Proteção do Estado

Estado é condenado a indenizar família de juiz assassinado

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20 de maio de 2008, 19h04

O Estado tem de indenizar sempre que não protege seus agentes. Com esse fundamento, o juiz Valter Alexandre Mena, da 3ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo condenou o governo do estado a pagar 150 salários mínimos de indenização por danos morais para cada um dos dois filhos do juiz corregedor de presídios, Antônio José Machado Dias, assassinado em março de 2003 por membros da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC). A Procuradoria-Geral do Estado já recorreu da decisão.

À época do crime, ele era corregedor de presídios na região de Presidente Prudente (SP), onde estavam confinados presos ligados ao PCC. A morte foi planejada e executada por membros da facção descontentes com o rigor do juiz, segundo a investigação policial. Machado Dias foi morto quando saía do Fórum.

Alexandre Mena afirmou que o estado foi “inerte” e falhou no dever de proteger o juiz. “O sinistro decorreu de omissão estatal em proteger seus agentes, especialmente os que, por sua atividade peculiar, se encontrem sujeito a risco. Responsável o Estado pelo dano moral daí decorrente”, observou.

A Procuradoria-Geral do Estado chegou a afirmar que o juiz tinha à sua disposição um agente da Polícia Militar, mas no dia dos fatos dispensou o policial. “Ainda que fosse verdadeira a afirmação de que a segurança estava à disposição e teria sido dispensada, ainda assim era obrigação do Estado mantê-la, não em benefício pessoal do magistrado ameaçado, mas em benefício do próprio cargo estatal”, afirmou Mena. “O sinistro decorreu de omissão estatal em proteger seus agentes”, concluiu.

Na ação, os filhos do juiz assassinado não estipularam valores e deixaram essa avaliação a critério da Justiça. Mena considerou os 150 salários mínimos, da época dos fatos, condizentes com o padrão social dos filhos de Machado Dias. O advogado disse que vai recorrer por considerar a quantia irrisória.

Três acusados de matar o juiz já foram condenados pelo Tribunal do Júri. Reinaldo Teixeira dos Santos foi condenado, em novembro do ano passado, a 30 anos de reclusão, por homicídio duplamente qualificado – motivo torpe e meio que impossibilitou a defesa da vítima. Em fevereiro de 2007, a Justiça condenou João Carlos Rangel Luisi, o Jonny, por homicídio duplamente qualificado — motivo torpe e emboscada.

Em dezembro de 2006, foi a vez Ronaldo Dias, o Chocolate, receber o veredicto. A Justiça aplicou a pena de 16 anos e oito meses de reclusão. Falta ir a julgamento outras duas pessoas: Reinaldo, conhecido Funchal, e Adilson Daghia, o Ferrugem.

Leia a decisão

Processo nº 363/06 (053.06.106921-7)

Ação Ordinária

Autor: CAROLINA DE OLIVEIRA MACHADO DIAS e

RAPHAEL DE OLIVEIRA MACHADO DIAS.

Adv.: Rui Celso Reali Fragoso.

Réu: FAZENDA DO ESTADO DE SÃO PAULO.

Responsabilidade Civil do Estado. Indenização. Dano Moral. Morte de magistrado por detentos (autoria intelectual) e foragidos do sistema penitenciário. Vítima sob ameaça e sob custódia da polícia.

Vistos.

Trata-se de ação de reparação de danos morais ajuizada pelos filhos do então Juiz de Direito da Vara de Execuções Criminais da Comarca de Presidente Prudente, ANTONIO JOSÉ MACHADO DIAS, que em 14 de março de 2003 foi assassinado no trajeto entre o Fórum e sua residência. A investigação policial revelou que o homicídio foi idealizado, custeado e ordenado por integrantes do “Primeiro Comando da Capital”, que se encontravam encarcerados, e os executores eram foragidos do sistema penitenciário. O sinistro decorreu de omissão estatal em proteger seus agentes, especialmente os que, por sua atividade peculiar, se encontrem sujeito a risco. Responsável o Estado pelo dano moral daí decorrente. Querem indenização em valor a ser arbitrado. Pediram gratuidade, deram à causa o valor de R$ 20.000,00 e juntaram documentos.

A ré ofereceu contestação, sustentando que não é responsável pelo sinistro. Também suscitou preliminar de prescrição trienal, porque o evento é datado de 14/03/2003 e a demanda ajuizada em 16/03/2006, nos termos do artigo 206, § 3º, inciso V, do Código Civil, inaplicável o Decreto n° 20.910/32.

Veio réplica. O feito foi saneado, produziu-se prova oral e as partes se manifestaram em alegações finais.

É o relatório.

Decido.

Procede o pedido.

Responde o Estado pelos danos causados por seus agentes a terceiros (Constituição Federal, artigo 37, § 6º). O dano pode decorrer de ato comissivo, ou de ato omissivo.

“A omissão configura a culpa in omitendo e a culpa in vigilando. São casos de inércia, casos de não-atos. Se cruza os braços ou se não vigia, quando deveria agir, o agente público omite-se, empenhando a responsabilidade do Estado por inércia ou incúria do agente. Devendo agir, não agiu. Nem como o bonus pater familiae, nem como o bonus administrator. Foi negligente. Às vezes imprudente e até imperito. Negligente, se a solércia o dominou; imprudente, se confiou na sorte; imperito, se não previu as possibilidades da concretização do evento. Em todos os casos, culpa, ligada à idéia de inação, física ou mental” (José Cretella Júnior, Tratado de Direito Administrativo, Forense, Rio, 1ª ed., 1970, p. 210, nº 161, apud Rui Stoco, Responsabilidade Civil, RT, 3ª ed., 1997, p. 428, nº 14.01; Carlos Roberto Gonçalves, Responsabilidade Civil, Saraiva, 8ª ed.,2003, p. 178, nº 35.3).


É certo que não se pode responsabilizar o Estado, sempre e sempre, por atos criminosos de terceiros, tais algumas hipóteses de morte de detento por outro1, ou ilícitos praticados por fugitivo da cadeia, se o sinistro não decorre direta e imediatamente de atitude omissiva do agente público encarregado da custódia, vigilância e segurança do detento.

“Embora o Estado não seja responsável por atos criminosos de terceiros, na verdade, ele o é pelos atos omissivos de seus funcionários, seja qual for a sua investidura administrativa, quando no exercício de suas atribuições legais, pratiquem erros ou se omitam” (TJSP, 1ª C., Ap. 72.409-1, Rel. Álvaro Lazzarini, j. 7.5.86, apud Rui Stoco, ob.cit.).

“A administração pública responde civilmente pela inércia em atender a uma situação que exigia a sua presença para evitar a ocorrência danosa” (STF, 2ª T., RE, Rel. Temístocles Cavalcanti, j. 29.5.68, RDA 97/177, apud Rui Stoco, ob.cit., grifamos).

No caso dos autos, tem-se que a vítima foi assassinada no trajeto entre o Fórum e sua residência; o homicídio foi idealizado, custeado e ordenado por presidiários locais e executado por foragidos do sistema penitenciário. O sinistro decorreu, sustenta a inicial, de omissão estatal em proteger seus agentes, especialmente os que, por sua atividade peculiar, se encontrem sujeito a risco.

As perguntas cabíveis: poderia o Estado ter evitado o sinistro, fornecendo segurança ao magistrado sabidamente ameaçado? Teria a vítima renunciado à segurança? Poderia o Estado aceitar essa renúncia?

Vozes ilustres e famosas, mas desautorizadas pela ignorância, costumam criticar o que equivocadamente chamam de “privilégios” da magistratura, quando se referem à independência retratada nas “garantias” da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos (Constituição Federal, artigo 95) e ao princípio do “juiz natural” (CF, artigo 5º, XXXV, XXXVII e LIII). Ignoram que são princípios destinados à garantia do cidadão, tal seja, serem julgados por órgãos previamente constituídos e independentes, imunes a pressões políticas, administrativas e financeiras.

Criticam também o chamado “foro privilegiado”, na verdade, foro especial, de certas autoridades, confundindo privilégio com prerrogativa de função (v.g., Prefeitos, Juízes e Promotores são julgados pelo Tribunal de Justiça, CF, artigo 29, X e 96, III; Governadores e Desembargadores, pelo Superior Tribunal de Justiça, CF, artigo 105); o Presidente da República, Senadores e Deputados Federais, pelo Supremo Tribunal Federal (CF, artigo 102). Não se trata de um privilégio pessoal dos agentes políticos, mas de uma garantia para que possam exercer suas atribuições político-administrativas, que consistem em expressar a vontade soberana do Estado (Nelson Jobim, voto na Reclamação nº 2138).

Pois bem: o Presidente da República, os Governadores de Estado, o Presidente do Congresso Nacional e outras autoridades dispõem de “segurança pessoal”, da mesma forma que os Ministros dos Tribunais Superiores e os Presidentes dos Tribunais de Justiça. Ninguém questiona esse fato, nem é necessário justificá-lo, por ser auto-explicativo.

Repito, então: pode uma dessas autoridades dispensar ou renunciar à segurança pessoal?

Impossível dar a resposta a tal indagação, sem se que sê resposta a duas outras: pode qualquer autoridade renunciar aos “poderes” do cargo (aos “deveres”, nem pensar)? Pode o magistrado renunciar às garantias que traduzem sua independência?

A resposta a tais indagações somente pode ser negativa: as prerrogativas, os poderes (na verdade, poder-dever), os atributos, as garantias são do cargo, não da pessoa, e a pessoa que exerce o cargo não pode se despir nem dos bônus, nem dos ônus desse cargo (“noblesse oblige”).

Não há necessidade de recorrer a lições de filósofos, juristas, sociólogos ou a antropólogos para justificar tal posição; basta reproduzir o que disse o escritor Paulo Coelho na Folha de São Paulo de 02/05/2007, ao criticar o cantor Roberto Carlos pela atitude de proibir a circulação de sua biografia não-autorizada: “minha vida privada já não mais me pertence”.2

Ora, da mesma forma que ninguém há de admitir possa o juiz renunciar à sua independência (que constitui a garantia do cidadão), também não admitirá possa renunciar à proteção do cargo que ocupa.

Em conclusão: ainda que fosse verdadeira a afirmação de que a segurança estava à disposição e teria sido dispensada, ainda assim era obrigação do Estado mantê-la, não em benefício pessoal do magistrado ameaçado, mas em benefício do próprio cargo estatal.

Deixando de fazê-lo, mantendo-se inerte “em atender a uma situação que exigia a sua presença para evitar a ocorrência danosa”, a Administração pública responde civilmente pelo dano.


II. O dano moral é induvidoso: os autores foram privados, violentamente, da companhia do pai.

Os autores não quantificaram a pretensão indenizatória, deixando o arbitramento para o Juízo. Para tanto, deve ser levada em conta a seguinte lição:

Indenização – Dano moral – Arbitramento – Critério – Juízo prudencial. A indenização por dano moral é arbitrável, mediante estimativa prudencial que leve em conta a necessidade de, com a quantia, satisfazer a dor da vítima e dissuadir, de igual e novo atentado, o autor da ofensa (TJSP – 2ª Câm. Civil – Ap. Cível nº 198.945-1-SP; Rel. Des. Cezar Peluso; j. 21.12.1993; v.u.) (JTJ 156/94; RT 706/94; v. também AASP 2044).

Respeitada a dor íntima sofrida, e que somente a própria vítima pode avaliar, a indenização impõe-se moderada, consentânea com a condição econômica do ofendido. Nesse sentido, parece razoável fixar a indenização por dano exclusivamente moral em 150 (cento e cinqüenta) salários mínimos para cada um dos autores.

Isto posto, julgo PROCEDENTE o pedido, para condenar a ré a pagar a cada um dos autores a indenização equivalente a cento e cinqüenta (150) salários mínimos, pelo unitário vigente na época do pagamento, acrescida de juros moratórios de 12% ao ano, a contar da citação, além de eventuais custas processuais e honorários advocatícios de 10% (dez por cento) do valor da condenação.

Subam os autos, oportunamente, ao E. Tribunal de Justiça, Seção de Direito Público, para reexame.

P.R.I.

São Paulo, 19 de fevereiro de 2008.

VALTER ALEXANDRE MENA

JUIZ DE DIREITO

Nota de rodapé:

1. Por sentença de 09/11/2004, julgamos procedente ação indenizatória de dano moral proposta pela mãe de detento assassinado por outro, pela consideração de que “induvidosa a responsabilidade do Estado por ato omissivo de seus agentes, ao não garantir a incolumidade física dos detentos sob sua custódia. Por pior que fosse a vítima encarcerada, a condenação estatal não foi à pena de morte, mas à de prisão. A violência nos presídios é perfeitamente previsível e a existência de diversos estiletes na posse da vítima e do agressor bem demonstram que a administração penitenciária não cumpriu corretamente seu dever de impedi-las” (processo nº 1.561/2003). No mesmo sentido, sentença de 22/08/2005 no processo nº 1.620/04 e sentença de 10/04/2007 no processo nº 897/2006. Em sentido diverso, julgamos improcedente ação indenizatória pela morte de detento em tentativa de fuga (06/10/2005, processo nº 581/04).

2. Não era assim que pensava um ex-Presidente da República: no esplendor de sua juventude, pensava e agia como se fosse um cidadão “comum”, sem a responsabilidade do cargo, e se punha a praticar arriscadas “estripulias”, como pilotar avião de caça, jet-sky, luta-livre etc. Em 1990, recebendo um General do Exercito que foi se despedir deste magistrado para assumir cargo em Brasília, solicitei-lhe que fizesse chegar ao então Presidente a recomendação de que deveria abster-se desses prazeres pessoais, porque, não sendo “proprietário” do cargo, não lhe era dado dispor de sua própria incolumidade física e eventual sinistro seria danoso ao País. Se a recomendação chegou, não sei, mas deu no que deu.

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