A regra do grampo

Ensaio sobre a Lei de Interceptação das Comunicações Telefônicas

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14 de maio de 2008, 18h21

Este ensaio constitui parte integrante de um trabalho maior, ainda inédito, a que tenho dedicado algumas horas de estudo e reflexão, os quais serão expostos e transformados em livro, ainda por ser publicado.

Levo-os ao conhecimento da comunidade jurídica para colher mais subsídios a respeito da matéria, a fim de ultimar o trabalho final.

A Lei 9.296/1996, ao regulamentar o inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal, o fez tomando por modelo a legislação alienígena sobre a matéria, notadamente o Codice di Procedura Penale italiano (Código de Processo Penal italiano).

A disciplina cometida permite perceber que a interceptação telefônica não constitui, ela mesma, em si própria e isoladamente, prova de qualquer fato. Ao revés, a natureza da interceptação telefônica é instrumental: constitui meio de obtenção da prova. Isto significa que, ao lado da busca e apreensão (que pode ser frustrada e nada encontrar para apreender ou apreender o que não tem nenhuma serventia para a demonstração do fato e da autoria) e da inspeção, serve ao propósito de encontrar a prova. Quando muito, se for gravada e transcrita, poderá demonstrar o como se alcançou a prova produzida. Mas a diligência em que a prova é alcançada não se confunde com a interceptação telefônica.

Por outro falar, por meio dela o que se pretende é ter acesso à prova de autoria ou participação de determinado sujeito em um fato criminoso. A escuta de diálogos pode conduzir à prova que se procura, mas não consiste ela mesma em prova alguma.

Isso decorre da natureza da interceptação telefônica, pois a escuta opera-se por via remota, de modo que não é possível atestar com certeza quem são os interlocutores interceptados, nem a veracidade do diálogo escutado. Não seria crível atribuir a alguém a responsabilidade criminal pela prática de determinado ato simplesmente alegando ser a pessoa cujas conversas foram interceptadas. Há necessidade de evidências comprobatórias dos fatos abordados no diálogo interceptado.

Uma conversa, seja ela conhecida por meio da interceptação telefônica, seja porque foi escutada diretamente, ou até mesmo registrada em audiovisual, não constitui prova de nenhum fato delitivo. Pode, quando muito, suscitar a suspeita ou a curiosidade. Mas, há que se ter a demonstração do corpo de delito, do dolo, pois não se pune a mera cogitação. Ou se prova a prática de ações positivas que caracterizam o injusto penal, ou não há sequer falar em materialidade, nem em tentativa, muito menos em autoria ou participação.

O argumento mais eloqüente a atestar a natureza ab probandi da interceptação telefônica está na própria lei de regência que em seu artigo 6º, parágrafo 1º, deixa clara a desnecessidade de gravarem-se as conversas interceptadas.


Por que será que o legislador permitiria a interceptação sem exigir que fosse registrada para perpetua-se no tempo?

A resposta é imediata: porque tratando-se apenas de um mero instrumento de acesso à prova, uma vez que tenha cumprido sua finalidade, isto é, tenha possibilitado esse acesso, torna-se totalmente despicienda, já que a prova perseguida foi obtida e esta é que importa para os fins processuais. Ou seja, por meio da interceptação chega-se à prova que, de outro modo, jamais seria alcançada. Mas essa prova não se confunde com a interceptação ou com os diálogos interceptados. Nem poderia, pois do contrário as conversas interceptadas dos investigados ostentariam valor probante maior do que a prova produzida perante o juiz sob os auspícios do contraditório, inclusive a confissão.

Não foi isso que pretendeu o legislador. A Lei 9.296/1996 foi elaborada para permitir encontrar a prova da autoria quando isso não for possível por outros meios, e não tornar a interceptação uma prova em si mesma, muito menos uma prova irrefutável. Isolada, a interceptação telefônica não tem força nem mesmo para provar a existência do diálogo interceptado.

Diferentemente do documento escrito e assinado, que não constitui prova do fato nele retratado, mas tão somente da declaração, não é possível afirmar categoricamente que a interceptação prove a existência do diálogo, pois, se não tiver sido gravado, não haverá base para aferir sua autenticidade; e se tiver sido gravado, há mister aferir sua autenticidade para atestar que não foi montado ou editado.

Em abono dessa exegese acorre o entendimento do Supremo Tribunal Federal, de acordo com o qual a interceptação telefônica constitui medida excepcional, litteratim:

Cabe enfatizar, presente esse contexto de normalidade da ordem político-jurídica, que a Lei nº 9.296/96, ao regulamentar o inciso XII do art. 5º da Constituição Federal, também restringe – em prescrição absolutamente compatível com o texto constitucional – a possibilidade de interceptação telefônica, limitando-a, apenas, a uma única e específica função: a de viabilizar a produção de “prova em investigação criminal e em instrução processual penal (art. 1º, “caput”). {STF – 2ª T. – Ext. 1.021-2 – Relator: Min. Celso de Mello}[g.n.]

Antes da promulgação da Lei 9.296/1996, apesar do furor com que as autoridades policiais pretendiam utilizá-la, a interceptação telefônica, mesmo escorada em autorização judicial, padecia da jaça da inconstitucionalidade devido à ausência de lei que regulasse o modo de executá-la. Nesse sentido consolidou-se a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, proclamada numa plêiade de proficientes julgados, in verbis:


Prova ilícita: escuta telefônica mediante autorização judicial: afirmação pela maioria da exigência de lei, até agora não editada, para que, ‘nas hipóteses e na forma’ por ela estabelecidas, possa o juiz, nos termos do art. 5º, XII, da Constituição, autorizar a interceptação de comunicação telefônica para fins de investigação criminal; não obstante, indeferimento inicial do habeas corpus pela soma dos votos, no total de seis, que, ou recusaram a tese da contaminação das provas decorrentes da escuta telefônica, indevidamente autorizada, ou entenderam ser impossível, na via processual do habeas corpus, verificar a existência de provas livres da contaminação e suficientes a sustentar a condenação questionada; nulidade da primeira decisão, dada a participação decisiva, no julgamento, de Ministro impedido (MS 21.750, 24.11.93, Velloso); conseqüente renovação do julgamento, no qual se deferiu a ordem pela prevalência dos cinco votos vencidos no anterior, no sentido de que a ilicitude da interceptação telefônica – à falta de lei que, nos termos constitucionais, venha a discipliná-la e viabilizá-la – contaminou, no caso, as demais provas, todas oriundas, direta ou indiretamente, das informações obtidas na escuta (fruits of the poisonous tree), nas quais se fundou a condenação do apelante.” {STF – Tribunal Pleno – HC n. 69.912/RS – Relator: Min. Sepúlveda Pertence – j. 30/06/1993 – Lex-JSTF 186:350}[g.n.]

HABEAS CORPUS. PROVA ILÍCITA. ESCUTA TELEFÔNICA. FRUITS OF THE POISONOUS TREE. NÃO-ACOLHIMENTO.

Não cabe anular-se a decisão condenatória com base na alegação de haver a prisão em flagrante resultado de informação obtida por meio de censura telefônica deferida judicialmente. É que a interceptação telefônicaprova tida por ilícita até a edição da Lei nº 9.296, de 24.07.96, e que contaminava as demais provas que dela se originavam – não foi a prova exclusiva que desencadeou o procedimento penal, mas somente veio a corroborar as outras licitamente obtidas pela equipe de investigação policial.

Habeas corpus indeferido.” {STF – 1ª T – HC n. 74.599/SP – Relator: Min. Ilmar Galvão – j. 03/12/1996 – Lex-JSTF 226:385}[g.n.]

HABEAS CORPUS. PEDIDO DE EXTENSÃO. CONDENAÇÃO EM PROCESSO NULO, FUNDADO EM PROVA ILÍCITA: ESCUTA TELEFÔNICA. CÓDIGO DE PROCESSO PENAL, ART. 580.

Impõe-se a extensão de habeas corpus, para anular-se o processo criminal, se a decisão se baseou em prova ilícita, a afastar qualquer caráter pessoal. Cuida-se de estabelecer, na forma do art. 580 do Código de Processo Penal, igualdade de tratamento entre os co-réus que se encontram na mesma situação processual.

Habeas corpus concedido, para se estender os efeitos da decisão proferida no Habeas Corpus n. 73.351, sendo nulo, em conseqüência, o processo criminal, em relação aos apelantes.” {STF – Tribunal Pleno – HC n. 74.113/SP – Relator: Min. Ilmar Galvão – j. 28/06/1996 – Lex-JSTF 233:304}[g.n.]


Prova ilícita: interceptação inválida, não obstante a autorização judicial, antes, porém, da Lei 9.296/96, que a disciplina, conforme exigência do art. 5º, XII, da Constituição (cf. HC 69.912, Plen., 16.12.93, Pertence, RTJ 155/508): contaminação das demais provas – a partir da prisão em flagrante e da apreensão do tóxico transportado por um dos co-réus – porque todas contaminadas pela ilicitude da interceptação telefônica, que as propiciou (fruits of the poisonous tree): precedentes (HHCC 69.912, cit.; 70.277, 1ª T., 14.12.93, RTJ 154/58; HC 73.351, Plen., 9.5.96, Galvão; HC 72.588, Plen., 12.6.96, Corrêa; HC 73.510, 2ª T., M. Aurélio, DJ 12.12.97; Inf. STF, 96, clipping): habeas corpus deferido por falta de justa causa para a condenação, com extensão aos co-réus.

A doutrina da proscrição dos fruits of the poisonous tree, é não apenas a orientação capaz de dar eficácia à proibição constitucional da admissão da prova ilícita, mas, também, a única que realiza o princípio de que, no Estado de Direito, não é possível sobrepor o interesse na apuração da verdade real à salvaguarda dos direitos, garantias e liberdades fundamentais, que tem seu pressuposto na exigência da legitimidade jurídica da ação de toda autoridade pública.” {STF – 1ª T. – HC n. 75.545/SP – Relator: Min. Spúlveda Pertence – j. 17/02/1998 – Lex-JSTF 247:256}[g.n.]

Dessume-se, a partir da análise dos arestos retrocoligidos, entre muitos outros precedentes da Suprema Corte nacional, se antes do advento da Lei 9.296/1996 a interceptação telefônica constituía prova ilícita devido à ausência de lei disciplinadora, ainda que autorizada por juiz, hoje, sob a vigência do indigitado diploma legal, a validez da interceptação telefônica subordina-se à estrita observância dos preceitos inscritos na lei de regência, a qual erige a autorização judicial apenas como um dos requisitos para sua realização, e não o requisito. Por isso, é ilegal (= ilegítima) a interceptação telefônica levada a efeito com desobediência ou inobservância de qualquer daquelas normas reguladoras da sua produção.

Essa a interpretação mais consentânea a respeito da matéria. E assim vem se manifestando o Supremo Tribunal Federal, como no magistral voto do Ministro Celso de Mello no HC 69.912/RS, in verbis:

“Impõe-se destacar, como expressiva conquista dos direitos assegurados àqueles que sofrem a ação persecutória do Estado, a inquestionável hostilidade do ordenamento constitucional brasileiro às provas ilegítimas (aqueles que se produzem com vulneração das normas de direito processual) e às provas ilícitas (aquelas que se coligem com transgressão das regras de direito material). A Constituição do Brasil, ao repelir a doutrina do male captum, bene reteatum, sancionou, com a inadmissibilidade de sua válida utilização, as provas inquinadas de ilegitimidade ou de ilicitude.

…………………….


A cláusula constitucional do due process of lawque se destina a garantir a pessoa do acusado contra ações eventualmente abusivas do Poder Públicotem, no dogma da inadmissibilidade das provas ilícitas ou ilegítimas, uma de suas projeções concretizadoras mais expressivas, na medida em que o réu tem o impostergável direito de não ser denunciado, de não ser julgado e de não ser condenado com base em elementos instrutórios obtidos ou produzidos com desrespeito aos limites impostos pelo ordenamento jurídico ao poder persecutório e ao poder investigatório do Estado.” {STF – Plenário – HC 69.912/RS – Relator: Min. Sepúlveda Pertence – j. 16.12.1993 – DJ: 25.03.1994, p. [?]}

A razão é mesmo singela. A Lei 9.296/1996 vulnera um bem jurídico a que a Constituição Federal concede proteção especial: o sigilo das comunicações telefônicas, que pertence ao domínio dos direitos personalíssimos do indivíduo, sua intimidade e sua privacidade (art. 5º, inc. XII). Assim revestido de tegumento espesso, o sigilo das comunicações somente pode ser vulnerado EXCEPCIONALMENTE e na forma da lei, devendo o intérprete fiel obediência a seus preceitos, visto como não se trata de uma lei que restringe direitos ordinários, e sim de uma lei restritiva de direitos encouraçados com garantia constitucional de sua eficácia.

Isso dá a tônica dos valores em confronto. De um lado, o direito fundamental de sigilo das comunicações telefônicas; de outro, o interesse geral (rectius: da sociedade) no combate à criminalidade à guisa de aperfeiçoamento da segurança pública ou geral.

Nem por isso se pode prodigalizar relativização dos direitos fundamentais do indivíduo em prol da sociedade – nem mesmo invocando o famigerado princípio in dubio pro societate, de origem obscura na história do direito – além dos lindes autorizados na própria Constituição Federal, sob pena de aterrorizar, se não niilificar as garantias constitucionais.

Conquanto nessa matéria a Magna Lex haja autorizado a relativização do direito fundamental ao sigilo das comunicações telefônicas ao remeter sua disciplina para a lei ordinária, nem por isso tal direito perde aquela espessa couraça que o protege, tampouco sua característica principal, sua ratio essendi, a saber: a de constituir-se em direito fundamental.

Ainda em abono dessa exegese acorre o parágrafo 1º do artigo 5º da própria Lei Maior, que admite para outros direitos não relacionados no rol dos direitos fundamentais, estejam eles inscritos expressamente ou não no texto constitucional, categorização eqüipolente, de modo que possuam a mesma eficácia e gozem do mesmo sistema de garantias e proteção deferidos pela Carta da República aos direitos fundamentais. Contenta-se a Constituição para essa expansão dos direitos fundamentais com o mero reconhecimento sobre a natureza de outros direitos, o que decorre de um lavor racional de equiparação e assimilação a respeito de direitos estabelecidos em tratados internacionais assinados pelo Brasil ou ainda em simples lei ordinária nacional.


O que realmente importa é o regime jurídico dos direitos fundamentais. Como dito, não se pode prodigalizar sua relativização sob pena de simplesmente riscá-los da Constituição Federal, retirando-lhes o que possuem de mais valoroso: a basta couraça protetiva de que se revestem, erigidos que foram em favor do indivíduo como única arma a permitir-lhe opor-se ao Estado, ente abstrato que personifica o interesse público, o interesse geral, o interesse da sociedade, o qual, em tese, sempre age ou presume-se agir pro societate. Sem a garantia dos direitos fundamentais, ou admitida sua relativização quando o não haja autorizado a própria Constituição Federal, o indivíduo padece inerme, manietado, sujeito a toda sorte de opressão diante da ação e do poder irresistível do Estado, que age por meio de suas instituições, entre as quais figuram a polícia, máxime no exercício da função investigativa e opressora, o Ministério Público, quando atua como sujeito acusador personificando o povo nos processos criminais de ação pública, e o Poder Judiciário, sempre que inobserva a missão para a qual está vocacionado: a de operar um sistema de freios e contrapesos capaz de pôr o indivíduo em pé de igualdade e paridade de armas toda vez que se vir envolvido num litígio contra a sociedade representada pelo próprio Estado.

Por isso é falsa a afirmação de que o interesse público sempre prevalece ao do particular. Ao contrário, nem sempre há prevalecer o interesse público em face do indivíduo. Existem limites que devem ser respeitados, impostos pela Constituição Federal, e que se traduzem na eficácia dos direitos fundamentais a impedir que o Estado, brandindo seu irresistível poder de opressão, possa aniquilar o indivíduo. Essa, precisamente a razão de ser dos direitos fundamentais: o equilíbrio entre o poder do Estado e os direitos do indivíduo. Tal era a idéia e o desígnio que tinham em mente os fundadores da democracia ocidental moderna.

Assente que a relativização dos direitos fundamentais deve ser encarada e aplicada com siso e temperamentos, porquanto constitui medida excepcional, restritiva de direitos pertencentes a uma categoria superior, e considerando-se verdadeiro o axioma hermenêutico segundo o qual toda norma restritiva deve interpretar-se estritamente, a fortiori quando a restrição incide sobre direitos de índole constitucional, reputados aí como os direitos fundamentais do indivíduo, a possibilidade de relativização torna-se ainda mais raquítica.

Nestas hipóteses afigura-se válida a asserção de que as leis restritivas de direitos fundamentais só têm validade quando são autorizadas pela própria Constituição Federal, e sua aplicação exige atenção e cautela ainda maiores por parte do intérprete e aplicador da norma jurídica, pois não pode permitir-se um só desvio da mais estrita legalidade, sob pena de aluir a base da democracia inaugurada pela Constituição Federal, submetendo o indivíduo a uma coarctação em seus direitos fundamentais mais profunda e mais abrangente do que previu e intencionou a Carta Política.

Por outro lado, se a finalidade do processo não é a de aplicar a pena ao réu a qualquer custo, não é transformar nem disfarçar o anelo objetivo de vindita em aparente realização do valor subjetivo justiça, a verdade deve ser obtida de acordo com uma forma moral inatacável.


Não se pode permitir que o meio empregado para distinguir o inocente do criminoso faça desaparecer toda diferença entre um e outro, porque a conseqüência dessa tolerância é o desaparecimento dos inocentes, já que estes não atormentam o espírito conturbado do homem, que se assusta com a só suposição do mal e, conseguintemente, acaba por enxergar em todos um criminoso. Esse comportamento é próprio do homem, por isso que merece atenção para não haver desvios, já o dizia, no século das luzes, Cesare Bonesana, marquês de Beccaria, in verbis:

“Os homens são sempre os mesmos: vêem as coisas presentes sem preocuparem-se com as conseqüências.” ([1])

Por isso todo cuidado é pouco ao interpretar uma lei que lida e atua na região de fronteira entre o poder estatal e os direitos fundamentais, pois qualquer desvio poderá resultar na ruína desses mesmos direitos para sempre.

O porto seguro do aplicador que, humildemente reconhece os perigos derivados de sua própria condição humana, reside no respeito irrestrito às formalidades traçadas na lei para o procedimento que autoriza excepcionar a proteção constitucional do direito fundamental cuja vulneração a Carta Política autoriza sob condições estritas.

Nessa senda a interpretação da lei não pode, nem por um momento, tangenciar a possibilidade de eliminação dos princípios basilares que sustentam o processo penal, tais como o favor rei, o favor libertatis e o in dubio pro reo, muito menos quando se tem em vista a restrição de um direito consagrado em todos os mais evoluídos diplomas constitucionais do mundo, haja vista certos direitos não só integram o rol das garantias individuais previstas nas Constituições de diversos povos desenvolvidos, mas pertencem também às Convenções e Tratados Universais sobre os Direitos Humanos, alçando-os a uma categoria sobranceira, dir-se-ia mais, supersobranceira, para usar um pleonasmo reforçativo, dada à importância de que se revestem na realização plena do Estado Democrático de Direito.

A ilegalidade da prova, in casu, atrela-se à constatação de sua ilegitimidade. É dizer, conquanto o sigilo das comunicações telefônicas goze de proteção constitucional, é a própria Norma Ápice que admite sejam devassadas. Mas o faz de modo restrito, com temperamentos, admitindo-a somente em caráter excepcional e desde que observadas as prescrições legais que disciplinam a intromissão estatal no âmbito da privacidade da pessoa.

Portanto, somente quando atendidas todas as formalidades, os pressupostos e os requisitos estatuídos na lei autorizadora é que a ruptura do sigilo das comunicações telefônicas não padecerá de ilegalidade.


A contrario sensu, sempre que for preterida qualquer formalidade, pressuposto ou requisito previsto na lei, a quebra do sigilo das comunicações será ilegal, e da mesma eiva padecerá o decreto judicial que a tiver autorizado.

E nem se cogite que a preterição dalguma formalidade, pressuposto ou requisito, não seja suficiente para inquinar de ilegalidade a devassa das comunicações telefônicas ao argumento de que isso constituiria excessivo rigor formalista e que se deve ter como prevalente o interesse da sociedade; tal argumentação não passa de vil e especioso atalho para ladear a determinação legal arrostando pela proa o espírito da lei, que é admitir a vulneração apenas em hipóteses excepcionais, de modo que o direito fundamental de sigilo das comunicações telefônicas só pode ser ferido em casos especialíssimos, do contrário esse direito ficará totalmente ao desabrigo daquela proteção, degradando a regra em exceção para transformar a exceção em regra.

A satisfação plena das formalidades, pressupostos e requisitos legais para que seja autorizada a quebra do sigilo das comunicações telefônicas constitui imperativo maior da segurança jurídica, sem a qual rapidamente instala-se o caos, a prodigalização da invasão estatal na privacidade da pessoa, solapando sua dignidade sem conceder-lhe qualquer resquício de existência.

É exatamente a análise da satisfação das formalidades, pressupostos e requisitos predeterminados na Lei 9.296/1996 que inspiram este trabalho, tendo em sua base a homenagem que se deve prestar ao primado da garantia do style=”mso-bidi-font-style: normal”>status style=”mso-bidi-font-style: normal”>libertatis e ao princípio da inocência, os quais, infelizmente, têm sido despudoradamente descurados e relegados ao olvido por juízes e tribunais do país.

A) Do artigo 2º, inciso I, da Lei 9.296/1996

A interceptação das comunicações telefônicas não pode ser admitida quando não houver indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal. É o que dispõe o inciso I, do artigo 2º, da Lei 9.296/1996, in verbis:

Art. 2º Não será admitida a interceptação de comunicações telefônicas quando ocorrer qualquer das seguintes hipóteses:

I – não houver indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal;[g.n.]

A dicção do enunciado legal é estreme de dúvida. Qualquer um versado no idioma português é capaz de compreender o comando legal sem rebuços, apreendendo o sentido das palavras utilizadas pelo legislador. A língua escrita cumpre um fim objetivo de comunicação do pensamento, seja no descrever fatos, seja no prescrever comandos, de qualquer modo não admite interpretações subjetivas nem as licenças deferidas quando a palavra serve ao propósito da arte e torna-se matéria-prima nas mãos do artista que a modela segundo seu livre e descomprometido prazer.


Conquanto boa parte da doutrina tenha manifestado censura acerca do critério técnico consistente da redação negativa utilizada pelo legislador, chegando mesmo a se afirmar que isso dificulta a intelecção da vontade da lei e ainda dá a entender que a interceptação seja a regra, na verdade o sigilo é que constitui a regra, sendo a interceptação a exceção.([2]) Por isso, a crítica não procede.

Primeiro, a redação negativa adotada pelo legislador no caput do artigo 2º, não empece e nem compromete sua intelecção. Ao afirmar, imperativamente, que não será admitida a interceptação, não faz outra coisa senão dizer, também imperativamente, que é proibida a interceptação. Só os que desconhecem as técnicas lingüísticas de como exprimir pela palavra escrita o pensamento é que poderiam censurar a redação do texto legal.

A só leitura do dispositivo legal retrotranscrito, conjugada com a dicção do artigo 1º da mesma lei, conduz ao conhecimento direto e imediato dos primeiros pressupostos para a admissibilidade da quebra do sigilo das comunicações telefônicas de alguém, a saber: a) a certeza do crime ou de sua tentativa; b) a existência de investigação criminal. Por outro falar, exige o inciso I, do artigo 2º, haja investigação criminal em curso e que tenha na base a materialidade delitiva já comprovada, isto é, a certeza da ocorrência de um crime ou da tentativa de praticá-lo, cujo conhecimento constitua a motivação de uma investigação criminal. Numa palavra, exige um inquérito policial devidamente instaurado ou ação penal em tramitação.

Com efeito, a clareza da norma jurídica em apreço não deixa margem para dúvidas. A exigência legal proposta na afirmação de haver indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal traz implícita a necessidade da certeza quanto materialidade do crime e, caso a interceptação telefônica decorra de pedido formulado por autoridade policial, torna imperativa a existência prévia do procedimento administrativo de investigação, qual seja, o inquérito policial.

Essa a inteligência que deflui da conjugação dos artigos 1º e 2º da Lei 9.296/1996. Só é possível falar de indícios razoáveis de autoria quando tais indícios refiram-se a fato cuja existência seja certa e conhecida, vale dizer, de crime para o qual não paira dúvida acerca da sua materialidade ou tentativa. Conhecido o fato, impende seja criminoso, pois do contrário não teria cabimento a alusão a indícios de autoria como necessidade justificadora da quebra do sigilo das comunicações telefônicas de alguém.

Segundo, tal constatação, por sua vez, implica a necessidade de haver uma investigação. De acordo com o artigo 1º da Lei 9.296/1996, a interceptação telefônica pode ser autorizada quer no âmbito da investigação criminal, quer da ação penal. Essas duas possibilidades legais decorrem da prescindibilidade do inquérito policial para a propositura da ação penal. Por outras palavras, como a propositura da ação penal pode fundar-se em outros elementos que não aqueles oriundos de investigação criminal levada a efeito pela polícia, desde que já tenha sido proposta a ação penal, torna-se viável a interceptação telefônica como procedimento incidental. Importa aqui observar a existência formal, no mundo jurídico, de um procedimento apuratório do crime, qual a própria ação penal.


Por outro lado, não sendo o caso de ação penal proposta diretamente, quando o Parquet municia-se de elementos bastantes a partir de outras fontes, não pode haver investigação criminal sem a instauração de inquérito policial, pelo simples fato de que ao tomar conhecimento de um crime a autoridade policial tem o dever de ofício de instaurá-lo, sob pena de incorrer em prevaricação.

A instauração ex officio de inquérito policial constitui obrigação ex lege imposta à autoridade policial sempre que chegar ao seu conhecimento a notícia de fato criminoso, dela não podendo subtrair-se sob pena de frustrar o controle dos atos administrativos e dificultar a coibição de abusos, que já são freqüentes mesmo quando há inquérito policial, o que dizer então quando este não é formalmente instaurado, a par de incorrer, como dito, na prática de prevaricação.

Com efeito, o artigo 5º do Código de Processo Penal ordena que o inquérito policial se inicie de ofício toda vez que a autoridade policial tome conhecimento do fato criminoso cuja ação penal seja pública e incondicionada.

Destarte, dois são os pressupostos que devem ser satisfeitos para que o juiz autorize pedido de interceptação telefônica formulado pela autoridade policial, a saber: a) certeza da materialidade do crime ou de sua tentativa (primeiro pressuposto); b) investigação criminal em andamento, consubstanciada em um inquérito policial formalmente instaurado (segundo pressuposto).

Todavia, a satisfação desses pressupostos, embora necessária, não se afigura suficiente para a autorização de interceptação telefônica. Impõe ainda a Lei 9.296/1996 o atendimento dos requisitos estabelecidos nos incisos I usque III do artigo 2º.

O primeiro desses requisitos exigidos pela lei consiste na existência de indícios razoáveis de autoria ou participação do investigado no crime retratado no inquérito policial.

Qualquer um versado em lógica, essa prodigiosa ferramenta da razão, saberá identificar na redação do texto legal que o advérbio de negação foi adrede empregado para exprimir uma condição necessária (requisito) à realização da interceptação telefônica, consistente da existência de indícios razoáveis de autoria ou participação daquele que será investigado, no delito cuja autoria constitui o objeto de investigação.

O enunciado do inciso I do artigo 2º pode ser reescrito sob a forma de uma proposição lógica, a saber: se não há indícios razoáveis de autoria ou participação em infração penal, então não é admitida a interceptação telefônica (~q → ~p).([3]) Pode-se ainda afirmar que esta última proposição é equivalente a: a menos que haja indícios razoáveis de autoria ou participação em infração penal, não pode ser realizada interceptação telefônica; ou por este outro modo: somente há interceptação telefônica se houver indícios razoáveis de autoria ou participação em infração penal. Qualquer que seja a forma adotada, a conclusão será sempre a mesma e uma só: a existência de indícios razoáveis de autoria ou participação em infração penal constitui condição necessária para a realização de interceptação telefônica.


Dizer que uma condição é necessária para alcançar determinado resultado significa asserir que este resultado não será alcançado sem a satisfação daquela condição. Quando se afirma que q constitui condição necessária para p, simbolizando essa afirmação na expressão lógica ~q → ~p,([4]) o que se diz é que p não ocorre se não ocorrer q. Ou seja, a interceptação telefônica somente pode ser autorizada se houver indícios razoáveis de autoria ou participação da pessoa investigada no crime (ou tentativa) cuja materialidade seja certa e constitua o fator determinante da instauração de inquérito policial para apurá-lo.

É dessa apuração que deve emergir os indícios razoáveis de autoria ou participação, obtidos por outros meios e previamente, sem os quais não se justifica a autorização para interceptação. Como já mencionado, se não há um crime (ou tentativa) certo e conhecido, não há falar em investigação, muito menos em inquérito policial, e tampouco cogitar de autoria ou participação de alguém, pois tal imaginação seria absurda, implicando a autoria ou participação sobre um nada. Não passaria na cabeça de ninguém investigar uma pessoa se nem ao menos existe a certeza do fato.

Por outro lado, se há um crime, portanto conhecida e determinada a materialidade delitiva pela autoridade policial, corolário jurídico necessário é a existência de um processo administrativo investigatório: o inquérito policial, que se instaura nessas hipóteses de ofício (CPP, art. 5º, n. I).

Poder-se-ia alegar que nem sempre o inquérito policial precede a investigação criminal. Todavia isso é impossível. O que pode ocorrer antes de se instaurar inquérito policial são investigações preliminares, pelas quais se buscam informações, vestígios para demonstrar a materialidade e, quiçá, indícios leves de autoria, enfim, elementos bastantes para instaurar o inquérito policial e, aí sim, passar à uma etapa mais profunda e elaborada das investigações, a genuína investigação criminal. Antes de instaurado o inquérito não se pode falar propriamente em investigação criminal, mas tão somente em investigação preliminar, e esta não autoriza a quebra de sigilo das comunicações para proceder-se à interceptação telefônica, pela simples razão de que ainda não se sabe sobre a existência do delito.

A Lei 9.296/1996 não se contenta com investigações preliminares para a autorização de quebra do sigilo telefônico. Exige investigação criminal formalmente instaurada, i.e., exige inquérito policial em curso. Para os efeitos previstos na Lei 9.296/1996 somente em uma hipótese poder-se-ia prescindir de inquérito policial para a autorização prevista no caput do artigo 1º do indigitado diploma legal: tal hipótese só ocorre quando a autorização para interceptação telefônica seja requerida incidentalmente, pelo Ministério Público, no curso da ação penal em fase da instrução criminal, e tem por escopo obter acesso a prova capaz de corroborar a formação da culpa do sujeito passivo, não a certeza de materialidade do crime, pressuposto de aceitabilidade da denúncia. Trata-se de requerimento para realização de diligências. Quando a representação que objetiva conseguir autorização de interceptação telefônica promana da autoridade policial, destinando-se a contribuir para investigação criminal na obtenção de provas ou indícios mais robustos da autoria, é imprescindível que decorra de inquérito policial já instaurado.


O procedimento de interceptação telefônica constitui um incidente, tanto no inquérito policial, quanto na ação penal, dada a sua natureza cautelar. Não goza de autonomia; é meio de busca ou pesquisa de prova.

Por essas razões é que a lei exige, como pressuposto para a autorização, a certeza da materialidade (ou da tentativa) e indícios razoáveis da autoria. O primeiro conduz inexoravelmente à instauração do inquérito policial. O segundo deve decorrer das investigações levadas a efeito durante o inquérito policial, esbarrando as investigações em reais obstáculos a empecer a confirmação ou o fortalecimento daqueles indícios razoáveis de autoria, de modo que somente por meio da interceptação telefônica é que se terá alguma chance de obtenção da prova pretendida.

Exatamente porque fere um direito especial, que goza de proteção constitucional, tal o direito personalíssimo à intimidade, a mitigação prevista na Constituição fez compreender ao legislador a necessidade de impor a satisfação rigorosa de pressupostos e requisitos rígidos para que se possa vulnerar aquele direito.

Por isso que a interceptação telefônica não se presta à obtenção de indícios de materialidade ou de autoria. Ao contrário, pressupõe a existência certa e bem caracterizada do delito (ou da tentativa) e indícios razoáveis de autoria, os quais devem estar bem demonstrados no pedido formulado pela autoridade policial, sob pena de ser abusiva a autorização judicial que conceder o pedido de quebra do sigilo das comunicações telefônicas. Destarte, não é possível cogitar da autorização judicial para interceptação telefônica no âmbito de investigações preliminares, porque nestas não estão presentes nem os pressupostos consistentes na certeza do crime (ou tentativa) e do inquérito policial devidamente instaurado, nem o requisito que se traduz nos indícios razoáveis de autoria. Em sede de investigações preliminares há mera suspeita, tanto do fato criminoso quanto da sua autoria, o que é manifestamente pobre, insuficiente, para satisfazer as exigências da Lei 9.296/1996.

É cediço que sói ocorrer com freqüência nas investigações preliminares em que se buscam indícios de materialidade e autoria, tais aquelas que não se respaldam em inquérito policial devidamente instaurado, isto é, carecedoras das formalidades legais assecuratórias do controle das ações dos agentes públicos, os mais nefandos abusos perpetrados pela polícia.

Nesse diapasão, impossível relegar ao olvido a lição de ALÍPIO SILVEIRA, que assim já vaticinava, ad litteram:

“Mesmo que se adote política firme de repressão e de prevenção dos abusos (esta última exigirá boa seleção na polícia, que nunca tivemos), não tenhamos, porém ilusões românticas, pois, enquanto existir polícia, existirão abusos, praticados com a invocação dum interesse social elevado a extremos, e expresso nesta falsa máxima, corrente em nossos meios policiais: é preferível prender cem inocentes a deixar em liberdade um culpado.” ([5]) [g.n.]


O mesmo raciocínio aplica-se para a hipótese de a investigação ter por objeto tanto a própria constatação do fato criminoso quanto do seu agente a partir de, por exemplo, uma denúncia ou informação obtida pela autoridade policial por qualquer meio (inclusive denúncia anônima). Isso não é suficiente para que se proceda à quebra do sigilo das comunicações telefônicas, a qual exige elementos mais sólidos, que só podem ser alcançados mediante uma investigação mais profunda, capaz de trazer a lume determinadas certezas: a da materialidade do crime e razoáveis indícios de autoria. Do contrário estar-se-á prodigalizando a vulneração do direito fundamental, subvertendo o seu caráter excepcional para torná-lo em regra, quando foi admitido para ser utilizado apenas como exceção.

A interceptação das comunicações telefônicas destina-se a coadjuvar, quando não existam outros meios disponíveis (ver adiante), na obtenção tão somente de indícios de autoria ou participação, uma vez que esteja caracterizada a materialidade (ou tentativa) do crime.

Sempre que a autoridade policial tomar conhecimento da materialidade do crime e não instaurar o procedimento administrativo, em tese incorrerá no delito de prevaricação. Nem por isso pode-se prescindir do inquérito policial em detrimento do Estado de Direito, pois o erro do Estado, personificado na autoridade policial, não justifica nem escusa a violação legal da norma cujos destinatários são precisamente os agentes públicos.

Isso porque o fato criminoso somente entra no mundo jurídico quando reconhecido pela autoridade policial por meio da instauração do inquérito policial, ou quando o reconhecido pelo Parquet que propõe a ação penal diretamente. Não há outra alternativa. Enquanto não houver inquérito policial ou ação penal, a materialidade do crime não passará de mero fato, sem o condão para produzir qualquer repercussão jurídica, entre as quais figura a diligência ab probandi da interceptação telefônica.

Não se pode simplesmente olvidar as regras legais, as formalidades que garantem a segurança jurídica, mormente em matéria penal, relegando os princípios basilares do direito a um segundo plano para perseguir a condenação de alguém a qualquer custo. Os operadores do direito, máxime as autoridades, têm por dever de ofício observar as regras legais e os princípios em que se baseiam para garantir a integridade do Estado Democrático de Direito, aplicando umas e outros aos casos concretos e repudiando toda sorte de inversão dos seus conceitos. De acordo com GUILHERME DE SOUZA NUCCI,

“(…) em nome da dignidade da pessoa humana, busca-se um Estado Democrático de Direito em todas as áreas, mormente em Direito Penal e Processual Penal, motivo pelo qual não se pode investir contra o indivíduo, investigando sua vida privada, garantida naturalmente pelo direito constitucional à intimidade, bem como agindo em juízo contra alguém sem um mínimo razoável de provas, de modo a instruir e sustentar tanto a materialidade (prova da existência da infração penal) como indícios suficientes de autoria (prova razoável de que o sujeito é autor do crime ou da contravenção penal).


O Estado pode e deve punir o autor da infração penal, garantindo com isso a estabilidade e a segurança coletiva, tal como idealizado no próprio texto constitucional (art. 5º, caput, CF), embora seja natural e lógico exigir-se uma atividade controlada pela mais absoluta legalidade e transparência. Nesse contexto, variadas normas permitem que órgãos estatais investiguem e procurem encontrar ilícitos penais ou extrapenais. O principal instrumento investigatório no campo penal, cuja finalidade principal é estruturar, fundamentar e dar justa causa à ação penal, é o inquérito policial.” ([6]) [g,n.]

A colheita de provas sobre a materialidade do crime, isto é, conforme a lição retrocoligida, a certeza de existência da infração penal, bem como dos indícios de autoria do crime constituem o objeto precípuo e exclusivo, no âmbito penal, do inquérito policial, pois não fosse assim, padeceriam irremediavelmente comprometidos os objetivos do Estado Democrático de Direito, a legalidade e a transparência das atividades do Estado-polícia, o que acarretaria uma conseqüência tão perigosa quanto estarrecedora: a impossibilidade de se exercer qualquer controle sobre as atividades dos homens que atuam as funções do Estado.

A conclusão é de que, não havendo prova da materialidade nem inquérito policial devidamente instaurado para proceder às investigações na busca de indícios que superem a mera suspeita e sejam capazes de estabelecer um liame forte a vincular determinado sujeito à prática do crime cuja existência já é conhecida, não é possível afastar a proteção constitucional do sigilo que ordinariamente reveste as comunicações telefônicas para interceptá-las à guisa de obter já a prova da materialidade, já a da autoria.

Ensina VICENTE GRECO FILHO, a finalidade do inquérito policial é justamente a investigação a respeito da existência do fato criminoso e da autoria.([7]) Não discrepa PAULO RANGEL, para quem o inquérito policial cumpre uma função garantidora, cujo escopo – pelo menos em tese, já que a realidade tem-se mostrado assaz discrepante – é evitar uma persecução penal infundada ou baseada em elementos obtidos ilicitamente, vale dizer, sem observar os procedimentos e as garantias estatuídos em lei.([8]) Ou seja, sem inquérito os procedimentos investigatórios não gozam de legitimidade.

A leitura do inciso I, do artigo 2º, da Lei 9.296/1996, implica que não pode o juiz autorizar interceptação telefônica quando não estiver patente a existência do crime e houver indícios razoáveis de autoria ou participação da pessoa cujo sigilo das comunicações telefônicas se pretende quebrar. Se mesmo assim, ante a inexistência de comprovação do fato criminoso e de indícios razoáveis de autoria e participação, o juiz autorizar a quebra do sigilo das comunicações telefônicas de alguém, essa decisão é ilícita, constituindo manifesta subversão da ordem legal.


Demais disso, amiúde a autoridade policial requer autorização para proceder à interceptação de terminais telefônicos que, segundo ela e sem nenhum outro elemento de prova que demonstre tal asserção, são os terminais usados pelos investigados.

Primeiro, terminal telefônico não é sujeito de direito, mas o meio pelo qual se estabelecem comunicações telefônicas. O direito cuja superação só pode ser deferida com estrita obediência aos comandos da Lei 9.296/1996, é o sigilo das comunicações telefônicas de que é titular um sujeito, não um terminal telefônico. Verifica-se, assim, a primeira impropriedade nos múltiplos pedidos de autorização e respectivas prorrogações formulados pelas autoridades policiais do País nos diversos procedimentos especiais de interceptação, quase todos sem o correspondente inquérito policial, que somente vem a ser instaurado como ponto culminante e derradeiro das investigações para municiar o Ministério Público a fim de que possa oferecer a denúncia.

Mas, reitere-se, o direito de sigilo das comunicações telefônicas é subjetivo, integra a esfera jurídica de um indivíduo, na verdade, de dois, pois as comunicações telefônicas constituem fato entre duas pessoas. Um terminal telefônico pode ser utilizado por uma pluralidade de pessoas. A quebra do sigilo do terminal implica o afastamento do sigilo das comunicações de todas as pessoas que se utilizam do mesmo terminal e de seus interlocutores. Isso significa que com um só decisão, aniquila-se o direito de uma multiplicidade de pessoas sobre as quais não há qualquer indício razoável de autoria de crime algum, muito menos a respeito do delito objeto da investigação.

O abuso aí é manifesto.

Segundo, conquanto a autoridade policial costume aludir a sujeitos investigados, afirmado que usavam os terminais telefônicos para os quais requer autorização de interceptação, força convir que o vigor do direito ao sigilo de comunicações telefônicas não pode ser emasculado com base em simples afirmações de que há uma investigação e que há interesse em interceptar suas conversas telefônicas, sem nenhum outro elemento que justifique tal insurgência.

Aí outro vício é inescusável, indefectível e inabrandável. Nos diversos pedidos de interceptação telefônica que se têm feito, a autoridade policial limita-se a fundamentá-los em um mero interesse, esquivando-se de demonstrar a existência do crime imputável aos investigados. Quando muito, a autoridade policial apenas alega, sem contudo demonstrar, não haver outros meios para continuar a investigação.

Cumpre, então, indagar: investigação do quê? Do crime ou da autoria?

É freqüente seja tanto de um quanto da outra, já que a autoridade policial tem-se socorrido da interceptação telefônica para obter indícios de materialidade que não havia quando formulou o primeiro pedido.


Probare oportet, non sufficet dicere. A lei não se satisfaz com referência a indícios de materialidade, exige a certeza desta e indícios razoáveis de sua autoria para viabilizar a interceptação, desde que não existam outros meios pelos quais a prova possa ser obtida. Há mister que a autoridade policial diligencie preliminarmente para verificar, por outros meios, como a infiltração, a campana, a espreita etc., conforme previstos na Lei 9.034/1995, antes de ser autorizada a interceptação telefônica de quem quer que seja.

A interceptação telefônica não se presta para encontrar indícios de materialidade e autoria ou participação, mas sim e tão somente como meio de busca da prova confirmatória da formação de culpa. Qualquer outro entendimento será desviado e deturpado do espírito e da finalidade da lei, não encontrando outro supedâneo a não ser na subversão de conceitos há muito radicados na consciência jurídica geral.

A lei só defere ao juiz a possibilidade de autorizar a quebra do sigilo de comunicações telefônicas quando houver certeza do crime e indícios razoáveis de autoria ou participação, a fim de auxiliar na investigação.

Isso significa que ao formular o requerimento de interceptação telefônica, tanto a autoridade policial quanto o Parquet têm de demonstrar de modo inequívoco a satisfação desses requisitos. Do contrário não pode ser deferida a superação do direito fundamental de sigilo de comunicações telefônicas; e se assim mesmo o juiz a deferir, estará decidindo contra legem, sujeitando-se sua decisão à revisão pelas instâncias superiores, inclusive pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal, uma vez que a interceptação contrária à lei afronta diretamente também a Constituição Federal.

B) Do artigo 2º, inciso II, da Lei 9.296/1996

Assente que a materialidade constitui, ao lado da investigação, pressuposto para a autorização de interceptação de comunicações telefônicas do sujeito, outro requisito há que ser preenchido. É o previsto no inciso II do artigo 2º da lei que regula as interceptações das comunicações telefônicas, o qual veda a quebra do sigilo quando a prova puder ser feita por outros meios disponíveis. Reza o indigitado dispositivo legal, in verbis:

Art. 2º Não será admitida a interceptação de comunicações telefônicas quando ocorrer qualquer das seguintes hipóteses:

…………………….

II – a prova puder ser feita por outros meios disponíveis;[g.n.]


O comando legal inscrito no inciso II, do artigo 2º, da Lei 9.296/1996 não constitui e não pode ser reduzido à condição de um mero ornamento despido de eficácia no sistema jurídico, sob pena de o direito de sigilo das comunicações telefônicas perder o espesso tegumento protetivo que lhe confere a Constituição Federal para passar à categoria de um não-direito, tão fácil seria a revogação da sua eficácia.

Ao revés, é exatamente na dicção do inciso II, do artigo 2º acima transcrito que se pode inferir a vontade da lei em conferir primazia ao sigilo. Vale dizer, o inciso II do artigo 2º exalta a regra do sigilo, colocando-o sob tal escudo protetivo que só pode ser afastado se não houver outros meios disponíveis para buscar a prova pretendida.

A mens legis não pode ser entendida de outro modo. Tamanhos são a força do direito ao sigilo e a proteção a ele outorgada, que não se pode admitir a superação do óbice em vista de meras alegações, desguarnecidas da correspondente demonstração, de que não é possível acessar a prova pretendida por outros meios disponíveis.

A impossibilidade é de meios, significando que os existentes não se prestam ao fim de obter a prova pretendida. Por esse comando legal as pessoas legitimadas na lei para requerer a superação do sigilo de comunicações telefônicas de outrem devem demonstrar, fundamentadamente, a impossibilidade de obterem provas da autoria, já indiciária, pois a materialidade, como visto, constitui pressuposto à vulneração do direito de sigilo das comunicações telefônicas, por meios outros que não essa insurgência na privacidade do sujeito investigado.

A leitura conjunta dos arts. 1º e 2º da Lei 9.296/1996 esclarecem a natureza da interceptação telefônica, que não pode ser olvidada nem tampouco superestimada. Consiste num instrumento de busca da prova para a formação da culpa, por isso que, isoladamente, não prova coisa alguma, não passando de mero meio de acesso à prova. O que pretende a mens legis é que por meio da interceptação telefônica torne-se possível encontrar diversos elementos relacionados à prática do crime, mas ela mesma não é suficiente para provar nem o crime nem sua autoria.

O Código de Processo Penal italiano, fonte de inspiração do legislador brasileiro quanto à matéria, muito apropriadamente aloca a interceptação de comunicações telefônicas ao lado da inspeção judicial, da busca e apreensão e do seqüestro, disciplinando-a no Livro III, que dispõe sobre as provas, Título III, “dos meios de busca da prova”, Capítulo IV, “interceptação de conversações ou comunicações”, arts. 266 a 271,([9]) que dispõem:


Capo IV: INTERCETTAZIONI DI CONVERSAZIONI O COMUNICAZIONI

Art. 266 – Limiti di ammissibilità –

1. L’intercettazione di conversazioni o comunicazioni telefoniche e di altre forme di telecomunicazione è consentita nei procedimenti relativi ai seguenti reati:

a – delitti non colposi per i quali è prevista la pena dell’ergastolo o della reclusione superiore nel massimo a cinque anni determinata a norma dell’articolo 4;

b – delitti contro la pubblica amministrazione per i quali è prevista la pena della reclusione non inferiore nel massimo a cinque anni determinata a norma dell’articolo 4;

c – delitti concernenti sostanze stupefacenti o psicotrope;

d – delitti concernenti le armi e le sostanze esplosive;

e – delitti di contrabbando;

f – reati di ingiuria, minaccia, usura, abusiva attività finanziaria, molestia o disturbo alle persone col mezzo del telefono (1).

2. Negli stessi casi è consentita l’intercettazione di comunicazioni tra presenti. Tuttavia, qualora queste avvengano nei luoghi indicati dall’articolo 614 del codice penale, l’intercettazione è consentita solo se vi è fondato motivo di ritenere che ivi si stia svolgendo l’attività criminosa.

(1) Lettera così modificata dall’art. 8, comma 1, L. 7 marzo 1996, n. 108.

Art. 266 bis – Intercettazioni di comunicazioni informatiche o telematiche –

Nei procedimenti relativi ai reati indicati nell’articolo 266, nonchè a quelli commessi mediante l’impiego di tecnologie informatiche o telematiche, è consentita l’intercettazione del flusso di comunicazioni relativo a sistemi informatici o telematici ovvero intercorrente tra più sistemi (1).

(1) Articolo aggiunto dall’art. 11, L. 23 dicembre 1993, n. 547.

Art. 267 – Presupposti e forme del provvedimento –

1. Il pubblico ministero richiede al giudice per le indagini preliminari l’autorizzazione a disporre le operazioni previste dall’articolo 266. L’autorizzazione è data con decreto motivato quando vi sono gravi indizi di reato e l’intercettazione è assolutamente indispensabile ai fini della prosecuzione delle indagini.

2. Nei casi di urgenza, quando vi è fondato motivo di ritenere che dal ritardo possa derivare grave pregiudizio alle indagini, il pubblico ministero dispone l’intercettazione con decreto motivato, che va comunicato immediatamente e comunque non oltre le ventiquattro ore al giudice indicato nel comma 1. Il giudice, entro quarantotto ore dal provvedimento, decide sulla convalida con decreto motivato. Se il decreto del pubblico ministero non viene convalidato nel termine stabilito, l’intercettazione non può essere proseguita e i risultati di essa non possono essere utilizzati.


3. Il decreto del pubblico ministero che dispone l’intercettazione indica le modalità e la durata delle operazioni. Tale durata non può superare i quindici giorni, ma può essere prorogata dal giudice con decreto motivato per periodi successivi di quindici giorni, qualora permangano i presupposti indicati nel comma 1.

4. Il pubblico ministero procede alle operazioni personalmente ovvero avvalendosi di un ufficiale di polizia giudiziaria.

5. In apposito registro riservato tenuto nell’ufficio del pubblico ministero sono annotati, secondo un ordine cronologico, i decreti che dispongono, autorizzano, convalidano o prorogano le intercettazioni e, per ciascuna intercettazione, l’inizio e il termine delle operazioni.

Art. 268 – Esecuzione delle operazioni –

1. Le comunicazioni intercettate sono registrate e delle operazioni è redatto verbale.

2. Nel verbale è trascritto, anche sommariamente, il contenuto delle comunicazioni intercettate.

3. Le operazioni possono essere compiute esclusivamente per mezzo degli impianti installati nella procura della Repubblica. Tuttavia, quando tali impianti risultano insufficienti o inidonei e esistono eccezionali ragioni di urgenza, il pubblico ministero può disporre, con provvedimento motivato, il compimento delle operazioni mediante impianti di pubblico servizio o in dotazione alla polizia giudiziaria.

3-bis. Quando si procede a intercettazione di comunicazioni informatiche o telematiche, il pubblico ministero può disporre che le operazioni siano compiute anche mediante impianti appartenenti a privati (1).

4. I verbali e le registrazioni sono immediatamente trasmessi al pubblico ministero. Entro cinque giorni dalla conclusione delle operazioni, essi sono depositati in segreteria insieme ai decreti che hanno disposto, autorizzato, convalidato o prorogato l’intercettazione, rimandendovi per il tempo fissato dal pubblico ministero, salvo che il giudice non riconosca necessaria una proroga.

5. Se dal deposito può derivare un grave pregiudizio per le indagini, il giudice autorizza il pubblico ministero a ritardarlo non oltre la chiusura delle indagini preliminari.

6. Ai difensori delle parti è immediatamente dato avviso che, entro il termine fissato a norma dei commi 4 e 5, hanno facoltà di esaminare gli atti e ascoltare le registrazioni ovvero di prendere cognizione dei flussi di comunicazioni informatiche o telematiche. Scaduto il termine, il giudice dispone l’acquisizione delle conversazioni o dei flussi di comunicazioni informatiche o telematiche indicati dalle parti, che non appaiano manifestamente irrilevanti, procedendo anche di ufficio allo stralcio delle registrazioni e dei verbali di cui è vietata l’utilizzazione. Il pubblico ministero e i difensori hanno diritto di partecipare allo stralcio e sono avvisati almeno ventiquattro ore prima (2).

7. Il giudice dispone la trascrizione integrale delle registrazioni ovvero la stampa in forma intellegibile delle informazioni contenute nei flussi di comunicazioni informatiche o telematiche da acquisire, osservando le forme, i modi e le garanzie previsti per l’espletamento delle perizie. Le trascrizioni o le stampe sono inserite nel fascicolo per il dibattimento (2).

8. I difensori possono estrarre copia delle trascrizioni e fare eseguire la trasposizione della registrazione su nastro magnetico. In caso di intercettazione di flussi di comunicazioni informatiche o telematiche i difensori possono richiedere copia su idoneo supporto dei flussi intercettati, ovvero copia della stampa prevista dal comma 7 (1).


(1) Comma aggiunto dall’art. 12, L. 23 dicembre 1993, n. 547.

(1) Comma così sostituito dall’art. 12, L. 23 dicembre 1993, n. 547.

Art. 269 – Conservazione della documentazione –

1. I verbali e le registrazioni sono conservati integralmente presso il pubblico ministero che ha disposto l’intercettazione.

2. Salvo quanto previsto dall’articolo 271 comma 3, le registrazioni sono conservate fino alla sentenza non più soggetta a impugnazione. Tuttavia gli interessati, quando la documentazione non è necessaria per il procedimento, possono chiederne la distruzione, a tutela della riservatezza, al giudice che ha autorizzato o convalidato l’intercettazione. Il giudice decide in camera di consiglio a norma dell’articolo 127.

3. La distruzione, nei casi in cui è prevista, viene eseguita sotto controllo del giudice. Dell’operazione è redatto verbale.

Art. 270 – Utilizzazione in altri procedimenti –

1. I risultati delle intercettazioni non possono essere utilizzati in procedimenti diversi da quelli nei quali sono stati disposti, salvo che risultino indispensabili per l’accertamento di delitti per i quali è obbligatorio l’arresto in flagranza.

2. Ai fini della utilizzazione prevista dal comma 1, i verbali e le registrazioni delle intercettazioni sono depositati presso l’autorità competente per il diverso procedimento. Si applicano le disposizioni dell’articolo 268 commi 6, 7 e 8.

3. Il pubblico ministero e i difensori delle parti hanno altresì facoltà di esaminare i verbali e le registrazioni in precedenza depositati nel procedimento in cui le intercettazioni furono autorizzate.

Art. 271 – Divieti di utilizzazione –

1. I risultati delle intercettazioni non possono essere utilizzati qualora le stesse siano state eseguite fuori dei casi consentiti dalla legge o qualora non siano state osservate le disposizioni previste dagli articoli 267 e 268 commi 1 e 3.

2. Non possono essere utilizzate le intercettazioni relative a conversazioni o comunicazioni delle persone indicate nell’articolo 200 comma 1, quando hanno a oggetto fatti conosciuti per ragione del loro ministero, ufficio o professione, salvo che le stesse persone abbiano deposto sugli stessi fatti o li abbiano in altro modo divulgati.

3. In ogni stato e grado del processo il giudice dispone che la documentazione delle intercettazioni previste dai commi 1 e 2 sia distrutta, salvo che costituisca corpo del reato.

Assim como a inspeção, ou a busca e apreensão não constituem fonte nem meio nem objeto de prova, mas simples medidas cautelares cujo escopo é a obtenção da prova, que se materializa sobre elementos diversos, também a interceptação das comunicações telefônicas constitui mero instrumento de acesso à prova, rectius: ao objeto ou ao meio de prova.


Essa a razão por que a lei prefere outros meios para a realização da prova, pois o recurso à interceptação provoca uma ferida no coração dos direitos fundamentais, ferindo a intimidade da pessoa, que goza de proteção constitucional, por isso que se deve evitar ao máximo sua vulneração.

Isso implica que não basta ser a interceptação o meio mais fácil, mais célere ou mais econômico para a investigação alcançar os resultados colimados. É necessária a inexistência de outros meios, diz a lei. Portanto, o que se impõe é que não haja outra forma investigativa para chegar-se à prova desejada, de que são exemplos aquelas formas previstas no artigo 2º da Lei 9.034/1995. Somente ante a impossibilidade de se investigar a autoria por outros meios e métodos, ainda que mais onerosos e demorados, é que a interceptação das comunicações telefônicas pode ser deferida.

Desse modo a interceptação telefônica opera um instrumento guia capaz de conduzir à prova desejada, e em virtude de sua natureza ab probandi devem esgotar-se todos os meios disponíveis para chegar-se àquela prova antes de recorrer à interceptação telefônica, deixando a vulneração do direito fundamental do sigilo das comunicações como ultima ratio investiganionis.

De fato, o que prova a escuta telefônica? NADA. Nem mesmo a existência do diálogo, quando gravado, ou os crimes que se concretizam por simples atos-fala, v.g. o de usura, a injúria etc., podem ser afirmados com total certeza a partir do só registro remoto da conversa interceptada. Muito mais fraca ainda é qualquer ilação sobre os interlocutores. Aliás, atribuir a alguém a participação nos diálogos gravados afigura-se temerário e precipitado, dada a remoticidade inerente à realização da interceptação telefônica. Desacompanhada de perícia que ateste a autenticidade das gravações, tanto a respeito de sua integridade e incolumidade quanto no que concerne à identidade dos interlocutores, à interceptação não se pode dar nenhum valor probante no processo penal.

A escuta telefônica não prova coisa nenhuma a não ser a presunção de que há uma conversa. Presunção porque sendo remota a escuta isso já é suficiente para impregná-la de dúvidas e suspeitas quanto à sua autenticidade, já que os recursos da tecnologia digital hodierna permite, por exemplo, a partir de diversos elementos de áudio e com auxílio dos recursos da informática, montar – tanto criando quanto editando – uma conversa aparentemente realizada por via de telefone, com tal perfeição que até mesmo um perito pode ser colhido no engano de admiti-la como veraz, apesar de tal conversa ser, na verdade, inexistente, nunca ter acontecido no mundo dos fatos, porquanto não passa de pura construção artificial. Admitindo-se a existência da conversa e presumindo-se sua autenticidade, ainda assim não é possível afirmar com certeza qualquer informação a respeito dos interlocutores, muito menos no que atina com os fatos a que se referem no diálogo interceptado.

A interceptação não contém, em si mesma, nenhuma prova de quem são os protagonistas do diálogo interceptado. Isso tanto mais se afirma quando a interceptação é gravada para ser posteriormente utilizada em um processo penal, pois o juiz da causa não pode simplesmente acreditar na palavra de quem apresenta a gravação, pelo simples fato de que o apresentante tem interesse em que seja aceita sua palavra sobre a indicação que faz. Supondo-se, uma vez mais, que a autenticidade da conversa seja certa e conhecidos os interlocutores, ainda assim não é possível atribuir à interceptação foros de prova. Prova do quê? Do quanto falaram as partes?


Ora, falar não é crime. Ainda que o conteúdo dialógico atine à elaboração para a prática delitiva ou mesmo verse sobre crime já realizado, a interceptação não constitui prova do quanto verbalizado pelos interlocutores. Admitir o contrário significa, no primeiro caso, punir atos preparatórios ou a só cogitação, o que é proscrito em nosso ordenamento jurídico; no segundo, implicaria atribuir à interceptação telefônica, e mesmo assim, somente quando gravada, maior eficácia do que se outorga à confissão prestada perante o juiz. É patente o absurdo em ambas as hipóteses.

A interceptação não constitui evidência do fato delitivo nem da autoria no mundo empírico, a não ser por uma vontade de forçada, que faz do Leito de Procusto o instrumento falacioso mais pungente para a incriminação do indivíduo, a fim de condená-lo com base em meras suposições.

Por essas razões, é absolutamente correto afirmar que a interceptação cumpre uma finalidade: ensejar à autoridade investigadora acesso a provas que, de outro modo não lograria obter. Por isso sequer se exige seja registrada ou gravada. O importante, aquilo que se deve extrair de uma interceptação de conversa telefônica, é o acesso à prova pretendida. Quando a escuta malsina, v.g., o local onde se encontra aquele sobre quem pesam os indícios da autoria, ou onde se encontra a arma ou o produto do crime, a autoridade policial torna-se apta a colher tais evidências, rectius: as provas necessárias para certificar a autoria do delito. Porém, se ao dirigir-se para o local mencionado na conversa interceptada, nada for constatado, então o teor da conversa interceptada não se confirmou, de modo que a conversa em si, mesmo que gravada, não possui nenhum significado juridicamente relevante. Se a confirmação da autoria depende da colheita de provas e a interceptação conduziu à uma pista falsa, o que terá provado a escuta, rectius: a interceptação? E se tiver sido gravada, qual a serventia para a instrução criminal? Nenhuma, nada foi provado. Não há como superar esse fato, a menos que se abandone a realidade para julgar o discurso, ignorando a verdade para apoiar-se na hipóstases. Tal interceptação somente servirá para provocar uma indevida ilusão na mente do julgador. Por isso que deve ser expungida. Apenas as interceptações que conduzam efetivamente a alguma evidência da autoria de crime já conhecido é que podem ser admitidas no processo, e mesmo assim como adminículo à colheita da prova, pois a evidência, colhida a partir da interceptação útil, já encerra em si mesma prova suficiente, prescindindo da gravação da conversa interceptada e respectiva transcrição para reforçá-la, de modo que esta serve apenas para explicar como a prova foi conseguida. Nesses casos a prova consiste naquilo que foi recolhido a partir das informações obtidas nos diálogos interceptados, de modo que a interceptação, gravada ou não, perde sua utilidade, sua razão de ser.

Por outro lado, é evidente que a autoridade policial e seus agentes são interessados em sustentar o vigor, a autenticidade e a propriedade de suas investigações. Tanto é assim que chegam a cometer o excesso de interpretar de forma parcial e viciosa os diálogos interceptados para neles enxergar apenas o que possa conferir-lhes aparência de ilicitude, ligando-os às pessoas investigadas por mera suposição a fim de criar uma representação ilusória de materialidade e autoria. Tudo orientado pelo mais profundo delírio. HÉLIO SODRÉ,([10]) nos idos da década de 70, já alertava para os perigos decorrentes do interesse moral que a Polícia e seus membros têm na confirmação dos fatos tais como os apresentaram para a autoridade judicial. O que mudou de lá para cá? A atitude de muitos magistrados que, pela idade, sem a memória daqueles tempos e dos abusos históricos que as polícias de todos os tempos sempre cometeram, deixam-se iludir por elas motivados, ou inebriados, seja pelo desejo ideológico de eliminar toda criminalidade, custe o que custar, como se foram os paladinos da ordem, seja porque são invadidos por um sentimento de repugnância em relação a todos os que são acusados da prática delitiva, independentemente de serem ou não culpados, de efetivamente ter ou não ocorrido o fato criminoso. Essa a mudança que se observa.


Aí a demonstração de que a interceptação de comunicação telefônica, isoladamente, não constitui prova de absolutamente nada.

É por essas razões que o legislador pátrio elaborou a lei de interceptações telefônicas tendo em vista concedê-la como último meio investigativo, a ser manejado quando não houver outros ou quando os existentes não forem capazes de permitir chegar à solução do crime (certo e determinado) quanto à autoria. Para alcançar esse ponto, em que a interceptação possa ser autorizada, é de mister terem-se esgotado todos os meios investigatórios em busca da prova da autoria ou participação.

Por isso que a autoridade interessada em proceder à interceptação tem o dever inescapável demonstrar a inexistência de outros meios investigativos, ou, não sem boa dose de concessão, demonstrar pelo menos que os meios já empregados não foram bastantes para chegar ao resultado almejado e que só mediante a interceptação é que se conseguirá produzir a prova pretendida acerca da autoria ou participação de determinado sujeito (não de um terminal telefônico).

Aí o elo com o inciso I do artigo 2º. A lei exige indícios razoáveis de autoria e participação porque, esgotados os meios para afirmar a autoria já a esta altura indiciária, o único restante é a interceptação telefônica. Não se há de deferir a quebra de alguém porque dele se suspeita. Impõe-se haja mais elementos. A autoria ou a participação já deve ser conhecida, porém não comprovada, faltante apenas a prova cabal que a esclarece para a formação da culpa. Tudo na lei se encaixa com perfeição, basta a leitura atenta de seus dispositivos, sempre iluminados pelos conceitos e princípios de direito radicados na consciência dos que o devem aplicar. Até mesmo o prazo para a interceptação, não o prodigalizou o legislador e conquanto tenha admitido sua prorrogação, decerto esta não pode se tal que a torne indefinida, por prazo indeterminado. Não se admite longevidade à interceptação telefônica. Ou ela cumpre logo o papel a que se destina ante a ausência de outro meio de prova, ou força convir revelar-se, ela também, imprópria para a consecução da prova em mira, não sendo de admitir-se a vulneração do sigilo de alguém por meses a fio, sem que nada de útil seja encontrado.

Avulta, o interesse em monitorar terminais telefônicos sempre haverá por parte da autoridade policial. E isso está fora de questão, já que traduz, quiçá, o caminho mais curto e econômico para realização da averiguação de que está incumbida. É, sem dúvida, o meio mais fácil de investigar, pois a Polícia entra na vida, na intimidade da pessoa sem ser percebida. Porém, como sua realização se dá ao custo do sacrifício de um direito fundamental, a lei somente a autoriza em hipóteses excepcionais. Antes devem ser esgotados os demais meios de investigação, do que são exemplos aqueles previstos na Lei 9.034/1995.

C) Do artigo 4º, caput, da Lei 9.296/1996

Dispõe o indigitado preceito legal, ipsis litteris:


Art. 4º O pedido de interceptação de comunicação telefônica conterá a demonstração de que a sua realização é necessária à apuração de infração penal, com indicação dos meios a serem empregados.

Tal provisão legal estabelece mais dois requisitos formais em conexão com aqueles exigidos no artigo 2º, para que o juiz possa autorizar a interceptação telefônica, impondo que o pedido: 1) contenha a demonstração da necessidade de se quebrar o sigilo das comunicações telefônicas do investigado; 2) indique os meios a serem empregados na diligência.

O artigo 4º introduz ainda outro requisito, a saber: que no pedido de interceptação o interessado indique os meios a serem empregados na diligência.

Trata-se de norma que visa a consolidar o controle sobre o emprego da interceptação como meio investigativo e sua adequação aos fins a que se destina, precisamente para coibir abusos. É necessário que sejam identificados os meios a serem utilizados na diligência, isto é, o método, os critérios, a forma, os equipamentos enfim, a descrição de como a diligência se realizará.

Tal providência afigura-se imprescindível. A ordem legal é cogente, dela não podendo escusar-se quem quer que formule pedido de interceptação telefônica, sob pena de transpor para o âmbito da ilegalidade a própria interceptação. A ofensa é de gravidade robusta, pois a um só tempo ultraja a norma de regência e o princípio constitucional do devido processo legal, porquanto a cautela não terá atendido a todos os requisitos postos pelo ordenamento jurídico.

Ademais, a exigência legal rende deferência ao necessário controle judicial prévio sobre a real utilidade da interceptação telefônica, à guisa de não emascular indevida e inutilmente a intimidade alheia. Tudo milita em favor da proteção constitucional do direito fundamental ao sigilo, que somente pode ser afastada ante um rigoroso controle sobre as possibilidades de resultado útil da diligência. Exalta-se o direito individual ao sigilo das comunicações telefônicas. Nesse diapasão preleciona CÉSAR DARIO MARIANO DA SILVA, verbis:

Para que não haja indevida ou excessiva violação ao direito de intimidade da pessoa que terá as conversas telefônicas interceptadas, o Juiz de Direito que deferir fundamentadamente a medida deverá indicar quais os meios que serão utilizados, quem será o responsável por sua execução e os cuidados que deverão ser tomados (art. 5º).” ([11]) [g.n.]


Nada obstante, as interceptações têm sido requeridas e deferidas com total inobservância dos preceitos contidos no artigo 4º da lei 9.296/1996, por meio de pedidos e decisões autorizativas nas quais não se vislumbram uma só linha descritiva dos meios a serem empregados na diligência, como determina o dispositivo legal sob comento.

Esta ausência evidencia mais uma ilegalidade da própria autorização a inquinar de nulidade, tanto ela como a interceptação nela baseada, pois, como já se afirmou alhures nestas ensaio, a autorização judicial constitui um requisito necessário, mas não suficiente, para o procedimento de interceptação telefônica. Videlicet, não basta a autorização judicial. Conquanto necessária, isoladamente, a autorização judicial é insuficiente para conferir legalidade à interceptação, pois não supre a ausência dos demais pressupostos e requisitos cuja exigência deriva ex lege, de norma cogente (i.e., que vincula inclusive e principalmente o juiz). Se o magistrado autoriza a interceptação à revelia da presença dos pressupostos e requisitos legais, age contra legem, merecendo sua decisão revista e cassada.

D) Do artigo 5º da Lei 9.296/1996

Reza o artigo 5º da Lei 9.296/1996, in verbis:

Art. 5º A decisão será fundamentada, sob pena de nulidade, indicando também a forma de execução da diligência, que não poderá exceder o prazo de quinze dias, renovável por igual tempo uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova. [grifos, sublinhados e caixa alta por nossa conta]

Malgrado as críticas dirigidas à dicção do artigo, sua redação não oferece dificuldade à inteligência daqueles que conhecem o vernáculo.

A decisão será fundamentada. Que decisão? No contexto da lei, só há uma resposta possível: a decisão que autoriza e indica a forma de execução da diligência, é óbvio.

Os preceitos jurídicos expressam-se na língua portuguesa exatamente porque do contrário não poderiam ser obrigatórios. As regras gramaticais do vernáculo não deixam margem para dúvidas em casos quejandos.

Trata-se de período composto por subordinação. A oração principal é: A decisão será fundamentada.


Por outro lado, como a língua portuguesa não admite oração subordinada substantiva reduzida de gerúndio, mas tão somente reduzida de infinitivo, a oração indicando também a forma de execução da diligência pode referir-se (= qualificar) o termo decisão, ou ser eqüipolente à oração principal. No primeiro caso deve ser encarada como oração subordinada adjetiva restritiva reduzida de gerúndio, a restringir o termo decisão. No segundo, como oração coordenada à principal, reduzida de gerúndio.

A distinção, contudo, não produz diferenças semânticas apreciáveis. Como oração subordinada adjetiva, qualifica o termo decisão para exigir nesta um conteúdo específico, sem o qual ela padecerá inquinada de nulidade, a saber, a indicação da forma pela qual a diligência de interceptação deverá realizar-se. Já como oração coordenada reduzida de gerúndio é equivalente à forma desenvolvida: a decisão será fundamentada E INDICARÁ TAMBÉM A FORMA DE EXECUÇÃO DA DILIGÊNCIA. O sujeito na coordenada é também o substantivo decisão, e o comando nela expresso possui o mesmo valor semântico se fosse considerada como subordinada adjetiva, isto é, impõe, sob pena de nulidade, que o conteúdo da decisão compreenda a indicação da forma de realização da interceptação.

Por outras palavras, em ambos os casos verifica-se uma restrição imposta pelo legislador ao significado da palavra decisão.

Diante do contexto da lei sob análise, é evidente que a decisão é aquela que autoriza a interceptação telefônica. Mas não é só isso. A decisão deve possuir outro predicado que a distingue de uma decisão qualquer. É decisão duplamente qualificada. Não só autoriza como também indica a forma de execução da diligência. Este o conteúdo da decisão aludida no artigo 5º.

A expressão sob pena de nulidade exerce a função de aposto circunstancial consecutivo, tendo por fundamental o substantivo decisão, e foi intercalada entre a oração principal e a subordinada adjetiva restritiva ou coordenada, como preferir. Com efeito, a que se aplica a nulidade? À decisão. Que decisão? A decisão que autoriza e também indica a forma de execução da diligência.

Para ficar mais explícito que a cominação de nulidade aplica-se tanto à ausência de fundamentação quanto à de indicação da forma de execução da diligência, basta inverter a posição do aposto e verificar se há sacrifício de sentido: Sob pena de nulidade, a decisão será fundamentada e indicará também a forma de execução da diligência. Não há nenhuma alteração de sentido digna de observação. Nem poderia, pois o aposto tem por fundamental o termo decisão em toda sua extensão, vale dizer, tanto no que se refere ao predicativo que o qualifica – fundamentada – quanto à restrição estabelecida pela oração subordinada adjetiva, que faz as vezes de um adjunto adnominal restritivo a limitar o âmbito semântico do substantivo decisão, ou predicado da coordenada, que também constitui informação a respeito do sujeito sobre a qual opera o modificador circunstancial.


Fundamentada é atributo que qualifica decisão, tanto que exerce a função de predicativo na oração principal do comando legal. Já a indicação da forma de execução da diligência não constitui atributo da decisão, mas elemento dela, por isso que tanto pode ser expresso sob a forma de oração subordinada adjetiva restritiva, funcionando como adjunto adnominal, quanto como objeto direito do verbo indicará, na coordenada desenvolvida. No primeiro caso delimita o sentido do termo decisão, atribuindo-lhe uma segunda qualidade, além da de ser fundamentada. No segundo, afirma algo sobre a decisão, aquilo que ela deve conter, sob pena de nulidade: a indicação da forma de realização da diligência. Por outro falar, a idéia transmitida pelo enunciado legal implica em que a indicação da forma de execução da diligência é inerente à decisão, de modo que esta imprescinde daquela indicação. Ora, a cominação da pena de nulidade dirige-se à decisão, sem fragmentá-la, abrangendo-lhe os limites restritivos e o atributo que a qualifica.

O direito expressa-se em vernáculo exatamente porque o sentido de suas prescrições devem ser, primária e primeiramente, analisados conforme a textualidade, pois esta, observadas as rígidas regras gramaticais, é portadora de um discurso objetivo, suscetível de uma só interpretação por todos os que conhecem as leis da Gramática. Se da análise textual (gramatical) resultar um comando claro, sem ambigüidades, aí deve cessar todo o lavor interpretativo, salvo a interpretação sistemática, que tem por escopo a validação da norma no sistema, confrontada com outras normas da mesma categoria ou hierarquicamente superiores.

Portanto, se o artigo 5º prescreve a obrigação de indicar a forma como a diligência há de ser executada, é evidente que tal indicação deve conter-se nos fundamentos da decisão que autoriza a interceptação. Por outro falar, ao decidir o juiz deve explicitar os fundamentos por que o faz e indicar como a diligência realizar-se-á. A importância dessa indicação radica-se na necessidade de controle da diligência, inclusive pelo sujeito passivo, quando dela tomar conhecimento. A sanção para a inobservância do dever de fundamentar e indicar a forma de realização da interceptação é a nulidade da decisão e, conseguintemente, da própria interceptação, que não poderá ser utilizada no processo penal, nem as provas obtidas a partir dela, por aplicação do princípio geral que fulmina as provas alcançadas ou derivadas de meio ilícito.

O modo ou forma de realização da diligência deve guardar íntima correlação com os fundamentos da decisão. Na verdade exsurge como requisito complementar da decisão. Aqui já não se está mais na província dos requisitos do pedido, mas da decisão.

Nos fundamentos desta hão de ser identificados os pressupostos e os requisitos exigidos nos arts. 2º usque 4º da Lei 9.296/1996, os quais também devem de constar do pedido, bem como a indicação da forma como a diligência será executada.

Ao determinar a forma de execução da diligência o juiz decide sobre os meios a serem empregados, conforme tenham sido discriminados no pedido (art. 4º) da autoridade policial ou do Ministério Público, podendo acolhê-lo in totum ou não, ou até rejeitá-los, elegendo outros. De qualquer modo, a forma contém os meios, e ao defini-la o juiz vincula a atuação da autoridade que preside a diligência, a qual não poderá desviar-se da forma determinada sob pena de nulidade do ato.


A lei harmoniza seus preceitos, todos de ordem pública, por isso que de atendimento inarredável.

Além do comando que preordena ao juiz fundamentar a decisão em que autoriza a interceptação telefônica, indicando a forma de sua execução, o artigo 5º delimita o prazo da diligência em 15 (quinze dias), renovável por uma vez, comprovada a necessidade da diligência.

Destarte, a decisão que autoriza da interceptação telefônica deve indicar expressamente o prazo em que a diligência deve ser executada, findo o qual caduca a autorização judicial. Esse prazo não pode ser superior a 15 (quinze) dias porque este é o limite máximo de duração da interceptação telefônica estabelecido na lei. Admite-se que a decisão seja omissa neste aspecto, hipótese em que deverá ser observado o limite legal de 15 (quinze) dias, cuja expiração impõe a cessação da diligência, a menos que o juiz, instado para tanto antes do termo ad quem e comprovada a indispensabilidade do meio de prova perseguido, renove a autorização, isto é, profira nova decisão autorizativa prorrogando a diligência por igual prazo uma única vez.

A renovação ou prorrogação da diligência não é automática. Tampouco pode o juiz, ao decidir o pedido de interceptação telefônica, deferi-la e na decisão autorizar sua prorrogação automaticamente. A renovação da decisão há que ser requerida mediante representação ao juiz demonstrando a indispensabilidade do meio de prova colimado. Sem isso, inadmissível a prorrogação, de modo que a interceptação tornar-se-á ilícita.

Tão vigorosa é a proteção ao direito de sigilo da comunicações telefônicas que a lei imprescinde do controle judicial sobre a necessidade de sua violação para fins de investigação penal, mesmo quando se trata de renovação de autorização já concedida. Isso significa que do fato de o juiz entender presentes os pressupostos e satisfeitos os requisitos legais quando decidiu pela autorização primeva, não implica permaneçam atendidos para a renovação da autorização. Além do mais, a lei agrega um outro requisito: a indispensabilidade do meio de prova perseguido. Vale dizer, sobre demonstrar, no pedido de prorrogação da diligência, a presença dos pressupostos e requisitos legais previstos nos artigos 2º e 4º, o interessado na interceptação deverá comprovar a indispensabilidade do meio de prova que pretende obter a partir da interceptação telefônica, pois do contrário a renovação da autorização deverá ser negada.

A decisão que renova a autorização também deve atender aos requisitos legais previstos no artigo 5º, ou seja, deve indicar a forma de execução da diligência e os fundamentos da concessão, sob pena de nulidade.

Absolutamente errada tem sido a inteligência dos que entendem que a lei não limitou o número de vezes em que a interceptação pode ser autorizada. Ou desconhecem ou adrede profanam a língua portuguesa.


Novamente, a análise sintática, que se aprende ainda nos bancos do ensino médio, assegura que a renovação só pode conceder-se uma vez.

Com efeito, repita-se aqui o quanto prescreve o artigo 5º do sublinhando a parte final, in verbis:

Art. 5º A decisão será fundamentada, sob pena de nulidade, indicando também a forma de execução da diligência, que não poderá exceder o prazo de quinze dias, renovável por igual tempo uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova.

O que é renovável? Resposta: a (autorização para) execução da diligência. Então, dessume-se que o verbo está elíptico na parte final do texto legal, de modo que é lícito reescrevê-lo desenvolvendo a oração da seguinte maneira: a execução da diligência não poderá exceder o prazo de quinze dias; a execução da diligência é renovável por igual tempo uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova.

A primeira oração: a execução não poderá exceder o prazo de quinze dias, constitui oração subordinada adjetiva, introduzida pela conjunção integrante que, a qualificar e restringir o significado do termo diligência que aparece na oração imediatamente anterior. Quanto a isso não há dúvida.

A segunda oração: a execução da diligência é renovável por igual tempo uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova, merece análise mais detida, tem gerado entendimento equivocado do sentido semântico que é portadora. Trata-se de período composto por subordinação. Qual a oração principal? Resposta: a execussão da diligência é renovável por igual prazo uma vez. A oração comprovada a indispensabilidade do meio de prova classifica-se como subordinada adverbial condicional reduzida de particípio. De acordo com DOMINGOS PASCHOAL CEGALHA, oração reduzida é a que se apresenta sem conectivo e com o verbo numa forma nominal.([12]) Por isso a expressão uma vez constitui locução adverbial, pertence à oração principal, onde se liga ao adjetivo renovável para modificar-lhe o sentido, exercendo a função de adjunto adverbial de intensidade.([13])([14])

As orações subordinadas reduzidas distinguem-se das desenvolvidas exatamente nisso em que estas são introduzidas por conjunção ou locução conjuntiva, enquanto aquelas, não. As orações reduzidas não são introduzidas por conjunção nem por locução conjuntiva, e ainda apresentam o verbo numa das formas nominais: o infinitivo, o gerúndio, ou o particípio.([15])


É impossível considerar a locução adverbial uma vez, empregada no texto legal, como se fosse a locução conjuntiva uma vez que (equivalente a desde que), sem incorrer em grave erro, porque isso exigiria que a oração subordinada por ela introduzida estivesse desenvolvida, e não sob a forma reduzida, sendo ainda de bom vernáculo que viesse separada da oração principal por meio de vírgula. Tal atribuição de sentido exigiria ainda que o verbo estivesse numa das formas finitas do subjuntivo, e não apenas na forma nominal que aparece no texto da lei. A oração teria de assumir uma forma semelhante a: a execução da diligência é renovável, uma vez que se comprove a indispensabilidade do meio de prova, ou: a execução da diligência é renovável, uma vez que seja comprovada a indispensabilidade do meio de prova. A não ser assim, não é possível atribuir valor de conjunção à expressão uma vez.

Aliás, a locução uma vez é dicionarizada, e significa certa vez. A atribuição de valor conjuntivo a essa locução deve ser feita com muito cuidado para evitar polissemias a gerar confusão e interpretações díspares, pois conforme o modo do verbo empregado tanto na oração principal quanto na subordinada, poderá introduzir oração subordinada temporal, causal ou condicional. A interpretação passaria a ficar condicionada ainda ao contexto, sendo de bom alvitre evitar tais ocorrências para não imolar a objetividade do texto, já que ele encerra um preceito legal restritivo de direitos.

Por outro lado, a locução conjuntiva uma vez que apresenta manifesta e reconhecida polissemia. Tanto pode ser locução conjuntiva causal quanto condicional. No primeiro caso a prótase exige o verbo no indicativo. No segundo, o verbo da prótase deverá estar no subjuntivo. Isso indica a impossibilidade de admiti-la sincopada, com elipse do relativo que, dada à ambigüidade que disso adviria, não sendo possível optar por uma ou outra hipótese, já que ambas seriam perfeitamente válidas.

Além disso, as orações subordinadas adverbiais podem apresentar-se sob a forma desenvolvida ou reduzida. Na primeira o verbo principal ou auxiliar deve, necessariamente, estar numa das formas finitas (indicativo ou subjuntivo). Na segunda, o verbo estará numa das formas nominais (infinitivo, particípio ou gerúndio).

No texto legal o verbo comprovada aparece no particípio, que é forma nominal. Para que se pudesse considerar a expressão uma vez como locução conjuntiva sincopada, seria imprescindível reputar elíptico um dos verbos auxiliares seja ou esteja ou fique. Ora, o erro seria por demais grosseiro: síncope da locução conjuntiva, o que não constitui o melhor manejo do vernáculo, pois toda locução caracteriza-se pela reunião de palavras que possuem significados próprios quando articuladas isoladamente, isto é, a locução constitui-se de um conjunto de palavras que assume significado e função sintática próprios quando articuladas em conjunto, ligadas umas às outras, de modo que sincopá-las caracteriza erronia grave. Não bastara isso, a elipse do verbo auxiliar agrava o erro. Haveria numa só oração a síncope da locução conjuntiva (com manifesta inobservância que as conjunções são invariáveis, o mesmo ocorrendo com as ditas locuções conjuntivas) e a elipse do verbo auxiliar, com total prejuízo para a comunicação do preceito legal, já que não será possível estabelecer qual o modo em que o verbo auxiliar deva exprimir-se, dependendo disso a extração do sentido semântico da oração.


As regras do vernáculo, porém, demonstram que esse não é o caso do comando inscrito no artigo 5º da Lei 9.296/1996. Não houve síncope da locução conjuntiva nem elipse do verbo auxiliar. A oração comprovada a indispensabilidade do meio de prova é subordinada adverbial condicional reduzida de particípio. Já a expressão uma vez constitui adjunto adverbial do adjetivo renovável, denotando que a execução da diligência, rectius: a autorização para ela, só poderá ser renovada uma única vez pelo mesmo prazo de 15 (quinze) dias.

Ao legislador não é lícito socorrer-se de licenças poéticas ao formular a norma jurídica, as quais só se deferem quando a palavra torna-se objeto da arte, e tal como massa de modelar, não se submete a qualquer limitação. O discurso objetivo, contudo, como ocorre com a lei escrita, deve observar o bom e direto vernáculo. Tanto é assim que a Lei Complementar 98/1995, cujo destinatário é o legislador, dispõe, ad litteram:

Art. 11. As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas:

I – para a obtenção de clareza:

a) usar as palavras e as expressões em seu sentido comum, salvo quando a norma versar sobre assunto técnico, hipótese em que se empregará a nomenclatura própria da área em que se esteja legislando;

b) usar frases curtas e concisas;

c) construir as orações na ordem direta, evitando preciosismo, neologismo e adjetivações dispensáveis;

d) buscar a uniformidade do tempo verbal em todo o texto das normas legais, dando preferência ao tempo presente ou ao futuro simples do presente;

e) usar os recursos de pontuação de forma judiciosa, evitando os abusos de caráter estilístico;

II – para a obtenção de precisão:

a) articular a linguagem, técnica ou comum, de modo a ensejar perfeita compreensão do objetivo da lei e a permitir que seu texto evidencie com clareza o conteúdo e o alcance que o legislador pretende dar à norma;

b) expressar a idéia, quando repetida no texto, por meio das mesmas palavras, evitando o emprego de sinonímia com propósito meramente estilístico;

c) evitar o emprego de expressão ou palavra que confira duplo sentido ao texto;

d) escolher termos que tenham o mesmo sentido e significado na maior parte do território nacional, evitando o uso de ex-pressões locais ou regionais;


O dispositivo acima lança as diretrizes interpretativas, quando menos suas primícias, orientando o intérprete pelo caminho que deve seguir na busca de compreender o sentido e o alcance de uma lei, visto como fluindo naturalmente do texto legal.

No lavor de interpretar a lei não se pode partir da presunção do erro do legislador. Ao contrário, deve presumir-se que o art. 5º da Lei 9.296/1996 foi redigido com observância aos preceitos do art. 11 da LC 98/1995. Isso implica inexoravelmente em que a expressão style=”mso-bidi-font-weight: normal”> style=”mso-bidi-font-style: normal”>uma vez não funciona como locução conjuntiva, mas sim como adjunto adverbial de intensidade do adjetivo style=”mso-bidi-font-style: normal”>renovável. Do contrário seria forçoso reconhecer que o legislador, a despeito do art. 11 da LC 98/1995, ter-se-ia louvado em uma linguagem arrevesada, obtusa, de difícil compreensão, impregnada de erros gramaticais, impedindo que o texto evidencie com clareza o conteúdo e o alcance pretendidos.

Por outro lado, também não é lícito ao intérprete que deve aplicar a norma subverter a clareza do seu enunciado forçando uma compreensão apoiada em heresias gramaticais que profanam o vernáculo, ainda mais quando dessa interpretação herética redunda violência sem par e indesejada ao texto constitucional, garantidor do direito fundamental ao sigilo. Os que assim agem, ou renunciaram à vocação para a judicatura, ou simplesmente são ignorantes no que concerne à língua que falam e escrevem, e nesse caso é escusável seu erro, mas nem tanto o de nele persistirem porque decerto não desconhecem o princípio básico de que o direito exprime seus comandos em vernáculo utilizando todas as técnicas gramaticais que a língua oferece exatamente para conferir o máximo de objetividade e inteligibilidade a suas prescrições, dado que se dirigem a todos, indiscriminadamente.

Se se está conteste em que a primeira abordagem interpretativa da norma jurídica há de ser a gramatical, e somente quando esta resulte em obscuridade, antinomia, anomalia jurídica, ambigüidade ou redunde em flagrante absurdo, é que se torna lícito o recurso a outros métodos de hermenêutica, então, força convir, tudo o que se decidiu até hoje a respeito do prazo de validade para a interceptação telefônica está errado. Esse prazo pode ser renovado, sim, por igual período de 15 (quinze) dias, mas apenas uma vez. Esta é uma verdade inabalável, a não ser por pura arbitrariedade. Mas aí já não se poderá mais falar em Justiça com letras maiúsculas.

Não há nenhum demérito em reconhecer um equívoco, a menos que a vaidade constitua um obstáculo intransponível à serenidade do aprendizado, louvando-se no fato de estar investido em poder e autoridade, o que torna mais fácil impor os próprios erros do que admiti-los e deles se escusar, envidando esforços para promover-lhes a devida correção. Não é demais rememorar, o excelso Supremo Tribunal Federal deu o mais contundente exemplo de que a humildade de reconhecer um erro e corrigi-lo não afeta a magnanimidade da Corte nem sua autoridade, na oportunidade em que o Plenário julgou o HC 82.959/SP e, revendo o entendimento anteriormente adotado, declarou style=”mso-bidi-font-style: normal”>incidenter tantum a inconstitucionalidade do § 1º, do art. 2º, da Lei 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos). A correção exegética do art. 5º da Lei 9.296/1996 implica reconhecer que não pode ter duração superior a 15 (quinze) dias, podendo esse prazo ser renovado uma vez, desde que comprovada a necessidade do meio de prova. Tal interpretação corrigida deve produzir efeitos style=”mso-bidi-font-style: normal”>ex nunc, de modo a alcançar todas as interceptações pendentes e aquelas cuja validez esteja style=”mso-bidi-font-style: normal”>sub judice, para as quais ainda não há decisão definitiva transitada em julgado, na esteira do que fez o STF em relação à Lei dos Crimes Hediondos. Esta a solução mais consentânea com o compromisso ético de bem aplicar a vontade da lei.


Ainda que se opusesse a essa interpretação puramente literal – gramatical – da norma contida na parte final do artigo 5º, rejeitando o edito de Paulus cum in verbis nulla ambiguitas est, non debet admitti voluntatis quaestio([16]) em que se funda, ainda assim é possível afirmar o equívoco da exegese vigente.

Tanto a doutrina quanto os pretórios do País são contestes e uníssonos em que todo lavor interpretativo deve partir da literalidade do texto legal. Destarte, a análise sintática feita linhas acima acerca da parte final do preceito que se contém no artigo 5º da Lei 9.296/1996, a respeito do prazo de vigência da interceptação telefônica, constitui, no mínimo, o ponto de partida da tarefa hermenêutica por que se busca o sentido pleno da norma.

Em abono da interpretação literal acorre a regra hermenêutica segundo a qual o ordenamento não pode conter palavras supérfluas.([17]) Por outro falar, antes de considerar as palavras usadas pelo legislador como meramente expletivas, deve-se perquirir mais profundamente se não há um sentido para elas tal como introduzidas no preceito jurídico. Aceite este regramento, não seria crível que o intérprete, ao deparar com a norma jurídica, presumisse o excepcional desapreço do legislador pela correção vernacular com que exprime o comando jurídico. Erro técnico pode até ocorrer, mas erro de palavras, erro de sintaxe. Pensar diversamente seria o fim do mundo, pois a lei só pode espargir a obrigatoriedade do preceito que transporta se estiver na forma escrita. Mas se se admite que o legislador não saiba sequer escrever o vernáculo, então não como perceber o vínculo criado pela norma. Portanto, admitindo que na lei não se encontram palavras desnecessárias, e que o legislador conhece as regras gramaticais, resta reforçada a conclusão de que a locução uma vez constitui locução adverbial que se liga ao adjetivo renovável constante do texto legal, e não locução conjuntiva a introduzir a oração subordinada adverbial condicional que se lhe segue, porquanto isso implicaria, forçosamente, reconhecer o duplo erro do legislador: o primeiro, de sintaxe, porquanto teria empregado locução conjuntiva para introduzir oração subordinada adverbial condicional reduzida de particípio, contrariando as regras gramaticais do vernáculo; o segundo, de técnica jurídica, haja vista que o emprego da locução conjuntiva, quando dela o vernáculo não só prescinde, como repudia, torna-a uma superfetação repugnante.

Interpretar uma norma jurídica é revelar o verdadeiro significado do preceito que transporta. A exposição da norma em vernáculo impõe que se descubra seu significado a partir da análise sintática e da semântica de seus termos. Uma vez esquadrinhada pelas técnicas da gramática, se ainda assim sobejar dúvida, será lícito recorrer aos diversos critérios hermenêuticos à guisa de descobrir o conteúdo, o sentido e o alcance dos preceitos que nela se aninham. Mas se da interpretação literal resulta um comando claro, inteligível, sem ambigüidades, incapaz de suscitar dúvidas, qualquer lavor interpretativo não passará de pura excrescência.

A regra talhada por Celsus: scire leges non hoc est verba earum tenere, sed vim ac potestatem,([18]) e que tem sido utilizada indevidamente como a escora pelos detratores da interpretação literal, no caso da parte final do dispositivo legal sub examine aplica-se e em nada contraria o sentido que se obtém do texto legal a partir da interpretação gramatical. Ao contrário, a força preceptiva que emana do enunciado legal, capaz de harmonizá-lo com o espírito subjacente que deve conciliar-se por sua vez com a proteção constitucional outorgada ao direito de sigilo das comunicações telefônicas, não pode ser outra senão aquela decorrente da interpretação gramatical.


Com efeito, reescrevendo todo o enunciado legal na forma direta, com o aposto circunstancial em primeiro lugar, advém: Sob pena de nulidade, a decisão que também indicará a forma de execução da diligência, que não poderá exceder o prazo de quinze dias, renovável uma vez por igual tempo, comprovada a indispensabilidade do meio de prova, será fundamentada.

Eis aí o preceito do artigo 5º, límpido, reescrito, o qual se sujeita a todo e qualquer critério de interpretação que se queira adotar, pois sempre produzirá o mesmo resultado, qual aquele que emana da só leitura do texto.

Avulta, a Lei 9.296/1996 insere-se num contexto excepcional. Videlicet, é portadora de disciplina que excepciona a proteção constitucional outorgada ao sigilo das comunicações telefônicas do indivíduo. Já por aí deflui o caráter restritivo da norma, o que conduz a uma interpretação o mais restrita possível, sob pena de se prodigalizar a exceção transformando-a em regra, quando não aluir totalmente a garantia da proteção prevista na Carta da República tornando-a absolutamente ociosa. Evidente que uma tal interpretação é inadmissível, pois levada às últimas conseqüências ter-se-ia na prática a derrogação de preceito protetivo constitucional por lei infraconstitucional. Infere-se que interpretação desse jaez deve ser afastada.

Por outro lado, extrai-se da mens legis que a concessão de interceptar as comunicações telefônicas constitui, em si mesma, uma situação de anomalia, por isso que caracterizada como última forma para a busca do meio de prova, devendo-se esgotar todos os demais disponíveis antes de proceder à autorização que fere o direito personalíssimo da intimidade do indivíduo. E isso tem sua razão de ser. Ao deferir a quebra do sigilo das comunicações telefônicas de um sujeito, porque toda comunicação possui uma natureza binária, acaba-se por transgredir também o sigilo dos interlocutores do sujeito investigado, ainda que em face deles nada haja que justificasse a quebra de seus sigilos. Tal violação ocorre como nefando corolário da autorização de interceptação telefônica deferida em face de outra pessoa. A odiosidade dessa intromissão do Estado a eviscerar a vida íntima de outrem, sobre quem não paira nenhuma suspeita, muito menos indícios razoáveis de autoria de um fato delitivo sob investigação, por ser conseqüência inevitável da diligência autorizada em face do interlocutor investigado, também constitui demonstrativo da exigência de se restringir ao máximo, principalmente em termos temporais, a coarctação do direito de intimidade consistente no sigilo das comunicações telefônicas.

Não vige e não se aplica, como já afirmado alhures, em sede de interpretação telefônica, o princípio (não menos odioso e sem origem definida se não que de algum espírito despótico e infame) in dubio pro societate. A lei concede em prol da sociedade a busca do meio de prova desde que atendidas as condições necessárias que estabelece. Nesse sentido, uma vez que tais condições estejam satisfeitas, a lei transfere seus pesos para o prato que representa a sociedade. Mas seria exorbitar de suas intenções pretender que tal transferência seja por prazo indeterminado, porquanto isso constituiria um atalho para obviar a proteção ao direito fundamental do sigilo, se não, como demonstrado atrás, um viés para simplesmente eliminá-lo do cenário jurídico protegido pela Constituição. Numa palavra, o aniquilamento da garantia constitucional do sigilo das comunicações telefônicas e, conseguintemente, a derrogação do preceito constitucional na prática, seria apenas uma questão de oportunidade, e operar-se-ia por um juiz no aplicar regra infraconstitucional.


Obviamente também essa interpretação distancia-se do espírito que preside a Lei 9.296/1996.

A harmonização dos interesses da sociedade, representada pelo Estado-acusador ou pelo Estado-investigador (polícia), com os interesses individuais, fundada no princípio da proporcionalidade expressamente autorizado pela Magna Lex quando remete a disciplina da matéria para a lei infraconstitucional, não se compadece com a longevidade do prazo de interceptação telefônica. Ao revés, a lei concede ao Estado o prazo de 15 (quinze) dias para invadir a privacidade individual em busca do meio de prova pretendido. Caso essa pretensão não seja alcançada, a lei concede ao Estado outro prazo igual. Mas não seria crível que lho concedesse inúmeras e sucessivas vezes, sem limite, exterminando simplesmente com a privacidade do indivíduo e de todos os que com ele mantêm conversas telefônicas, sem um limite temporal predefinido.

Tanto à idéia de direito quanto à de restrição de direito são infensas à de ausência de limites. Por outro falar, é inerente à noção de direito a correlata de limite. O direito traça os contrafortes da liberdade, portanto, o seu conceito está vocacionado à fixação de limites, inclusive de limites temporais.

Infere-se, qualquer que seja o caminho escolhido, sempre levará à ilação de que constitui um absurdo, um acinte ao direito, admitir que a interceptação telefônica possa eternizar-se em renovações da autorização que a concedeu. A interceptação telefônica tem sim, importância para a busca do meio de prova almejado, mas importância relativa, delimitada pelos pressupostos e requisitos legais, entre os quais a delimitação do tempo ao prazo de 15 (quinze) dias, renovável uma vez por igual período, desde que demonstrada a necessidade da diligência. Resulta dessa análise a necessidade de se rever a jurisprudência sobre a matéria, porquanto compreendeu-se a expressão style=”mso-bidi-font-weight: normal”> style=”mso-bidi-font-style: normal”>uma vez, contida na parte final do enunciado do art. 5º, como locução conjuntiva da oração subordinada adverbial, no que incidiu em manifesto style=”mso-bidi-font-weight: normal”> style=”mso-bidi-font-style: normal”>error.

Dado que o prazo da interceptação telefônica só pode ser renovado uma vez, então toda autorização e interceptação que ultrapassem de 30 (trinta) dias são ilícitas, não havendo sequer cogitar de outros fundamentos, contaminando toda a prova obtida fora daquele lapso.

Como visto, não basta afirmar que a interpretação gramatical não se aplica porque não é a única cabente na busca do sentido e do alcance da norma jurídica. Tal afirmação, para ser convincente e granjear deferência, deve indicar o critério hermenêutico adotado e demonstrar como, por meio dele, chega-se ao sentido e alcance da norma, exatamente como se faz aqui a respeito da interpretação gramatical. Do contrário, aquela afirmação constitui-se em argumento style=”mso-bidi-font-style: normal”>ad verecundiam (argumento de autoridade), que não sendo capaz de persuadir, é imposto pela força (autoridade da toga), divorciando-se da Justiça e não passando de pura arbitrariedade. Se o único argumento agitado em apoio à inteligência de serem inumeráveis as renovações das interceptações telefônicas era a consideração da expressão style=”mso-bidi-font-weight: normal”> style=”mso-bidi-font-style: normal”>uma vez, presente no texto legal, como locução conjuntiva, então, demonstrado o erro em que incide – erro de interpretação de texto, erro de aplicação das regras gramaticais do vernáculo, style=”mso-bidi-font-weight: normal”>ERRO GROSSEIRO que só cometem os semi-analfabetos –, é forçoso abandonar tal exegese e em seu luar adotar a interpretação correta, conforme as regras gramaticais da língua portuguesa. Afinal, os juristas não são analfabetos, e como o direito se expressa por meio da palavra escrita, é de mister aprofundarem seus conhecimentos em lingüística.


([1]) BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Bauru: Edipro, 1993. p. 38.

([2]) GRECO FILHO, Vicente. Interceptação telefônica. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 13-14.

([3]) Trata-se de enunciado condicional. A forma lógica reduzida desse enunciado é: ~q → ~p (leia-se, se não-q, então não-p), em que q e p são substituídos pela dicção constante do texto legal, sendo q = há indícios de autoria ou participação em infração penal, e p = a interceptação telefônica é admitida; q e p podem ser substituídos por quaisquer enunciados em que q atue como condição necessária à ocorrência de p, como neste exemplo: se não for indicado pelo Presidente da República, então não será Ministro do STJ; se não for aprovado no concurso para ingresso na magistratura federal, então não será Juiz Federal. Tanto estes enunciados quanto o texto da lei sub examine apresentam a mesma forma: se não-p, então não-q (~q → ~p), característica das proposições lógicas que exprimem q como condição necessária para ocorrer p. Ver por todos SALMOM, Wesley C. Lógica. 3. ed. Rio de Janeiro: Prentice Hall do Brasil, 1993. p. 24.

([4]) Essa expressão deve ser lida: “se não-q, então não-p” ou “se ocorre não-q, então ocorre não-p”.

([5]) SILVEIRA, Alípio. Hermenêutica no direito brasileiro. Vol. II. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1968. p. 73.

([6]) NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 2ª ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2006, p. 125.

([7]) GRDCO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 81.

([8]) RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2006. p. 67.

([9]) Titolo III: MEZZI DI RICERCA DELLA PROVA – Capo I: ISPEZIONI (arts. 244-246); Capo II: PERQUISIZIONI (arts. 247-252); Capo III: SEQUESTRI (arts. 253-265); Capo IV: INTERCETTAZIONI DI CONVERSAZIONI O COMUNICAZIONI (arts. 266-271).

([10]) Op. cit. passim.

([11]) SILVA, César Dario Mariano da. Provas ilícitas. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 51.

([12]) CEGALHA, Domingos Paschoal. Novíssima gramática da língua portuguesa.46. ed. São Paulo: Cia Ed. Nacional, 2005. p. 408.

([13]) ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Gramática metódica da língua portuguesa. 39 ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 531 § 905 et passim. O citado professor ensina como identificar as orações que compõem um período.

([14]) Esta a forma direta da oração principal: a decisão é renovável uma vez por igual prazo.

([15]) “Estudamos até aqui as orações subordinadas encabeçadas por nexo subordinativo (pronomes relativos ou conjunções subordinativas), com o verbo sempre numa forma finita (do indicativo ou do subjuntivo). Vejamos agora outro tipo de oração subordinada – a reduzida –, isto é, a oração dependente que não se inicia por relativo nem por conjunção subordinativa, e que tem o verbo numa das formas nominais – o infinitivo, o gerúndio, ou o partícipío.” CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 2. ed. 45. imp. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p. 594. Consultar ainda: LUFT, Celso Pedro. Moderna gramática brasileira. São Paulo: Ed. Globo, 2002; KURY, Adriano da Gama. Novas lições de análise sintática. São Paulo: Ed. Ática, 2004.

([16]) Digesto 32.25.1, Paulus 1 ad ner. Tradução livre: Quando não há ambigüidade nas palavras, não se deve admitir pesquisa da vontade.

([17]) FRANÇA, R. Limongi. Hermenêutica jurídica. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 23.

([18]) Digesto 1.3.17, Celsus 26 dig. Scire leges non hoc est verba earum tenere, sed vim ac potestatem. Tradução livre: Conhecer as leis não é compreender suas palavras, mas a sua força.

Autores

  • Brave

    é advogado, diretor do Departamento de Prerrogativas da Federação das Associações dos Advogados do Estado de São Paulo (Fadesp) e mestre em Direito pela USP.

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