Ativismo judicial

Problema surge quando juiz formula políticas públicas

Autor

  • Maurício Rands

    é advogado e professor universitário doutor pela Universidade de Oxford (Inglaterra) é deputado federal (PT-PE) e líder do seu partido na Câmara.

14 de maio de 2008, 11h16

Quando os poderes Executivo e Legislativo não conseguem entregar os serviços públicos que esperamos, somos logo tentados pelas soluções simplistas. Quando a justiça é lenta, a tentação é a de fazê-la com as próprias mãos.

Quando a reforma política resta paralisada no Congresso Nacional, recorre-se ao Poder Judiciário para que este estabeleça a fidelidade partidária, reduza o número de vereadores ou cancele a cláusula de barreira. Quando se discorda de certa obra pública, pede-se ao Ministério Público que a questione judicialmente.

Quando um partido perde uma votação no plenário da Câmara ou do Senado ou discorda de um ato do Executivo, ingressa com Ação Direta de Inconstitucionalidade, como se o Judiciário fosse uma espécie de “plenário legislativo de segundo grau” (de 2003 até o presente, foram 36 ADIs propostas pelo DEM e 12 pelo PSDB). A tentação traz ao debate a questão das atribuições e dos limites dos Poderes da República.

Executivo e Legislativo, eleitos pelo voto direto, são os instrumentos através do qual o povo exerce o seu poder soberano (artigos 1º, parágrafo único, e 14, Constituição Federal). A eles cabe a formulação e a execução das políticas políticas. Ao Judiciário, a guarda da Constituição (artigo 102, CF) e das leis. Portanto, é de se indagar: quando e em que circunstâncias é legítimo o chamado ativismo judicial?

O problema surge quando, à guisa de preservar a Constituição ou de interpretá-la, o juiz extrapola seus poderes e passa a formular políticas públicas (ou cancelá-las), às vezes impondo suas preferências pessoais. O ativismo judicial, um fenômeno há muito discutido aqui e alhures, pode ser definido como o ato de “ignorar o pleno significado da Constituição em favor da visão pessoal do juiz” (Kermit Roosevelt 3º, “The Mith of Judicial Activism”, 2006). Ou como a substituição dos Poderes Executivo e Legislativo pelo Judiciário na formulação e execução de políticas públicas.

Pode significar a alienação da soberania popular, expressa através dos mandatários eleitos pelo sufrágio universal, transferindo-a a um corpo técnico não eleito.

Um recente best-seller sobre esse debate nos Estados Unidos (Mark Levin, “Men in Black: How the Supreme Court is Destroying America”, 2005) alega que alguns juízes “têm abusado do seu mandato constitucional ao impor suas crenças e preconceitos pessoais ao restante da sociedade. E, assim, têm elaborado a lei, mais do que interpretado-a”. Há muito o assunto tem despertado a observação crítica de grandes presidentes americanos. Em seu discurso inaugural, em março de1861 , Lincoln já advertia que, se as políticas públicas fossem deixadas nas mãos dos juízes, “o povo deixaria de ser seu próprio governante”.

Theodore Roosevelt refutou a idéia de que “o povo tivesse entregue a um conjunto de homens o direito de determinação das questões fundamentais sobre as quais depende em última instância o livre autogoverno”.

E Franklin D. Roosevelt, seu primo, em defesa do “New Deal” e sua legislação social ameaçada pelo conservadorismo da Suprema Corte, acusou-a de “atuar não como um corpo judicante, mas como um corpo formulador de políticas públicas”. Os excessos ativistas podem ser de esquerda ou de direita. A Suprema Corte americana presidida por William Rehnquist foi uma das mais conservadoras e ativistas da história.

A corte que nos anos 50 considerou inconstitucional a segregação racial nas escolas, um exemplo de ativismo de esquerda. A questão, portanto, não é um debate entre esquerda e direita. Diz respeito à soberania popular na formulação e execução das políticas públicas. Soberania que, no regime constitucional republicano da democracia representativa, é exercida através dos representantes do povo mandatados para exercê-la no Legislativo e no Executivo, sob o controle de constitucionalidade e legalidade atribuído ao Poder Judiciário.

No Brasil, esse debate se torna necessário para o próprio fortalecimento da legitimidade do Judiciário. Muitas das ações que lhe têm sido submetidas buscam pronunciamentos que, em verdade, são da responsabilidade dos outros Poderes. E, com isso, desvia-se o Judiciário das suas reais atribuições, em desserviço ao seu augusto papel de garantidor do Estado Democrático de Direito.

[Artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo, desta quarta-feira, 14 de maio.]

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  • é advogado e professor universitário, doutor pela Universidade de Oxford (Inglaterra), é deputado federal (PT-PE) e líder do seu partido na Câmara.

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