSO POR SER, A AUTORIDADE JUDICIÁRIA BRASILEIRA, INTERNACIONALMENTE INCOMPETENTE PARA O JULGAMENTO DA CAUSA. REFORMA DA SENTENÇA RECORRIDA.

– A competência (jurisdição) internacional da autoridade brasileira não se esgota pela mera análise dos arts. 88 e 89 do CPC, cujo rol não é exaustivo. Assim, pode haver processos que não se encontram na relação contida nessas normas, e que, não obstante, são passíveis de julgamento no Brasil. Deve-se analisar a existência de interesse da autoridade judiciária brasileira no julgamento da causa, na possibilidade de execução da respectiva sentença (princípio da efetividade) e na concordância, em algumas hipóteses, pelas partes envolvidas, em submeter o litígio à jurisdição nacional (princípio da submissão).

– Há interesse da jurisdição brasileira em atuar na repressão dos ilícitos descritos na petição inicial. Em primeiro lugar, a existência de representações diplomáticas do Estado Estrangeiro no Brasil autoriza a aplicação, à hipótese, da regra do art. 88, I, do CPC. Em segundo lugar, é princípio constitucional basilar da República Federativa do Brasil o respeito à dignidade da pessoa humana. Esse princípio se espalha por todo o texto constitucional. No plano internacional, especificamente, há expresso compromisso do país com a prevalência dos direitos humanos, a autodeterminação dos povos e o repúdio ao terrorismo e ao racismo. Disso decorre que a repressão de atos de racismo e de eugenia tão graves como os praticados pela Alemanha durante o regime nazista, nas hipóteses em que dirigidos contra brasileiros, mesmo naturalizados, interessam à República Federativa do Brasil e podem, portanto, ser aqui julgados.

– A imunidade de jurisdição não representa uma regra que automaticamente deva ser aplicada aos processos judiciais movidos contra um Estado Estrangeiro. Trata-se de um direito que pode, ou não, ser exercido por esse Estado. Assim, não há motivos para que, de plano, seja extinta a presente ação. Justifica-se a citação do Estado Estrangeiro para que, querendo, alegue seu interesse de não se submeter à jurisdição brasileira, demonstrando se tratar, a hipótese, de pratica de atos de império que autorizariam a invocação desse princípio.


Recurso ordinário conhecido e provido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da TERCEIRA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, conhecer do recurso ordinário e dar-lhe provimento, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Massami Uyeda e Sidnei Beneti votaram com a Sra. Ministra Relatora. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Ari Pargendler.

Brasília (DF), 13 de maio de 2008.(data do julgamento).

MINISTRA NANCY ANDRIGHI

Relatora

RELATÓRIO

Trata-se de Recurso Ordinário interposto por SALOMON SIMON FRYDMAN visando a impugnar sentença proferida pelo D. Juízo da 3ª Vara Federal de Santo André, que extinguiu, sem apreciação do mérito, ação por ele proposta em face da República Federal da Alemanha.

Ação: de indenização. O ora recorrente, brasileiro naturalizado, nasceu na França em 12 de maio de 1931, pouco antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial. Em 1940, com a ocupação da França pelas tropas nazistas, o ora recorrente afirma que, por força de sua etnia judaica, sofreu todo tipo de perseguições e humilhações na cidade de Paris, onde habitava. Assim, com pouco mais de nove anos de idade viu seu pai ser humilhado, agredido e preso pela Gestapo; teve de deixar o apartamento onde habitava com sua família, sem que lhes fosse dado o direito sequer de recolher seus pertences pessoais; era forçado a utilizar, na lapela, a Estrela de Davi, para que fosse sempre identificado como judeu, sofrendo com isso inúmeras humilhações nas ruas de sua cidade; viu, com pouco mais de dez anos de idade, seu tio ser igualmente agredido e preso por membros da Gestapo; foi, ele mesmo, ainda criança, agredido e preso pela polícia alemã; teve sua mãe capturada e morta pelo regime nazista; foi privado de estudos e de oportunidades; passou fome, foi obrigado a viver escondido e teve, com isso, toda a sua vida comprometida. Pleiteia, portanto, da República Federal da Alemanha, indenização por dano material e a reparação do dano moral sofridos.

Sentença: julgou extinto o processo sem a apreciação do mérito. O fundamento foi o de que a composição da lide não seria da competência da autoridade judiciária brasileira, verbis:

“O que se constata da narrativa detalhada da inicial é que se pleiteia a indenização por danos materiais e morais que o autor, por causa de sua ascendência judia, alega ter sofrido, em território estrangeiro, em virtude da omissão estatal em seu dever de valorizar a vida humana da população civil, mesmo em estado de guerra declarada.

Desse modo, não resta tipificado qualquer dos elementos previstos no referido dispositivo legal para submissão do feito à jurisdição brasileira, visto que a ré não possui domicílio no território brasileiro (inciso I), não há, por ora, qualquer obrigação de fazer, nem subsunção do Estado Alemão, em relação ao autor pelos atos praticados durante a 2ª Guerra Mundial (inciso II), e todos os fatos e atos que ensejam a presente ação ocorreram em território estrangeiro (inciso III).

Ademais, não versa a demanda sobre imóvel situado no Brasil ou sobre inventário e partilha de bens aqui situados, como dispõe o artigo 89, do mesmo Diploma Processual Civil.”

Recurso ordinário: interposto com fundamento no art. 105, inc. II, “b”, da CF.

É o relatório.

VOTO

I – Equívoco na menção ao permissivo constitucional que dá base a este recurso

Em primeiro lugar, é importante observar que, apesar da menção feita pelo ora recorrente à alínea “b” do inc. II do art. 105 da CF, o presente recurso ordinário se enquadra, na verdade, na respectiva alínea “c”. O equívoco, porém, é irrelevante. Aplica-se, aqui, o princípio segundo o qual compete às partes expor as razões de fato, e ao juiz dizer o direito.

II – Prequestionamento e demais óbices ao conhecimento do recurso

O recurso sub judice deve ser conhecido à medida que é tempestivo e o autor se encontra dispensado de recolher o respectivo preparo, por lhe terem sido conferidos os benefícios da assistência judiciária gratuita.

III – A jurisdição brasileira para a presente ação

III.1) A sentença recorrida e a equivocada consideração da taxatividade do rol dos arts. 88 e 89 do CPC

A sentença recorrida estabelece, como único fundamento para a extinção, sem resolução de mérito, do processo sub judice, o fato de que a matéria ora discutida não se encontra entre as hipóteses contempladas pelos arts. 88 e 89 do CPC, o que determinaria a incompetência da autoridade judiciária brasileira para conhecer da questão. Ocorre que, consoante defende a doutrina que já se dedicou à análise do tema, o rol contido nos arts. 88 e 89 do CPC não é exaustivo (por todos: JOSÉ IGNÁCIO BOTELHO DE MESQUITA, “Da Competência Internacional e dos Princípios que a Informam”, in Revista de Processo nº 50, abril-junho de 1988, págs 51 e ss.). Assim, especialmente em hipóteses em que o juízo opte por extinguir o processo antes mesmo de determinar a citação do réu, é necessário que ele vá além e exponha os motivos que o levaram a atuar de tal maneira.


III.2) A verificação da existência de interesse no julgamento do processo sub judice pela autoridade judiciária brasileira

II.2a) Os princípios da efetividade e da submissão

Segundo a doutrina, dois princípios devem atuar na definição da jurisdição brasileira para conhecer de determinada causa. Além dos critérios dos arts. 88 e 89 do CPC, que, como já dito, não são exaustivos, deve-se ter atenção, sempre, para os princípios da efetividade e da submissão.

O princípio da efetividade, segundo BOTELHO DE MESQUITA (op. cit.), atua para definir as hipóteses em que, a despeito de estar, a causa, incluída no rol do art. 88 do CPC, a autoridade judiciária brasileira deverá se declarar internacionalmente incompetente para dela conhecer (pág. 60). Isso ocorre porquanto “à soberania nacional somente interessam: a) as causas cuja decisão demande a aplicação do Direito nacional, independentemente da nacionalidade do território onde se devam produzir os efeitos da sentença; b) as causas cujas sentenças devam produzir efeitos dentro do território do Estado, independentemente da nacionalidade do Direito aplicável na sua decisão; e c) os processos de execução de sentença ou títulos executivos extrajudiciais, que demandem a prática de atos executórios sobre pessoas ou bens que, por estarem no território nacional, se acham submetidos ao ordenamento jurídico nacional.” (pág. 59.)

Assim, como contrapartida, “o Estado não tem interesse jurídico, a saber: a) nas causas cuja decisão demande a aplicação de Direito nacional mas cuja sentença só possa ser utilmente executada no exterior, em território de Estado que, em geral ou no caso particular, não reconheça a eficácia à sentença estrangeira; b) as causas cuja decisão demande a aplicação de Direito estrangeiro e cuja sentença não tenha que produzir efeitos dentro do território nacional; e c) as execuções de sentença ou título executivo extrajudicial que devam versar sobre bens situados, ou pessoas domiciliadas fora do território nacional, bem como as execuções de título executivo extrajudicial que não indicar o Brasil como local de cumprimento da obrigação.”

Paralelamente ao referido princípio da efetividade, há o princípio da submissão. Tal princípio, deve-se considerar incluídas entre as hipóteses em que o Estado brasileiro tem jurisdição, as causas em que, não obstante ausentes do rol do art. 88 do CPC, as partes litigantes tenham aceitado se submeter à jurisdição brasileira.

II.2.b) Aplicação dos princípios à hipótese dos autos: o interesse da autoridade judiciária brasileira no julgamento do processo sub judice

Em primeiro lugar, deve-se analisar se haveria, em tese, algum elemento que justifique o interesse da autoridade judiciária brasileira em julgar, no Brasil, a causa ora discutida.

No processo sub judice, o autor, brasileiro naturalizado e residente no Brasil, busca indenização por danos moral e material decorrentes de diversas atrocidades de que foi vítima à época da ocupação da França pela Alemanha Nazista. Tais atos tiveram, como fundamento, meramente o fato de ser o autor judeu de nascença, e incluíam-se num projeto maior de eugenia, com o extermínio do povo judeu da Alemanha Nazista e dos países por ela ocupados.

À primeira vista, nenhum dos elementos referidos no art. 88 do CPC estão presentes no processo, como bem observado pelo Juízo a quo. Toda a controvérsia se desenvolveu no estrangeiro, e a lesão foi igualmente praticada por Estado estrangeiro.

No entanto, uma ação que veicule pedido de indenização por fato degradante praticado contra brasileiro, por Estado estrangeiro, fora do território nacional, já foi admitida por este E. Superior Tribunal de Justiça. Isso ocorreu por ocasião do julgamento de um processo no qual um grupo de brasileiros pleiteava, da República Portuguesa, indenização pela sua injusta extradição daquele país, que os impediu de ingressar na Europa não obstante eles tivessem hotéis reservados e passagem de retorno comprada. Os autores, naquele processo, foram submetidos a tratamento ultrajante, mantidos em cárcere privado no aeroporto e extraditados sem qualquer direito a defesa, sempre mediante tratamento indigno. Trata-se do RO nº 13/PE, relatado pelo i. Min. ALDIR PASSARINHO JÚNIOR (4ª Turma, STJ, DJ de 17/9/2007).

No corpo desse precedente, a competência da autoridade brasileira foi fixada com base no art. 88, I, do CPC, considerando-se, para fins de domicílio no país, por analogia, a existência de representação oficial da nação estrangeira, por seus consulados e por sua embaixada.

Não obstante, ainda assim é necessário, como já dito, definir se, pelo princípio da efetividade, o Estado brasileiro tem interesse no julgamento da causa.

Um dos princípios fundamentais em que se baseia a sociedade brasileira, conforme expressamente mencionado no art. 1º, inc. III, da Constituição Federal, é o princípio da dignidade da pessoa humana. Como seu natural corolário, encontram-se diversos outros, por todo o texto constitucional, como o engajamento com a construção de uma “sociedade livre, justa e solidária” (art. 3º, inc. I, da CF), com a erradicação “da pobreza e da marginalização”, com a”redução das desigualdades regionais e sociais” (art. 3º, inc. III), ou mesmo o estabelecimento dos princípios da igualdade, da legalidade, da reserva legal, da livre manifestação do pensamento e tantos outros.


Também como conseqüência dessa orientação, a CF prevê, em seu art. 4º, entre os princípios que regem a República Federativa do Brasil em suas relações internacionais, o da “prevalência dos direitos humanos”, da “autodeterminação dos povos” e do “repúdio ao terrorismo e ao racismo”, entre outros. Vale dizer: o Brasil se compromete, no plano internacional, a tomar todas as medidas possíveis de repúdio a atos como os que são discutidos no processo sub judice. Tanto que, no plano interno, prevê a punição de crimes de genocídio praticados internacionalmente, nas condições da Lei. De todo esse panorama decorre que não há razão para que, ao menos prima facie, se afirme o desinteresse da autoridade judiciária brasileira em semelhantes questões no plano cível. A repressão de atos de racismo e de eugenia tão graves como os praticados pela Alemanha durante o regime nazista, nas hipóteses em que praticados contra brasileiros, mesmo naturalizados, interessam à República Federativa do Brasil e podem, portanto, ser aqui julgados.

Disso decorre que a hipótese sub judice pode ser enquadrada no permissivo do art. 88, I, do CPC, de modo que a autoridade judiciária brasileira é internacionalmente competente para a causa e, outrossim, há interesse na atuação da jurisdição nacional.

III – A imunidade de jurisdição

Na hipótese dos autos, porém, há uma segunda peculiaridade. O processo sub judice foi proposto, não em face de um particular, mas de um Estado soberano. Assim, torna-se necessário também enfrentar, independentemente das questões acima aduzidas, a dúvida quanto à aplicabilidade do princípio da imunidade de jurisdição à espécie.

Há precedente, neste Tribunal, no sentido de não autorizar a citação de um Estado estrangeiro nas hipóteses em que a discussão versa sobre atos de império. A citação somente poderia ser ordenada caso a controvérsia versasse sobre atos de gestão. Trata-se do REsp nº 436.711/RS, relatado pelo i. Min. Humberto Gomes de Barros (DJ de 22/5/2006), assim ementado:

“RECURSO ESPECIAL. ESTADO ESTRANGEIRO. IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO. INDENIZAÇÃO. REGIME NAZISTA. ATO DE IMPÉRIO.

– Alimentos concedidos pela República Federativa da Alemanha, a título de indenização por danos causados pelo regime Nazista. Tal pensão resulta de ato de império.

– Ato de império de Estado Estrangeiro é imune à Justiça Brasileira.

– Recurso improvido.”

Nesse precedente, a República Alemã, não obstante citada por carta rogatória, não contestou um processo no qual se pleiteava a revisão de pensão paga em virtude dos danos causados pela guerra. O Superior Tribunal de Justiça afastou, nessa oportunidade, a revelia do Estado Estrangeiro argumentando que se trataria de ato de império.

Há, todavia, uma segunda posição neste Tribunal, no sentido de que a qualificação do ato somente deve ser feita após a manifestação do Estado estrangeiro. Recentemente a defendi perante esta Terceira Turma, por ocasião do julgamento do RO nº 57/RJ, no qual os descendentes do ex-presidente João Goulart pleiteavam indenização dos Estados Unidos da América pela influência que esse país teria desempenhado nos acontecimentos políticos de 1964. Naquela ocasião, teci as seguintes considerações:

“O presente recurso objetiva a impugnação de sentença que indeferiu a petição inicial e extinguiu o processo sem resolução de mérito, na forma do art. 267, IV e VI do CPC, uma vez que os atos supostamente praticados por agentes dos Estados Unidos da América caracterizar-se-iam em “atos de império”, alcançados, portanto, pela imunidade do Estado estrangeiro à jurisdição brasileira.

A imunidade de jurisdição, no entender de Octavio Bueno Magano, “consiste na isenção de certas entidades de, sem prévio consentimento, submeterem-se aos efeitos do referido poder. … .Baseia-se ela na idéia de que a independência e a igualdade dos Estados impede que qualquer deles se erija em juiz do outro, conceito que se expressa na parêmia “par in parem nom habet judicium”.” (Cfr. Imunidade de Jurisdição, in Trabalho & Doutrina: processo jurisprudência. São Paulo, n.º 8, março de 1996, p. 20). Dessa exposição introdutória, infere-se que o acatamento ao “princípio” da imunidade de jurisdição é condição indispensável à garantia de que os Estados soberanos, em suas relações internacionais, preservem o seu poder de auto-determinação e reajam a toda e qualquer interferência externa indesejada nos assuntos eminentemente domésticos.

Ocorre que com o avanço da ordem internacional, impulsionado por fatores econômico-comerciais que tornaram mais complexas e predatórias as relações firmadas entre “organismos internacionais”, o entendimento corrente de imunidade de jurisdição sofreu certa dose de abrandamento com o intuito de possibilitar a submissão de determinados atos praticados por Estado estrangeiro à jurisdição local. Nesse sentido, pondera Francisco Rezek:


“A idéia da imunidade absoluta do Estado estrangeiro à jurisdição local começou a desgastar-se, já pela segunda metade deste século, nos grandes centros internacionais de negócios, onde era natural que as autoridades reagissem à presença cada vez mais intensa de agentes de soberanias estrangeiras atuando não em funções diplomáticas ou consulares, mas no mercado, nos investimentos, não raro na especulação. Não havia por que estranhar que ingleses, suíços e norte-americanos, entre outros, hesitassem em reconhecer imunidade ao Estado estrangeiro envolvido, nos seus territórios, em atividades de todo estranhas à diplomacia estrita e ao serviço consular, e adotassem assim um entendimento restritivo do privilégio, à base da distinção entre atos estatais “ iure imperii” e “ iure gestionis”.” (Cfr. Imunidade de jurisdição – No entendimento atual da Justiça do Brasil, in Notícia do Direito Brasileiro. Brasília, set. 1996, p. 44.)

Independentemente do conhecimento das razões determinantes da relativização do conceito de imunidade de jurisdição, fato é que, em maio de 1989, o Supremo Tribunal Federal, em histórica decisão proferida por unanimidade na ApCiv 9.696-3-SP, de 31.5.1989, – na qual o relator, o i. Min. Sidney Sanches, adotou os fundamentos do voto do Min. Francisco Rezek -, firmou o entendimento que o Estado estrangeiro não tem imunidade em causa relativa a contrato de trabalho celebrado no Brasil, inclusive em ações indenizatórias resultantes da responsabilidade civil (Sobre a questão cfr. Ag. de Inst. n.º 36.493-2-DF e Apel. Cível n.º 14-2 – DF, Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, 2a. Turma, DJ 19.09.1994; RO n.º 33 – RJ, de minha relatoria, DJ 20.06.2005), fulminando a norma costumeira que dantes prescrevia a imunidade absoluta, nos seguintes termos:

“Textualmente, a Convenção Européia de 1972 diz que não opera a imunidade no caso de uma demanda trabalhista ajuizada por súdito local, ou pessoa residente no território local, contra representação diplomática estrangeira (artigo 5); assim como não opera a imunidade no caso de ação indenizatória resultante do descumprimento de contrato comum (artigo 4) (Cf. “International Legal Materials”, vol. XI, 1972, pp. 470-472).

Não bastasse a Convenção Européia, vem depois o legislador norte-americano e edita, em 21 de outubro de 1976, o “Foreign Sovereign Immunities Act”, lei minuciosa naquilo que dispõe, e que assume a mesma diretriz da convenção. Seu texto é também casuístico, e menciona expressamente, entre as causas não alcançadas pela imunidade, aquelas pertinentes à responsabilidade civil (§ 1605, 2 e 5) (Cf. “International Legal Materials”, vol. XV, 1976, pp. 1388-1389).

Em 1978, no Reino Unido, promulga-se o “State Immunity Act”. Esse texto, inspirado ao legislador britânico pela Convenção Européia e pela lei norte-americana, diz, naquilo que operacionalmente nos interessa, a mesma coisa: a imunidade não é mais absoluta. Não são alcançados pela imunidade os desdobramentos de toda espécie de interação contratual, de natureza trabalhista, entre a missão diplomática ou consular e pessoas recrutadas in loco, bem assim as ações indenizatórias resultantes da responsabilidade civil (arts. 4 e 5) (Cf. “International Legal Materials”, vol. XVII, 1978, pp. 1123-1125).

Em 1986, na Academia de Direito Internacional de Haia, o Professor Peter Troobof, de Nova York, dava um curso sobre esse exato tema: o aparecimento final de um consenso sobre os princípios relacionados com a imunidade do Estado. E deixava claro que o princípio da imunidade absoluta não mais prevalece (P.D. Troobof, “Foreign State Immunity: Emerging Consensus on Principles, Recueil des Cours”, vol. 200, 1986, pp. 235 e s.).

Independentemente da questão de saber se há hoje maioria numérica de países adotantes da regra da imunidade absoluta, ou daquela da imunidade limitada – que prevalece na Europa ocidental e que já tem fustigado, ali, algumas representações brasileiras -, uma coisa é certíssima: não podemos mais, neste Plenário, dizer que há uma sólida regra de direito internacional costumeiro, a partir do momento em que desertam dessa regra os Estados Unidos da América, a Grã-Bretanha e tantos outros países do hemisfério norte. Portanto, o único fundamento que tínhamos – já que as convenções de Viena não nos socorrem a tal propósito – para proclamar a imunidade do Estado estrangeiro em nossa tradicional jurisprudência, desapareceu: podia dar-se por raquítico ao final da década de setenta, e hoje não há mais como invocá-lo” (grifei).

Evitando-se uma repetição enfadonha e desnecessária, tem-se, por fim, a jurisprudência do STJ consolidando vigorosamente a superação do conceito de imunidade absoluta. In verbis:

“No caso ‘sub judice’ o agente diplomático agiu como órgão e representante do Estado Estrangeiro. A responsabilidade é do Estado e não do diplomata. A imunidade de jurisdição a ser examinada não é a diplomática e sim a do Estado Estrangeiro. Esta já foi absoluta, mas hoje é relativa.

A imunidade absoluta de jurisdição do Estado Estrangeiro só foi admitida até o século passado. Ela só ficaria bem mesmo para o feudalismo, para o tempo das Cruzadas, da Guerra dos Cem anos, quando o comércio era local e as sociedades eram isoladas, fechadas e praticamente não existia comércio exterior. Acontece que nos últimos cem anos o mundo sofreu transformações profundas. Mudaram-se os fatos, modificaram-se as idéias. A teoria Clássica da imunidade absoluta do Estado Estrangeiro foi ultrapassada pelo tempo e já não passa de peça de Museu” – RO n.º 6/RJ, Rel. Min. Garcia Vieira, DJ 10.05.1999).

Como anteriormente escandido, a idéia de imunidade absoluta do Estado estrangeiro à jurisdição local começou a desgastar-se a partir da adoção de um entendimento restritivo de privilégio, à base da distinção entre atos estatais iure imperii e iure gestionis “criada na Bélgica e Itália e logo adotada por outros países: atos de império, que gozariam de isenção do exame pelo judiciário de outros Estados e atos de gestão privada, suscetíveis da apreciação por tribunais estrangeiros” (Cfr. Guido Fernando Silva Soares. Das imunidades de jurisdição e de execução. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1984, p. 117)


Tem-se, portanto, o surgimento do moderno conceito de imunidade relativa ou estrita do Estado estrangeiro, segundo o qual, somente podem ser submetidas à jurisdição brasileira as demandas contra Estado estrangeiro cuja causa de pedir envolva apenas atos de gestão. Nessa linha de entendimento, qualquer discussão sobre eventual responsabilidade civil de Estado estrangeiro por ato ilícito deve passar, primeiro, pela análise da natureza do ato praticado por esse Estado, tendo em vista que se se tratar de atos de império, o Estado estrangeiro tem imunidade à jurisdição brasileira.

Sobre a diferenciação entre atos de império (“acta jure imperii”) e atos de gestão (“acta jure gestionis”), a doutrina classifica os primeiros como atos que envolvem “diretamente matéria de soberania” e os segundos, atos pelos quais “o Estado se conduz no uso das prerrogativas comuns às de todos os cidadãos.” (Cfr. Luís Roberto Barroso e Carmen Tiburcio. Imunidade de jurisdição: o Estado Federal e os Estados-membros. In Direito internacional contemporâneo: estudos em homenagem ao professor Jacob Dolinger / Carmen Tiburcio, Luís Roberto Barroso, organizadores; Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 152). São exemplos de atos de império: “a) atos legislativos; b) atos concernentes à atividade diplomática; c) os relativos às forças armadas; d) atos da administração interna dos Estados; e) empréstimos públicos contraídos no estrangeiro.” (Idem, ibidem). Já os atos de gestão podem ser caracterizados quando o Estado estrangeiro “procede, no campo de outro Estado, como titular de direito privado desse Estado” (Cfr. Pontes de Miranda, Comentários ao Código de Processo Civil, Tomo II, 3.ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 209).

Portanto, todo ato praticado em nome da soberania do Estado estrangeiro, na qualidade de agente diplomático em outro país, bem como aqueles decorrentes de contratos públicos firmados em outro Estado em nome do próprio Estado estrangeiro são atos de império desse. Por outro lado, os atos de gestão são aqueles nos quais o Estado estrangeiro age em outro Estado como particular em atividades tipicamente negociais, privadas, que não têm relação direta com a soberania do Estado estrangeiro, nem com as suas atividades estritamente diplomáticas ou consulares; ou seja, “quando um estado exerce atividade que, por natureza, se acha aberta a todos [os particulares do outro Estado]” (Cfr. Mello Bolson, A imunidade de Jurisdição do Estado, in Revista LTr, n.º 35, São Paulo: LTr, p. 600).

Na espécie, segundo os contornos delineados na petição de fls. 02/99, os atos praticados pelo Estado estrangeiro consistiram na participação de seus agentes diplomáticos, militares e do serviço de inteligência no movimento que resultou na implantação da ditadura militar em 1964, que depôs o ex-Presidente João Goulart. Contudo, não se pode sequer inferir dos autos, – pelo menos no estado em que se encontram -, se a prática (suposta) de tais atos foram aprovados ou não pelo senado norte-americano, já que atentavam contra a soberania do Estado brasileiro, ou se se tratavam de “ações extra-oficiais” determinadas e executadas pelo governo da época. Força é convir, ao ensejo, que essas e outras informações complementares não são despiciendas à formação de um juízo decisório, haja vista a celeuma em torno da classificação dos atos supostamente praticados pelos agentes estadunidenses no território nacional nessa ação supostamente subversiva. Ademais, “por mais destra que seja a distinção [entre atos de império e atos de gestão], ela esbarra com uma contradição lógica insuperável. Para qualificar os atos de um Estado estrangeiro, deve o juiz poder conhecer o litígio, sendo exatamente a possibilidade de tal conhecimento, a matéria questionada.(…)”. (Cfr. Guido Fernando Silva Soares. Op. Cit., p. 118) (grifei).

Portanto, diante da complexidade que o tema encerra, qualquer classificação que se pretenda realizar dos atos apontados na exordial, no estado em que o processo se encontra, sem que se oportunize a manifestação formal dos Estados Unidos da América do Norte a esse respeito, revela-se precipitada e perfunctória, em nada contribuindo ao desenvolvimento do conceito hodierno de imunidade relativa ou estrita de jurisdição. Nesse sentido, sustentando a indispensabilidade de citação de Estado estrangeiro para a definição dos contornos de uma controvérsia, tem-se o RO n.º 41 – RJ, Rel. Ministra Eliana Calmon, 2a. Turma, DJ 28.02.2005, assim redigido:

“A imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros comporta algumas exceções, havendo, outrossim, divergência jurisprudencial, nessa Corte, a respeito dos seus limites, conforme se observa das decisões havidas nos julgamentos proferidos nos Recursos Ordinários 6/RJ, 7/RJ, 35/RJ e 36/RJ. Portanto, denotou-se precipitado o indeferimento da inicial da presente execução fiscal sem que fosse citada a República Italiana, a fim de que ficassem delineados os contornos da lide.


Com essas considerações, dou parcial provimento ao recurso ordinário, para afastar o indeferimento da inicial, determinando a continuidade da execução, com a citação da executada.” (grifei).

Quanto, ainda, à imprescindibilidade de citação do Estado estrangeiro quando é demandado, considerando-se que “nenhum Estado soberano pode ser submetido, contra sua vontade, à condição de parte perante foro doméstico” (grifei) (Francisco Rezek, Direito Internacional Público, São Paulo: Ed. Saraiva, 1991, p. 175), não se pode deixar de ventilar a possibilidade, mesmo que remota, de os Estados Unidos da América renunciarem à (em tese) imunidade, consentindo no exercício da jurisdição local e, conseqüentemente, no prosseguimento da ação indenizatória, sem que se faça necessário qualificar os atos, supostamente, praticados pelos agentes da C.I.A. como atos de império ou atos de gestão.

(…)

Ademais, colocada a sentença proferida neste contexto, mesmo que se admita que os Estados Unidos da América do Norte são imunes à jurisdição brasileira, não decorre obrigatoriamente daí a conclusão de que o pleito indenizatório formulado pelos ora recorrentes seja juridicamente impossível. Sobre a questão, esclarece Antenor Pereira Madruga Filho que:

“(…). O fato de o réu ser imune à jurisdição não significa que o pedido é juridicamente impossível. Um pedido é juridicamente impossível, como explicam Cintra, Grinover e Dinamarco, “quando não tem a menor condição de ser apreciado pelo Poder Judiciário sem qualquer consideração das peculiaridades do caso concreto”. A impossibilidade jurídica do pedido não permite o prosseguimento da ação ainda que o réu consinta no exercício da jurisdição, pois a possibilidade de prestação jurisdicional estaria excluída pelo ordenamento jurídico. O exemplo clássico é a ação de divórcio nos países em que o casamento é indissolúvel. Situação completamente diferente é a ação contra Estado Estrangeiro que, mesmo nas situações em que a análise do caso concreto indique haver imunidade de jurisdição, a prestação jurisdicional será ainda possível se houver renúncia à prerrogativa.” (A Renúncia à Imunidade de Jurisdição pelo Estado Brasileiro e o novo Direito da Imunidade de Jurisdição, Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2003, p. 237/238).

Corroborando esse entendimento, José Ignácio Botelho de Mesquita pondera:

“Sob essa perspectiva, a existência da competência internacional constitui uma condição da ação. Que condição seria essa? Obviamente não se cuida de falta de interesse processual, nem de legitimação para a causa, nem de possibilidade jurídica. Aliás a exclusão da hipótese de se tratar de falta de possibilidade jurídica foi muito bem demonstrada pelo Prof. ANTENOR MADRUGA na sua tese de concurso. Suposto que, perante o órgão internacionalmente incompetente, seja proposta uma ação para condenação do devedor ao pagamento de quantia certa, fica perfeitamente claro que o defeito aí existente não é de impossibilidade jurídica do pedido, pois nada é mais comum do que uma ação como essa” (Questões procedimentais das ações contra Estados e organizações internacionais, in A imunidade de jurisdição e o Judiciário brasileiro/ coordenação por Antenor Pereira Madruga Filho e Márcio Garcia. Brasília: CEDI, 2002, p.216/217).”

É imperativo que se determine a citação, no processo sub judice, da República Federal da Alemanha para que, querendo, oponha resistência à sua submissão à autoridade judiciária brasileira. Tal medida não encontra óbice, nem nos comandos dos arts. 88 e 89 do CPC, que tratam, de maneira geral, da competência (jurisdição) internacional brasileira, nem no princípio da imunidade de jurisdição, que sempre poderá ser exercido, fundamentadamente, pelo Estado estrangeiro.

Forte em tais razões, dou provimento ao presente recurso ordinário, para afastar o indeferimento da inicial e a extinção do processo sem resolução do mérito, na forma do art. 267, IV e VI, determinando a continuidade da ação de conhecimento, com a citação da República Federal da Alemanha na pessoa de seu Chefe da Missão Diplomática no Brasil.

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