Mundo sem fronteiras

Falta ao Brasil cultura de aplicar tratados internacionais

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18 de maio de 2008, 0h00

O Brasil tem de criar a cultura de aplicação dos tratados internacionais para não perder o bonde da história. Com a crescente movimentação de pessoas e informações entre países, Judiciário, Ministério Público e Polícia precisam cada vez mais da cooperação internacional para combater a criminalidade. E o país tem de estar atento a isso. O alerta é do ministro Gilson Dipp, do Superior Tribunal de Justiça e coordenador-geral do Conselho da Justiça Federal.

“A globalização facilita tanto o comércio legal como ilegal”, diz. No entanto, para o ministro, falta ao país a correta aplicação dos acordos entre países. “Há falta de conhecimento. Muitos não sabem que depois da Emenda 45 os tratados têm força de lei ordinária”, afirma Dipp.

O ministro ressaltou, em entrevista ao Consultor Jurídico, que agora os tratados internacionais sobre direitos humanos ratificados pelo Brasil têm força de emenda constitucional. “Uma Justiça que não tenha a compreensão dos problemas internacionais não está afinada com o seu tempo e estará decidindo com padrões totalmente defasados”, adverte o ministro.

Pelo princípio da especialidade, o ministro afirma que o juiz deve aplicar o tratado quando houver dúvida sobre a lei nacional e a norma internacional ratificada pelo Brasil. “Muitas vezes por sua formação, os juízes costumam trabalhar apenas em cima dos códigos.” Segundo o ministro, a Justiça pode se transformar em ponte ou barreira para a cooperação internacional. “Há casos em que a cooperação internacional é prejudicada por causa de um arraigado conceito de ordem pública, bons costumes e soberania internacional do século passado”, afirma.

Meio do caminho

Dipp tem divulgado em palestras sua preocupação. Em fevereiro, no Fórum Global contra o Tráfico de Pessoas da ONU, em Viena, o ministro fez palestra sobre o assunto. Mais de 1.600 pessoas assistiram ao painel. “Vou continuar a difundir a importância da cooperação internacional na obtenção de provas para subsidiar processos civis e criminais”, explica.

Na oportunidade, ele avaliou que o Brasil não está tão atrasado, mas também não chegou ao estágio em que se encontram os países da União Européia no que diz respeito à cooperação. “Estamos à frente de boa parte dos países do mundo. Ficou muito claro para mim, porém, que a participação do Judiciário é essencial, que nenhum avanço na cooperação vai ser efetivado sem a presença do juiz”, argumenta Dipp.

Uma das possibilidades para melhorar a situação seria a edição da lei brasileira de cooperação internacional. O governo chegou a elaborar uma minuta — que contou com a participação de juízes —, mas o assunto caiu no esquecimento. Em breve, ele pode ser apresentado no Senado.

O ministro vê outros progressos no caso brasileiro. “O futuro de grandes processos criminais está na cooperação”, acredita. De uns anos para cá, o Ministério da Justiça começou a convidar juízes e membros do MP para participar das negociações sobre tratados internacionais. Isso facilita a aplicação dessas normas pelos juízes. Outro importante passo, na sua visão, foi a criação do Departamento de Cooperação Internacional do MJ.

Carta rogatória

Dipp avalia que uma das medidas mais essenciais foi a transferência para o STJ da competência para julgar cartas rogatórias. Outra competência atribuída ao tribunal pela Emenda 45 foi a homologação de sentenças estrangeiras. A medida gerou benefícios principalmente no Direito de Família, nos processos envolvendo a guarda de filhos. O STJ já recebeu 3,5 mil cartas rogatórias e mais de 3 mil pedidos de homologação de sentença estrangeira.

Também há, na opinião de Dipp, uma melhor situação com as varas especializadas em lavagem de dinheiro, que vêm utilizando muito bem a cooperação internacional. “A tendência é de que os avanços venham de baixo para cima, da primeira instância para os tribunais”, diz o ministro. Nos tribunais superiores, afirma Dipp, os juízes têm mais dificuldades para inovar por causa da jurisprudência.

A falta de conhecimento sobre como funciona a cooperação pode prejudicar as investigações, alerta Dipp. Um caso famoso é do deputado Paulo Maluf (PP-SP). O Ministério Público requisitou documentos para a Justiça da Suíça sobre contas que o deputado mantinha no exterior. No entanto, eles perderam a validade de prova jurídica quando os suíços descobriram que os documentos foram usados para enquadrar Maluf em evasão de divisas. Na Suíça, isso não é crime, e sim infração administrativa. “Esses erros decorrem da falta de cultura jurídica”, afirma o ministro. O episódio criou uma crise institucional na cooperação entre os dois países.

Há ainda outro caso que envolveu os dois países. A Suíça estava investigando um caso de tráfico de mulheres brasileiras. A autoridade do país europeu, por uma carta rogatória, encaminhou às autoridades brasileiras pedido para investigar operações feitas pelos suspeitos e, se fosse o caso, determinar o bloqueio das contas dessas pessoas. Mas eles foram negados pela Justiça brasileira. “Sob a alegação de que informações sigilosas e bloqueio de bens não podem ter efeitos executórios”, observa Gilson Dipp.

Um instrumento importante para a cooperação, segundo o ministro, é o Protocolo de São Luis, que entrou em vigor em 1999. Com ele, nos países do Mercosul, os juízes das cidades de fronteiras podem fazer pedidos de maneira informal para os vizinhos dos outros países. “Só por atravessar a rua, era preciso enviar uma carta rogatória para Brasília, que ia para Montevidéu e só depois chegava à cidade. Muitas vezes os juízes são amigos”, explica.

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