O ensino jurídico

Estudar Direito é conhecer e compreender a sociedade

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17 de maio de 2008, 0h00

Acredito, desde os tempos do Pátio dos Leões[1], que o centro de gravidade do desenvolvimento jurídico não está propriamente na legislação, na ciência do direito ou na jurisprudência, mas na sociedade mesma. Há na sociedade — entre a ação humana e as estruturas sociais — uma tensão contínua, pois na primeira a diversidade se contrapõe a unidade da segunda.

Sendo as estruturas e instituições artefatos humanos[2] caberia ao Direito harmonizar a tensão entre ação humana e estruturas sociais, assim como compatibilizar diversidade e unidade. Tanto isso é verdade que podemos afirmar que as estruturas e instituições transformam-se continuamente. Mas em tempos de grandes tensões isso não é fácil.

As transformações ocorrem ou através de rupturas institucionais ou pelas reformas. Não acredito que sejamos apenas o que representamos na estrutura econômica, que as estruturas sociais são limitadores da ação humana ou que simplesmente as estruturas se reproduzem. Acredito que há um importante espaço de atuação para o Direito e para os estudantes de Direito.

Tanto é verdadeira essa afirmação que há fatos a exemplificá-la: a ação humana pode transformar as estruturas quando não reconhece a legitimidade das próprias estruturas de poder.

A sociedade é um conjunto de relações sociais ou de ações sociais e o exercício da nossa condição de cidadãos ocorre através do diálogo, trata-se do exercício comunicativo da liberdade.

E em decorrência disso acredito que durante o processo de preparação do aspirante aos nossos círculos é necessário trazer à tona a consciência critica do cidadão, porque um profissional do Direito é um intelectual com a incumbência primeira e fundamental de atuar na sociedade, para ao conhecê-la, levar a ela o inconformismo da necessária mudança. [3]

Para professores conservadores as normas do direito positivo — mesmo admitindo a existência de fontes secundárias — têm alcance de dogmas indiscutíveis dos quais não podemos fugir[4] — mas a verdade não é essa. Acreditar nisso é crer numa grande ficção, o que querem esses juristas é que a dogmática jurídica seja realidade, e eles usam a lógica formal e o raciocínio dedutivo para nos convencer disso.

Mas estudar Direito não é apenas estudar a legislação e a jurisprudência, estudar Direito é conhecer e compreender a sociedade, suas estruturas, instituições e ações criativas e criadoras, os conflitos, suas causas e efeitos. Estamos às voltas com um ensino jurídico que, em muitas instituições, sofre as limitações do conservadorismo e da irracionalidade reducionista, passional e tradicionalista, além da servidão às necessidades do mercado. Estudar Direito é mais, muito mais, que isso.

Bem, em primeiro lugar gostaria de partir da seguinte premissa: há uma implicação [5] entre Direito e Justiça e isso, creio, vem sendo esquecido. Segundo Hume [6] a utilidade define-se como a aptidão ou tendência natural para servir a um fim, desde que este seja visto como bom. Assim, a justiça, entendida como respeito pelo direito de propriedade, deveria todo o seu mérito à utilidade pública, pois conduzira ao bem-estar da sociedade e, em sendo assim, ela (a Justiça) não tira qualquer necessidade lógica interna e seria desnecessária se a bondade do homem fosse suficientemente grande para fazer com que todos se sentissem bem, sem necessidade de conflitos.

Segundo Hume, dois fatores condicionam a Justiça: um externo, constituído pela distinção da propriedade, e outro interno, o apreço pelo bem público e, estando presentes essas condições a justiça surgiria. Ele se refere à Justiça institucionalizada e não à meramente convencional (esta ultima relacionada à tradição); e a forma de institucionalização da Justiça é o Direito. Ou seja, havendo escassez de recursos e limitação da generosidade humana a Justiça, na forma institucionalizada, é necessária.

Existindo, pois, essa clara implicação entre Justiça e Direito é a partir daí que devemos estudar Direito. Sabemos, até intuitivamente, que a Justiça é uma espécie de igualdade e como nada é igual a si mesmo, mas o é em relação a um outro, temos de concluir que aquele que sabe o que é uma igualdade sabe o que é uma regra, saberá reconhecer nela seu núcleo de justiça.


Podemos considerar Igualdade e Justiça como termos que se explicam mutuamente, pois em sentido formal Justiça é agir igualmente diante de situações iguais. E para saber identificar a igualdade nos fatos seriam necessárias regras. Em sua “Uma Teoria da Justiça” John Rawls procura expor e justificar regras ou medidas necessárias à distribuição de bens coletivos.

Estudar Direito é antes de tudo conhecer o potencial transformador e desenvolvimentista da sociedade, das ações sociais, através da qual se busca igualdade e bem-estar social; estudar Direito é conhecer o processo de formalização da igualdade através do Direito.

Por isso não nos basta na Metrocamp[7], como aos mestres amestrados e seus alunos aluídos, exaltar a tradição da ciência dogmática do Direito, nosso desejo é conviver com estudantes autênticos, advogados progressistas, juízes de toga democrática e professores de têmpera critica e inconformista.

Ao estudar Direito não importa ser neutro ou engajado, o que importa é o engajamento que decorra da nossa convicção, da nossa consciência cidadã e defendê-lo, sem frouxidão, nem sectarismo ou alienação[8], ao contrário, estudar Direito é trilhar o caminho do que alguns chamam de desencantamento ou racionalização e que prefiro chamar de desalienação. O processo de desalienação conduz o estudante de Direito do campo da irracionalidade onde a passionalidade, a tradição e a rotinização imperam para o campo da racionalidade onde outras categorias são valorizadas, onde o direito positivo, o processo constitutivo das regras, a democracia e a ética, por exemplo, ao lado dos conceitos de interesse social e interesse público estão presentes.

No mundo moderno há a possibilidade e a necessidade de uma dimensão questionadora, esse é o espírito do estudante de Direito. Talvez o mesmo espírito dos heróis românticos[9] deva ser despertado nos estudantes de Direito de todas as idades, pois se antigamente a legitimidade das estruturas e instituições estava ligada à sua imutabilidade, à continuidade, à ordem, no mundo chamado moderno o Homem tomou consciência da tensão existente entre as ações humanas e as estruturas e tem consciência que essas tensões são normais, mas que racionalmente ele é capaz de resolver as tensões e através dos mecanismos igualmente racionais aperfeiçoar as estruturas. É possível afirmar que o Homem moderno é um herói romântico, subversivo e questionador.

O papel do estudante de Direito é conhecer os conflitos e os espaços estruturais existentes ou de necessária construção para solução e superação dos conflitos.

Em sendo assim, se esse é o papel dos estudantes de Direito é também o dos professores, não é possível estudar Direito sem confrontá-lo com a política, pois devemos entender que são verso e reverso da mesma medalha. Afinal há o campo das normas constitucionais, há o chamado “jogo político” (que se desenvolve no congresso através da produção de leis complementares e leis ordinárias) e há, por fim, as normas de Direito Administrativo e as políticas públicas, estas resultado do “jogo político”.

Até os anos 80 a lógica do sistema recomendava que as normas constitucionais, de natureza política, fossem praticamente imunes ao “jogo político” e ao “resultado do jogo político”.

Mas com o aumento da tensão entre a ação humana e as estruturas, em razão daquilo que se convencionou chamar de globalização[10], o “jogo político” passou a não dar conta de harmonizar as tensões, talvez em razão da sua complexidade e diversidade de causas. E com o aumento da tensão, especialmente na última década e meia, além de nos preocuparmos com a relação do Direito com a política temos de preparar nossos estudantes para tornarem-se atentos observadores também da relação entre Direito e Economia.

Estados nacionais como o Brasil teceram ao longo de sua história uma importante rede de direitos sociais, dos quais nos orgulhamos e aprendemos a defender, contudo a tensão global — observável na competição acirrada entre companhias transnacionais[11] e seus interesses privados — rebatizou os direitos sociais de “custo”.


Esses “custos”, na lógica global — reproduzida irrefletidamente em alguns meios de comunicação e até em algumas universidades — teriam um efeito negativo nos preços dos produtos e os tornariam não competitivos.

Vivemos, portanto, um momento histórico de tensão entre a ação humana e as estruturas, na medida em que os direitos sociais e os direitos adquiridos seriam “inadequados” ao desenvolvimento válido do sistema capitalista no Brasil. Na prática podemos dizer que a globalização [12] está colapsando as estruturas jurídicas no Brasil desde as normas constitucionais. Nesses tempos o estudante de Direito deve ter em mente que é preciso conhecer também História e Economia, além de Direito e política, para redimensionar o seu trabalho e manter possível a discussão e as preocupações com a inclusão social, a solidariedade e a justiça distributiva.

Daí a necessidade de não perdermos de vista que o Direito e a Justiça são faces da mesma moeda, razão pela qual não se pode substituir a formação dos profissionais baseada em valores morais e éticos por uma formação economicista e acrítica, que enfatiza competição externa, produtividade elevada. Daí a necessidade de construirmos um curso com diálogo interdisciplinar e próximo da realidade.


[1]O Pátio dos Leões é espaço no prédio central da PUC Campinas, descoberto e fechado por muros, ao qual se tem acesso através de portões e é “guardado” por dois imponentes leões de pedra; nesse local nos anos de 1982 a 1986 vivemos e convivemos a faculdade de Direito e, especialmente o movimento estudantil. No Pátio dos Leões conheci meus grandes amigos e os mais respeitáveis adversários; no Pátio dos Leões conheci a paixão e compreendi que somos capazes de transformar a realidade através da ação Política.

[2] Segundo a teoria social de Roberto Mangabeira Unger devemos entender a “sociedade como artefato”. Ele ensina que a “sociedade é feita e imaginada, que ela é um artefato humano e não a expressão de uma ordem natural fundamental”. A “sociedade como artefato” no mínimo implica a não sujeição da história humana à providência divina.

[3] Raymundo Faoro, O que é Direito, segundo Roberto Lyra Filho, in Direito & Avesso, Brasília, Edições Nair Ltda, 1982, n.2, p. 35

[4] RECASENS SICHES, Luiz (1959) – Tratado General de Filosofia del Derecho, México, Porrua.

[5] Categoria da Lógica Jurídica; pode ser extensiva, intensiva e recíproca; trata da questão do antecedente e do conseqüente.

[6] “David Hume foi um filósofo empirista quanto ao problema da origem do conhecimento, cético em relação à metafísica e utilitária altruísta em assuntos morais e políticos. Concebeu a filosofia como ciência indutiva da natureza humana e chegou à conclusão de que o homem é muito mais um ser prático e sensitivo do que racional. Desempenhou papel relevante dentro da história do pensamento ao levar últimas conseqüências a tradição intelectual originada e desenvolvida principalmente na Inglaterra, desde os nominalistas da Escola de Oxford, no Século XIII, passando por Francis Bacon (1724-804) de seu “sono dogmático” e o fez criar a filosofia critica, a partir da devastadora análise do conceito de causalidade. Foi fator essencial na formulação do positivismo de Augusto Comte (1798-1857), no utilitarismo de Jeremy Bentham (1748-1832) e influiu ainda mais profundamente no pensamento de John Stuart Mill (1806-1873). No século XX, os positivistas lógicos devem muito ao que Hume lançou para o desenvolvimento de uma teoria da significação”. (conforme João Paulo Gomes Monteiro na coleção OS PENSADORES, ed. Nova Cultural, p. 11)


[7] www.metrocamp.edu.br

[8] “Ao nível máximo de generalização, a Alienação pode ser definida como processo pelo qual alguém ou alguma coisa (segundo Marx, a própria natureza pode ficar envolvida no processo de Alienação humana) é obrigado a se tornar outra coisa diferente daquilo que existe propriamente em seu ser”. (conf. P. Chiodi, citado por Norberto Bobbio no seu Dicionário de Política, Vol. 1, 5. ed. P. 20)

[9] São chamados de “heróis românticos” aqueles que na transição da Idade Média para a Idade Moderna não tiveram medo de transgredir e assumir uma atitude de vida interrogativa. Foi essa atitude interrogativa que possibilitou a expansão da ciência.

[10] “Nas últimas décadas, a começar pelo período em que regimes coloniais eram derrubados, e depois em ritmo mais veloz quando as barreiras soviéticas ao mercado do capitalismo mundial finalmente caíram, vimos testemunhando uma globalização irresistível de trocas econômicas e culturais. Juntamente com o mercado global e com circuitos globais de produção, surgiu um ordem global, uma nova lógica e estrutura de comando – em resumo, uma nova forma de supremacia. O império é a substância política que, de fato, regula essas permutas globais, o poder supremo que governa o mundo. Muita gente sustenta que a globalização da produção e da permuta capitalistas é prova de que as relações econômicas tornaram-se mais independentes de controles políticos, e, consequentemente, que a soberania política está em declínio Há ainda quem comemore essa nova era como a liberação da economia capitalista de restrições e distorções que as forças políticas lhe impunham; e não falta quem veja e lamente nisso o fechamento dos canais institucionais que permitiam aos trabalhadores e cidadãos influenciar e contestar a fria lógica do lucro capitalista. É fato que, em sintonia com o processo de globalização, a soberania de Estados-nação, apesar de ainda eficaz, tem gradualmente diminuído. Os fatores primários de produção e troca – dinheiro, tecnologia, pessoas e bens – comportam-se cada vez mais À vontade num mundo acima das fronteiras nacionais; com isso, é cada vez menor o poder que tem o Estado-nação de regular os fluxos e impor a sua autoridade sobre a economia.” (Michael Hardt e Antonio Negri, in, IMPERIO, ed. Record, p. 12).

[11] “Das 100 maiores economias do mundo, hoje, 21 não são paises, são conglomerados mundiais. Isso muda as relações políticas, traz desafios e, acima de tudo, a dificuldade de reconstruir instituições a partir de valores que não serão necessariamente valores dos acionistas.”

[12] O Professor José Eduardo Faria em entrevista à Revista GETULIO em março de 2007 afirma: “Vejo a globalização como um processo multidimensional, multicausal e multiescalar. Ou seja, ele possui várias facetas, é fruto de diferentes fatores e se dá em várias escalas. Historicamente é um processo antigo que pode também ser visto a partir da idéia de destruição criadora que vai se caracterizando por faces cada vez mais curtas. Se por um lado a globalização é um fenômeno antigo, por outro lado o que tem de novo é a velocidade, a intensidade e seu lado de exclusão. É um fenômeno extremamente excludente, do ponto de vista social.”

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