Deficientes carentes

Passe livre em transporte interestadual é mantido para deficientes

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11 de maio de 2008, 0h01

A Lei federal 8.899/94, que concede passe livre no transporte público interestadual para deficientes carentes, foi declarada constitucional pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal. A Ação Direta de Inconstitucionalidade que contestou a lei foi apresentada pela Associação Brasileira das Empresas de Transporte Interestadual, Intermunicipal e Internacional de Passageiros (Abrati).

Ela alegou que, ao instituir o passe livre, a lei não indicou fonte correspondente de custeio, o que considerou um verdadeiro confisco por parte do estado no domínio privado, e menosprezou o princípio da livre iniciativa, em desrespeito à Constituição.

A associação afirmou, ainda, que o transporte rodoviário gratuito tem natureza jurídica de serviço assistencial, incidindo sobre ele as regras de custeio contidas no artigo 195 da Constituição, que obriga a indicação da origem dos recursos necessários ao seu desenvolvimento.

A relatora da ADI, ministra Cármen Lúcia, afirmou que o artigo 170, caput, da Constituição, dispõe ser a ordem econômica fundada na valorização do trabalho e na livre iniciativa para o fim de assegurar a todos a existência digna. Para a ministra, não se trata da criação de um benefício sem fonte de custeio, pois o artigo 195, parágrafo 5º, da Constituição, refere-se a benefícios com ônus direto a ser suportado pelos cofres públicos.

“A busca de igualdade de oportunidades e possibilidades de humanização das relações sociais determina a adoção de políticas públicas a fim de que se amenizem os efeitos das carências de seus portadores”, ressaltou a ministra ao justificar a manutenção do passe livre.

“Toda sociedade, não apenas o estado, tem obrigação de adotar medidas e providências para incluir todos esses portadores no que seja compatível com suas condições”, destacou a ministra. Ela lembrou as providências que já foram tomadas pela sociedade e pelo estado para integrar o deficiente à sociedade, como: reserva de vagas em estacionamentos públicos, isenção de tributos para aquisição de veículos, prioridade no atendimento em órgãos públicos, entre outras.

Cármen Lúcia lembrou também que o Brasil assinou, em março de 2007, na sede da ONU, em Nova York, uma convenção sobre os direitos dos deficientes, bem como o seu protocolo que se encontra em tramitação no Congresso. Nesse sentido, ela considera que os países que vierem a ratificar esse tratado “têm a obrigatoriedade de implementar medidas para dar efetividade ao que foi ajustado”, ao citar a Lei 8.899.

“Foi com vista aos direitos fundamentais dessas pessoas que o legislador brasileiro elaborou a Lei 8.899/94”, ao afirmar não haver contrariedade entre o que foi constitucionalmente estabelecido e a norma legal questionada.

A relatora também rebateu a alegação da Abrati de que o ônus que as passagens dos portadores de deficiência (dois lugares em cada transporte) teriam que ser assumidos pelas empresas transportadoras. Segundo Cármen Lúcia, apresentaram apenas estimativas de cálculo de um possível prejuízo. “Falharam na matemática, quando não fosse bastante falhar no Direito. Ademais, os ônus decorrentes de qualquer prestação de serviço público são repassados aos usuários pagantes, e não suportados pelas empresas como pretendem fazer crer”.

Dessa forma, ficou garantido o passe livre para os deficientes carentes nos moldes da Lei 8.899/94.

Leia o voto da ministra Cármen Lúcia

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 2.649-6 DISTRITO FEDERAL

RELATORA: MIN. CÁRMEN LÚCIA

REQUERENTE: ABRATI- ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS EMPRESAS DE TRANSPORTE INTERESTADUAL, INTERMUNICIPAL E INTERNACIONAL DE PASSAGEIROS

ADVOGADO: FLÁVIO BOTELHO MALDONADO

REQUERIDO: PRESIDENTE DA REPÚBLICA

REQUERIDO: CONGRESSO NACIONAL

R E L A T Ó R I O

A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA – (Relatora):

1. A Associação Brasileira das Empresas de Transporte Rodoviário Intermunicipal, Interestadual e Internacional de Passageiros – ABRATI ajuíza a presente ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de medida cautelar, contra a Lei nacional n. 8.899, de 29 de junho de 1994, que concede passe livre no sistema de transporte coletivo interestadual às pessoas portadoras de deficiência.

A norma questionada é de 1994. A presente argüição deu-se em 13.5.2002.

Reza a norma questionada:

“Art. 1º É concedido passe livre às pessoas portadoras de deficiência, comprovadamente carentes, no sistema de transporte coletivo interestadual.

Art. 2º O Poder Executivo regulamentará esta lei no prazo de noventa dias a contar de sua publicação.

Art. 3º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 4º Revogam-se as disposições em contrário”.

2. A Associação Autora afirma que o benefício conferido aos portadores de deficiência caracterizaria uma “ação de assistência social” (fl.4), conforme art. 203 da Constituição da República, o que, no seu entender, impõe a indicação da correspondente fonte de custeio, na forma do § 5º do art. 195.


Alega ela que, ao não indicar a fonte de recursos por conta da qual correria tal despesa, o Poder Público deixa-a a cargo da empresa de transporte, promovendo-se, assim, “investida confiscatória” no domínio privado, em flagrante violação aos princípios da ordem econômica, consubstanciados no art. 170; à livre iniciativa, fundamento da República, na forma do art. 1º, IV; e , ainda, ao direito à propriedade, inscrito no art. 5º, XXII, todos da Constituição do Brasil.

Salienta que, ao elaborar a lei ora impugnada, o Poder Público teria empreendido intervenção inconstitucional no domínio privado das empresas de transportes, pois teria restringido a utilização da plena capacidade de sua frota, sem, contudo, promover qualquer contra-prestação que descaracterizasse o caráter confiscatório da medida imposta.

A Autora assinala que, ao privar as empresas por ela representadas do aproveitamento parcial de seu patrimônio, o Poder Público teria se contraposto à livre iniciativa e ao direito de propriedade, estando, portanto, inquinada de inconstitucionalidade a lei em questão.

Sustenta, ainda, que a lei atacada violaria o princípio da isonomia, sobrecarregando apenas a categoria econômica das empresas de transporte com o ônus de custear um benefício assistencial que, pela sua natureza, “impõe a participação de toda a coletividade” (fl. 10).

Aludindo a dados referentes ao impacto que o beneficio provocaria nas receitas das empresas transportadoras, lega, por fim, que a instituição da vantagem poderia inviabilizar o sistema de transporte interestadual de passageiros e, por conseqüência, pôr em risco a continuidade do serviço prestado.

Requereu medida cautelar para: a) suspender a eficácia da Lei n. 8.899/94; b) determinar a suspensão, por parte do Ministério dos Transportes, do credenciamento dos beneficiários desta ação assistencial, bem como recolher os credenciamentos já expedidos; e, c) dilatar o alcance do § 3º do art. 5º da Lei n. 9.882/99, que dispõe sobre a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, para determinar aos juízos competentes que suspendam os andamentos dos processos e dos efeitos de decisões judiciais proferidas nos processos que relaciona.

3. O Congresso Nacional prestou informações, na forma solicitada pela então Relatora, Ministra Ellen Gracie, argüindo, inicialmente, a ilegitimidade ativa da Autora, ao fundamento de que esta não se caracterizaria como associação de classe de âmbito nacional, para o efeito específico do art. 103, inc. IX, da Constituição.

Ultrapassada que fosse a questão preliminar, relativa à legitimidade ativa da Autora, sustenta que “… o pedido seria juridicamente impossível porque a lei impugnada em si mesma não obriga ninguém….(e que a) lei ora taxada de inconstitucional para que tenha aplicação efetiva depende de regulamentação; de fato, ela é regulamentada pela Portaria n. 1, de 9.1.2001, do Ministério dos Transportes…”, além de outros decretos, portarias e instruções normativas (fls. 244/245).

Observa, a obrigatoriedade do oferecimento do passe-livre pelas empresas exploradoras do serviço público de transportes efetiva-se por meio de atos normativos secundários, contra os quais, afirma, não caberia ação direta de inconstitucionalidade.

Disserta o Congresso Nacional que o art. 170, caput, da Constituição, dispõe ser a ordem econômica fundada na valorização do trabalho e na livre iniciativa para o fim de assegurar a todos existência digna, “conforme os ditames da justiça social”… . Anota que “passe livre é um compromisso de todos, Governo e empresas com o respeito e a dignidade das pessoas portadoras de deficiência…”(fl. 247), pois seria um instrumento de realização da justiça social.

Afirma não se cuidar de criação de um benefício sem fonte de custeio, pois o art. 195, § 5º, da Constituição refere-se a benefícios com ônus direto a ser suportado pelos cofres públicos. A lei argüida como inconstitucional, bem como os regulamentos a ela referentes “… apenas concretizam políticas públicas dirigidas aos deficientes físicos… E não se diga que há abuso por parte do Executivo; abuso que inviabilizaria a exploração dos serviços de transporte coletivo interestadual. A própria Autora afirma que o Decreto (3.691/2000, art. 1º) fixou o limite de dois lugares por veículo…” (fl. 248).

Pondera, ainda, que o serviço de transportes é uma concessão pública, sujeita aos ônus decorrentes de políticas públicas, que podem, eventualmente, comprometer percentual dos lucros de seus concessinários.

Assevera, por fim, que o serviço de transporte é uma concessão sujeita aos ônus decorrentes de políticas públicas e que, somente de forma secundária, tal concessão estatal visa o lucro daqueles que exploram os serviços públicos.


4. A Presidência da República, também instada a prestar informações, anota a inocorrência de violação ao art. 195, § 5º da Constituição Federal, por não se ter, aqui, criação de ônus de seguridade social. Apresenta, também, informações do Ministério dos Transportes, Programa Passe Livre, nas quais são refutadas as estatísticas de impacto apresentadas pela Autora, reputando-as “claramente alarmistas e tendenciosas” (fl. 277).

5. O Advogado-Geral da União afirma a inviabilidade da medida cautelar pleiteada que, em razão do lapso temporal entre a publicação da Lei 8.889/94 e a propositura da presente ação, não revela o periculum in mora. Pede não seja conhecida a presente ação e, se tanto ocorrer, seja ela julgada improcedente.

6. O Procurador-Geral da República manifestou-se pela ilegitimidade ativa da Autora e, no mérito, pela improcedência da ação (fls. 296-301).

É o relatório, do qual deverão ser extraídas cópias para encaminhamento aos eminentes Senhores Ministros deste Tribunal (art. 9º, da Lei n. 9.868/99 c/c 87, inc. I, do RISTF).

V O T O

A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA – (Relatora):

Da Legitimidade da Autora

1. Preliminarmente, há de se apreciar a questão da legitimidade ativa da Associação Brasileira das Empresas de Transporte – Abrati.

Nos termos de seu Estatuto, a entidade reúne, em nível nacional, “empresas de transporte rodoviário regular de passageiros: Intermunicipal, Interestadual e Internacional…” (art. 3º do Estatuto, fls. 19 e 46-72).

Pode participar de seu quadro social “… toda pessoa jurídica, regularmente constituída sob as leis brasileiras que tenha como objeto social a atividade de transporte rodoviário regular intermunicipal, interestadual e internacional de passageiros e que tenha delegação para o efetivo exercício de tal atividade” (art. 6º do Estatuto, fl. 20).

2. O Presidente da República, pelo Advogado-Geral da União, bem como o Procurador-Geral da República manifestaram-se pela ilegitimidade ativa da Autora. Há de se enfatizar que o último parecer constante nos autos, emitido pela Procuradoria Geral da República, data de 17 de junho de 2002.

Até aquela data, a jurisprudência deste Supremo Tribunal não admitia entidades como a Autora, que representa pessoas jurídicas e não físicas, como legitimadas para propor ação direta de inconstitucionalidade.

Todavia, esse entendimento está superado na jurisprudência do Supremo.

Desde o julgamento do Agravo Regimental na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.153-AgR, Relator o eminente Ministro Celso de Mello, este Supremo Tribunal reviu sua jurisprudência e passou a considerar como legítimas as ‘associações de associações’, como se tem na ementa daquele julgado:

“… legitimação ativa: ‘entidade de classe de âmbito nacional’: compreensão da ‘associação de associações’ de classe … 1. O conceito de entidade de classe é dado pelo objetivo institucional classista, pouco importando que a eles diretamente se filiem os membros da respectiva categoria social ou agremiações que os congreguem, com a mesma finalidade, em âmbito territorial mais restrito. 2. É entidade de classe de âmbito nacional – como tal legitimada à propositura da ação direta de inconstitucionalidade [Constituição da República], art 103, IX – aquela na qual se congregam associações regionais correspondentes a cada unidade da Federação, a fim de perseguirem, em todo o País, o mesmo objetivo institucional de defesa dos interesses de uma determinada classe. 3. Nesse sentido, altera o Supremo Tribunal sua jurisprudência, de modo a admitir a legitimação das “associações de associações de classe”, de âmbito nacional, para a ação direta de inconstitucionalidade…” (DJ 9.9.2005).

3. Não parece também prosperar o argumento de que a Confederação Nacional de Transportes Terrestres seria a única entidade competente para representar a categoria, como afirmam a Advocacia-Geral da União e o Procurador-Geral da República.

As empresas de transporte rodoviário interestadual, intermunicipal e internacional de passageiros conjugam características que podem ser qualificadas como categoria para os fins do inc. 103, inc. IX, da Constituição.

As diferentes formas de desempenho dos serviços de transportes caracterizam-se de modo a qualificar diversamente as entidades que os prestam. E a associação que reúne as entidades de cada qual destas categorias de empresas está, como penso, legitimada a ajuizar a ação direta de inconstitucionalidade.

Indago, Senhor Presidente, se seria caso de se por em votação a primeira preliminar, por ser prejudicial ao prosseguimento do julgamento.


Ainda a legitimidade da Autora: a pertinência temática

4. Superada a questão da legitimidade ativa da Autora por causa de sua condição de representante de uma categoria a caracterizar uma entidade de classe de âmbito nacional, cumpre examinar, ainda, a pertinência temática entre a matéria cuidada na lei questionada e as finalidades da Autora, nos termos constantes de seu Estatuto, de forma a legitimá-la a propor a presente ação direta de inconstitucionalidade.

Consta, no art. 4º, a, de seu Estatuto, dentre suas finalidades, a “… coleta de informações, dados estatísticos, estudos e pesquisas relacionadas com todos os fatores que afetam diretamente o transporte rodoviário regular de passageiros…” do que se conclui presente a pertinência temática da Autora para questionar lei que trata passe livre às pessoas portadoras de deficiência, comprovadamente carentes, no sistema de transporte coletivo interestadual.

Assim, quanto à preliminar, reconheço a legitimidade da Abrati para propor a presente ação direta de inconstitucionalidade, o que ponho à apreciação dos eminentes Pares.

Conhecida a ação pela superação da preliminar de ilegitimidade ativa da Autora, examino a questão nuclear posta na presente ação.

Do Mérito

O contexto social

5. Há de se enfatizar, inicialmente, o destinatário das normas constantes da lei questionada, a saber, a pessoa portadora de deficiência.

A Lei n. 8.899/94 “concede passe livre às pessoas portadoras de deficiência”. Ela foi regulamentada pelo Decreto n. 3.691, de 19.12.2000.

Nos termos da Resolução aprovada pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas – ONU — em 9.12.1975, que proclamou a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes, considera-se assim toda pessoa “incapaz de assegurar por si mesma, total ou parcialmente, as necessidades de uma vida individual ou social normal, em decorrência de uma deficiência, congênita ou não, em suas capacidades físicas ou mentais”.

As desvantagens física, mental, intelectual ou sensorial limitam as capacidades de seus portadores para a interação e execução das atividades cotidianas, donde a sua dificuldade de efetiva participação na vida da sociedade.

6. A busca da igualdade de oportunidades e possibilidade de humanização das relações sociais, uma das inegáveis tendências da sociedade contemporânea, acolhida pelo sistema constitucional vigente, determina a adoção de políticas públicas que propiciem condições para que se amenizem os efeitos das carências especiais de seus portadores e toda a sociedade atue para os incluir no que seja compatível com as suas condições.

7. Para a plena interação do portador de carências especiais com a família, a escola, a sua vida em seu ambiente de trabalho e em todas as atividades da comunidade, várias providências são adotadas pelo Estado e pela sociedade para o atingimento daquele objetivo, tais como, reserva de vagas para deficientes nos estacionamentos públicos, isenção de tributos, por exemplo, Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI – para aquisição de veículos por eles; sua prioridade no atendimento em órgãos públicos e particulares; medidas que assegurem o acesso físico destas pessoas nos equipamentos públicos e nos espaços particulares.

Em 30.3.2007, o Brasil assinou, na sede da ONU, em Nova York, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, bem como seu Protocolo Facultativo.

Os Países signatários dessa Convenção e que vieram a ratificar o Tratado antes mencionado teriam, necessariamente, de implementar medidas para dar efetividade ao que foi ajustado.

8. Segundo informações do sítio da Organização das Nações Unidas, aproximadamente dez por cento da população mundial porta algum tipo de deficiência, o que significa cerca de seiscentos e cinqüenta milhões de portadores de necessidades especiais em todo o mundo. Desse total, oito em cada dez deficientes, ou seja, oitenta por cento desse total, mora em países em desenvolvimento. E o que há de ser realçado é que é na população economicamente carente que se concentram os maiores índices de marginalidade e de exclusão desses cidadãos.

9. Foi exatamente com vistas à tutela dessas pessoas que o legislador brasileiro elaborou a Lei n. 8.899/94, antecipando, de alguma forma, o quanto posto naquele Tratado ainda não ratificado pelo Brasil.

O exame da matéria revela não haver contrariedade entre o que constitucionalmente estabelecido e as normas legais questionadas.

O contexto constitucional: valores sociais da solidariedade e do bem-estar e o valor supremo da sociedade fraterna e sem preconceitos

10. Devem ser postos em relevo os valores que norteiam a Constituição e que devem servir de orientação para a correta interpretação e aplicação das normas constitucionais e apreciação da subsunção, ou não, da Lei n. 8899/94 a elas.


11. Vale, assim, uma palavra, ainda que brevíssima, ao Preâmbulo da Constituição, no qual se contém a explicitação dos valores que dominam a obra constitucional de 1988. Ali se esclarece que os trabalhos constituintes se desenvolveram “para instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos…”.

Não apenas o Estado haverá de ser convocado para formular as políticas públicas que podem conduzir ao bem estar, à igualdade e à justiça, mas a sociedade haverá de se organizar segundo aqueles valores, a fim de que se afirme como uma comunidade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

12. É certo que parte da doutrina não considera o Preâmbulo como dotado de força normativa. Observava Kelsen que o Preâmbulo “expressa as idéias políticas, morais e religiosas que a Constituição tende a promover. Geralmente, o Preâmbulo não estipula normas definidas em relação com a conduta humana e, por conseguinte, carece de um conteúdo juridicamente importante. Tem um caráter antes ideológico que jurídico” (KELSEN, Hans – Teoria General del Derecho y del Estado. 2ª ed., p. 309). Diversamente, Karl Schnmitt defendia ser no Preâmbulo da Constituição que se estampariam as decisões políticas que a caracterizariam, pelo que não cuidaria ele apenas de dar notícia histórica do texto ou de ser mera enunciação de decisões. Seria o Preâmbulo parte integrante da ordem jurídica constitucional, dando o verdadeiro significado das normas que a compõem.

No Brasil, cuidando com especificidade o tema, leciona José Afonso da Silva que os Preâmbulos, “as mais das vezes … fazem referência explícita ou implícita a uma situação passada indesejável, e postulam a construção de uma ordem constitucional com outra direção, ou uma situação de luta na perseguição de propósitos de justiça e liberdade; outras vezes, seguem um princípio básico, político, social e filosófico, do regime instaurado pela Constituição. … em qualquer dessas hipóteses, os Preâmbulos valem como orientação para a interpretação e aplicação das normas constitucionais. Têm, pois, eficácia interpretativa e integrativa” (Comentário contextual à Constituição. Malheiros, 2006, p. 22).

E, referindo-se, expressamente, ao Preâmbulo da Constituição brasileira de 1988, escolia José Afonso da Silva que “O Estado Democrático de Direito destina-se a assegurar o exercício de determinados valores supremos. ‘Assegurar’ tem, no contexto, função de garantia dogmático-constitucional; não, porém, de garantia dos valores abstratamente considerados, mas do seu ‘exercício’. Este signo desempenha, aí, função pragmática, porque, com o objetivo de ‘assegurar’, tem o efeito imediato de prescrever ao Estado uma ação em favor da efetiva realização dos ditos valores em direção (função diretiva) de destinatários das normas constitucionais que dão a esses valores conteúdo específico” (Idem, ibidem – grifos nossos).

13. Na esteira destes valores supremos explicitados no Preâmbulo da Constituição brasileira de 1988 é que se afirma, nas normas constitucionais vigentes, o princípio jurídico da solidariedade.

Esse princípio projeta-se e afirma-se já no tít. I, art. 3º, no qual se fixam os objetivos da República Federativa do Brasil, dentre os quais se tem o de “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (inc. II), “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (inc. III), e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (inc. IV).

É, ainda uma vez, José Afonso da Silva que, ao comentar estes dispositivos constitucionais, e, em especial, o que se contém no inc. I do art. 3º, assinala que “ ‘construir’ aí tem sentido contextual preciso. … o que a Constituição quer, com esse objetivo fundamental, é que a República Federativa do Brasil construa uma ordem de homens livres, em que a justiça distributiva e retributiva seja um fator de dignificação da pessoa e em que o sentimento de responsabilidade e apoio recíprocos solidifique a idéia de comunidade fundada no bem comum” (op. cit., p. 46).

O princípio constitucional da solidariedade tem, pois, no sistema brasileiro, expressão inegável e efeitos definidos, a obrigar não apenas o Estado, mas toda a sociedade. Já não se pensa ou age segundo o ditame de “a cada um o que é seu”, mas “a cada um segundo a sua necessidade”. E a responsabilidade pela produção destes efeitos sociais não é exclusiva do Estado, senão que de toda a sociedade.


Seria apropriado enfatizar, neste passo, o que exposto por François Rigaux: “… a aplicação do direito a uma relação de vida ou a uma situação de fato é o (problema) mais suscetível de levar a um conhecimento do que é o direito. Semelhante aplicação da norma pode ser tida como uma imersão do direito no fato ou por uma transmutação deste naquele. O direito opera: após sua passagem, os fatos já não são o que eram anteriormente. Sem dúvida a vida resiste com freqüência … a ser capturada na massa do direito, mas, se a efetividade de uma ordem jurídica tem um sentido, é mesmo que os seres humanos se conduzem da maneira que ela manda, encoraja ou permite. … contrariamente ao que se poderia pensar, a prática do direito não se reduz à ação administrativa e à jurisprudência dos tribunais a que se teria, às vezes, a tendência a restringi-la. Uma parte apreciável da prática jurídica é obra de particulares” (A lei dos juízes. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 45).

Todos estes dados jurídicos são apenas para se traçar o cenário constitucional no qual se plantou o princípio que entendeu o legislador de fazer frutificar em norma legal no diploma cuja validade jurídica é agora questionado.

14. Na linha dos princípios fundamentais da República, a Constituição acolheu como verdadeira situação – a ser modificada pela implantação de uma ordem jurídica possibilitora da recriação da organização social – a discriminação contra os deficientes, a par sua inegável dificuldade para superar, na vida em sociedade, os seus limites.

Tanto assim é que estabeleceu a obrigatoriedade de ser reservado percentual de cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência (art. 37, inc. VIII, da Constituição).

Serviços públicos, ordem econômica e o modelo definido para o atingimento dos fins afirmados no sistema

15. Preceitua o caput do art. 170, da Constituição, que a ordem econômica funda-se na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, e que é sua finalidade “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social…”, para o que são elencados os princípios expressos nos oito incisos em que se estende o dispositivo.

16. Na seqüência normativa, a Constituição fixa a titularidade dos serviços públicos: o Poder Público. O transporte coletivo é serviço público. A Constituição define que a sua prestação será feita “diretamente ou sob regime de concessão ou permissão”(art. 175).

O desempenho das atividades relativas a transportes coletivos obedece, portanto, rigorosamente às regras específicas que o bem estar da sociedade haverá de determinar.

Mais do que o interesse particular é o interesse público que marca o regime jurídico a nortear a forma de prestação dos serviços públicos, pois então se tem o Estado atuando, diretamente ou sob o regime de concessão ou de permissão.

E o Estado – como visto antes – tem o dever constitucional incontornável de modelar as estruturas políticas e administrativas por ele criadas e desenvolvidas para o atingimento dos fins estabelecidos e das ordens que nele atuam.

No caso brasileiro, aqueles como estas têm o seu fundamento na busca incessante da dignificação do ser humano, na igualação jurídica de todas as pessoas pela oferta igual de oportunidades na participação da vida social.

Os serviços públicos são concedidos ou permitidos a quem os deseja prestar, na hipótese de se dar o seu desempenho sob o regime de concessão ou permissão, sempre segundo o interesse público a ser buscado. Ensinam Gilles J Guglielmi e Geneviève Koubi que o serviço público “dispose d´un place central dans les représentations collectives du lien social et joue un role substantiel pour le maintien de la cohésion sociale et territoriale. … le concept de service public a été enrichi par les politiques de solidarité sociale mises en oeuvre dès la Libération. Le développement de l´État-providence a permis de penser les droits sociaux comme des droits ‘intégrateurs’. Durant toute la période 1945-1975, l´investissement de l´État dans le champ social apparaît comme l´un des moteurs de la croissance économique. L´application du principe d´égalité des citoyens par l´activité de service public permettait de faire coïncider les intérêts des plus défavorisés avec ceux de la société civile en son ensemble” (Droit du service public. Paris: Montchrestien, 2000, p. 74).

E é de Celso Antônio Bandeira de Mello a lição segundo a qual “entende-se por concessão de serviço público o ato complexo através do qual o Estado atribui a alguém o exercício de um serviço público e este aceita prestá-lo em nome do Poder Público sob condições fixadas e alteráveis unilateralmente pelo Estado mas por sua conta, risco e perigos, remunerando-se pela cobrança de tarifas diretamente dos usuários do serviço e tendo a garantia de um equilíbrio econômico-financeiro” (MELLO, Celso Antônio Bandeira de – Prestação de serviços públicos e administração indireta. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1979, p. 35).


O que define, portanto, o regime de prestação dos serviços públicos é a necessidade da sociedade, a demanda que com eles busca o Estado responder, a fim de aperfeiçoar os fins afirmados no sistema.

17. Entender, com clareza, que o objeto da lei questionada, na presente ação, diz com a prestação dos serviços públicos e com obrigações que aos seus prestadores, concessionários ou permissionários da atividade de transporte coletivo rodoviário interestadual, se impõem é essencial para a conclusão sobre o desate da questão posta a exame.

Isto porque a Autora aponta como um dos argumentos da alegada inconstitucionalidade da Lei n. 8.899/94 exatamente a afronta ao art. 170, no qual se contém a garantia da livre iniciativa.

18. A livre iniciativa, prevista no caput do art. 170, da Constituição significa a liberdade de comércio e de indústria, a liberdade empresarial e a liberdade contratual que são constitucionalmente asseguradas.

Não se há negar que as empresas associadas da Autora dispõem de liberdade constitucionalmente garantida para se constituírem e desempenharem as atividades para as quais foram criadas, nos termos da legislação vigente.

Todavia, a titularidade de serviços públicos, como são os transportes coletivos, mantém-se com o concedente – ente público – e o seu exercício afeiçoa-se à demanda social e, ainda, ao cumprimento das exigências constitucionais e legais.

Assim, não é porque a Constituição garante a livre iniciativa que se pode cogitar de liberdade de uma empresa para desempenhar aquelas atividades sem se submeter às normas legais sobre licitação, sobre a forma de prestação, sobre os cuidados e limites para o desenvolvimento da tarefa, se vier a ser cometida à empresa e, principalmente, ao contrato no qual se estabelecem, de acordo com os ditames das leis, os direitos, mas também os limites, as obrigações e a responsabilidade do concessionário ou do permissionário do serviço.

19. Tanto está estampado no art. 175 da Constituição da República, no qual se enfatiza que “a lei disporá sobre o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições …os direitos dos usuários… a política tarifária”(parágrafo único do art. 175).

O empresário que constitui uma empresa voltada à prestação de serviço público de transporte coletivo ampara-se no princípio constitucional da livre iniciativa para constituir a sua empresa, não dispõe de ampla liberdade para a prestação daquele serviço. Porque ele é concessionário ou permissionário de um serviço público. E quanto a esse nem ao menos o Poder Público tem liberdade. Presta-o porque tem de, não porque assim quer ou como decide. A decisão sobre esse serviço, a sua qualidade de serviço público está na Constituição (art. 21, inc. XII, al. e).

De resto, a concessão ou a permissão, como realçado antes, dá-se segundo o previsto na lei a que se remete a Constituição (art. 175, parágrafo único – “a lei disporá sobre…”).

A livre iniciativa presta-se, em sua extensa mais plena, à garantia de liberdade empresarial para atividades desta natureza. Para os concessionários e permissionários de serviço público o regime não é de livre iniciativa, mas de iniciativa de liberdade regulada nos termos da lei, segundo as necessidades da sociedade. Menos ainda se tem, no caso, o livre desempenho das atividades-fins da empresa.

20. De se relevar que o art. 175, parágrafo único, da Constituição estabelece, em seu inc. II, que “a lei disporá sobre … os direitos dos usuários…”.

A pessoa portadora de carências especiais há de ser considerada como um potencial usuário do serviço público de transporte coletivo interestadual. E como se cuida de titular de condição diferenciada, nesta condição haverá de ser cuidado pela Lei, tal como se deu com o diploma ora questionado.

O que se contém na Lei n. 8899/94 não é senão o cuidado com uma espécie diferenciada de usuários do serviço concedido ou permitido de transporte coletivo, a saber, a de portadores de necessidades especiais. O serviço público haverá de considerar esta especial condição para, então, distinguindo-a possibilitar a sua igualação aos demais membros da comunidade que também fazem uso deste serviço.

Os serviços públicos de transportes coletivos e o

princípio da igualdade

21. A Autora aponta eiva de inconstitucionalidade na Lei n. 8.899/94 porque, dentre outras máculas, nela se teria a desobediência ao princípio da igualdade. Segundo a argumentação esgrimida por ela, o ônus do benefício teria sido atribuído a uma parcela da sociedade, a saber, os empresários do ramo de transporte coletivo interestadual em desobediência àquele princípio.


Dá-se o inverso do quanto alegado pela Autora. É desigualando os desiguais que se iguala juridicamente. O critério de discrímen é que haverá de guardar perfeita consonância com os fins buscados com a norma. E esses hão de ser legítimos segundo os valores estabelecidos no sistema.

Conforme realcei, em outra ocasião, “o princípio jurídico da igualdade é o que a sociedade quer que ele seja. Não é obra de Deuses, nem de formas heterônomas, nem de forças exógenas que se impõem a uma sociedade com explicações místicas. … A igualdade no Direito é arte do homem. Por isso o princípio jurídico da igualdade é tanto mais legítimo quanto mais próximo estiver o seu conteúdo da idéia de justiça em que a sociedade acredita na pauta da história e do tempo. …No sistema constitucional fundamentado pelo princípio de igualdade materialmente cogitado, o serviço público é prestado de forma a assegurar que a prestação daquela atividade considere a condição subjetiva e mesmo a sócio-econômica do usuário, a fim de que não se chegue a uma situação de injustiça em que os mais favorecidos, materialmente, recebam os melhores serviços públicos, enquanto exatamente os menos aquinhoados sejam despojados de seus direitos fundamentais por não poderem contar com o mínimo de estrutura de serviços para o seu bem estar” (O princípio constitucional da igualdade. Belo Horizonte: Ed. Lê, 1990, ps. 28 e 94).

22. A Lei n. 8.899/94 cuidou de dar forma justa ao direito do usuário que, pela sua diferença, haverá de ser tratado nesta condição desigual para se igualar nas oportunidades de ter acesso ao serviço público de transporte coletivo rodoviário interestadual.

Os valores fundamentais relevados no sistema, os princípios constitucionais nele insculpidos, os direitos dos usuários portadores de carências especiais que a Constituição trata de relevar e a lei em pauta cuida de especificar, tudo isso conjuga-se sem que haja inobservância de norma jurídica a eivar da nódoa de inconstitucionalidade o diploma agora examinado.

Na seqüência destas normas é que se estabeleceu a concessão de passe livre às pessoas portadoras de deficiência, do que não se há de argumentar em ofensa ao princípio da igualdade, porque se busca, exatamente, com essa lei, a igualdade de direitos e oportunidades, além de contribuir para reduzir as desigualdades sociais, especialmente porque grande parte das deficiências atingem em maior escala a população mais pobre.

Reitere-se: o concessionário ou o permissionário do serviço público de transporte coletivo rodoviário interestadual não haverá de se considerar livre para estabelecer o que quiser, porque o próprio sistema constitucional erigiu a desigualação em fonte de norma possibilitadora da igualação mais que jurídica, aquela que é materialmente justa.

José Afonso da Silva leciona:

“Porque existem desigualdades, é que se aspira à igualdade real ou material que busque realizar a igualização das condições desiguais, do que se extrai que a lei geral, abstrata e impessoal que incide em todos igualmente, levando em conta apenas a igualdade dos indivíduos e não a igualdade dos grupos, acaba por gerar mais desigualdades e propiciar a injustiça, daí porque o legislador, sob ‘o impulso das forças criadoras do direito … teve progressivamente de publicar leis setoriais para poder levar em conta diferenças nas formações e nos grupos sociais” (Curso de Direito Constitucional Positivo, 24a. ed., São Paulo, Malheiros Editores, 2005, p. 214).

Por isso é que a leitura do texto constitucional põe em realce a preocupação do constituinte com a busca de cuidados específicos com a pessoa portadora de deficiência: arts. 7º, inc. XXI, 23, inc. II, 24, inc. XIV, 37, inc. VIII, 203, incs. IV e V, 208, 227, § 1º, inc. II e § 2º, 244, todos da Constituição.

No julgamento do Recurso em Mandado de Segurança n. 13.084, o Ministro José Delgado, do Superior Tribunal de Justiça, explicou a razão pela qual se deve, em nome do princípio da igualdade, isentar “… os deficientes físicos do pagamento de tarifas para o uso de ônibus de empresa permissionária de serviço regular comum intermunicipal” :

“Com efeito, o princípio da igualdade deve ser entendido consoante as exigências da fórmula política do Estado Democrático de Direito, consagrada constitucionalmente. Não há mais lugar, atualmente, para a ideologia jurídica liberal, que compreendia a isonomia em termos puramente formais e abstratos, desconsiderando as diferenças efetivamente existentes entre os homens, colocando no mesmo nível os desiguais.

A participação ativa do Estado no sentido de oferecer aos deficientes físicos melhores condições de vida compatibiliza-se perfeitamente com os princípios do Estado Democrático de Direito, que se caracteriza por intervir socioeconomicamente para assegurar a dignidade da pessoa humana. Procura-se justamente compensar as reconhecidas dificuldades que tais pessoas enfrentam, tais como o preconceito, a discriminação, a comiseração exagerada, as objeções ouvidas da busca de um emprego, os obstáculos físicos, as barreiras para o acesso à cultura, à saúde e à educação.

Observa-se que a diferenciação do portador de deficiência física conforma-se com o sistema constitucional. Trata-se de um meio para atingir um fim juridicamente colimado, qual seja, a integração social dos deficientes. O tratamento normativo diferenciado configura-se legítimo, se estiver preordenado à consecução de um fim perseguido pelo Direito. Deve-se partir de uma consideração teleológica.

Verifica-se que o próprio texto constitucional federal consagra a proteção aos deficientes físicos. outorgando-lhes garantias distintas, que objetivam efetivamente promover a inserção dessas pessoas na sociedade. Senão, vejam-se os seguintes preceitos da Carta Magna: artigo 7º, inc. XXXI; artigo 23, inc. II; artigo 24, inc. XIV; artigo 37, inc. VIII; artigo 203, incs. IV e V; artigo 208; artigo 227, §1°, inc. II; artigo 227, § 2o; e artigo 244. Depreende-se, portanto, que a legislação ordinária não só pode, mas deve obrigatoriamente propiciar meios que atenuem a natural falta de oportunidades dos deficientes físicos, concretizando assim os preceitos constitucionais.” (DJ 1.7.2002).


Não se vislumbra, pois, desobediência ao princípio da igualdade na lei posta em questão.

Alegação de instituição de uma ‘ação de assistência social’ sem a correspondente fonte de custeio

23. Assevera a Autora que teria sido instituído uma “ação de assistência social” com inobservância do quanto posto no art. 195, § 5º, da Constituição, na qual se dispõe:

“Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:

§ 5º – Nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total.”

Sem fonte de custeio para o que denomina “uma ação de assistência social”, a norma que garantiu o passe livre aos portadores de necessidades especiais estaria tisnada pela eiva de inconstitucionalidade.

Conforme acentuado pelo Advogado-Geral da União e também pelo Procurador-Geral da República, o dispositivo em questão “refere-se a benefícios ou serviços que oneram os cofres públicos, com impacto no orçamento, o que não ocorre na espécie” (fl. 300).

A norma do art. 195, § 5º, da Constituição, refere-se à criação de benefício do sistema estatal de seguridade social ou a serviço de seguridade social. Como o orçamento do Estado é formal e não admite improvisos, a instituição de benefício ou serviço atribuído ao sistema de seguridade social sem a correspondente fonte de custeio geraria a frustração do beneficiário e corresponderia a uma situação de insustentabilidade do sistema.

Daí a norma que se conjuga com a responsabilidade fiscal que impede que se definam legalmente benefícios ou serviços sem a fonte de onde venha o custeio para a sua implementação.

24. O benefício ou serviço de que cuida o § 5º do art. 195, da Constituição, é o da seguridade social, vale dizer, aquele que compõe o conjunto integrado de ações de iniciativa e prática dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. Nesses casos, não há carência do prazo de inscrição do beneficiário no Sistema de Previdência (e portanto, de tempo de contribuição prévio definido por lei). Tem ele cobertura universal e é financiado de forma direta por recursos provenientes do orçamento da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

O “passe livre às pessoas portadoras de deficiência, comprovadamente carentes, no sistema de transporte coletivo interestadual”, previsto na Lei n. 8.899/94, não constitui, pois, benefício ou serviço da seguridade social, como pretende fazer crer a Autora.

Tem-se, pois, que também quanto a esse fundamento não subsiste o argumento apresentado pela Autora.

Alegação de confisco no domínio privado das empresas transportadoras de passageiros, no âmbito interestadual

25. Afirma, finalmente, a Autora que a lei questionada estaria a contrariar a Constituição por consubstanciar forma de confisco. Segundo ela, o ônus das passagens utilizadas pelos portadores de deficiência teriam de ser assumidas pelas empresas e, nesse caso, tanto retiraria parte da capacidade econômica do seu patrimônio.

Apresenta a Autora o seguinte relato: “a experiência das associadas da requerente indica que cada beneficiário empreenderá ao menos uma viagem (ida e volta) por mês, no sistema de transporte coletivo interestadual, uma tímida estimativa à vista do provisionamento de 2 (dois) lugares por veículo, por trecho de viagem… é verossímil a possibilidade de que a cada ano, cerca de 21.000.00 (vinte e um milhões) de lugares sejam ocupados pelos beneficiários do ‘passe livre’ nos veículos que compõem a frota das transportadoras e essa expectativa corresponde a 16% do total de passageiros regulares transportados anualmente – cerca de 132.000.000 conforme dados do anuário estatístico elaborado pelo Ministério do Transporte. A supressão de receita correspondente aos lugares ocupados pelos beneficiários do serviço assistencial instituído pela Lei 8.899/94, inviabiliza o empreendimento que deu corpo ao sistema de transporte interestadual e põe em risco a continuidade da prestação devida aos usuários regulares, prejudicando, conseqüentemente, o exercício da função social cumprida pelos bens de produção em evidência” (fl. 12).

Os cálculos aterrorizadores apresentados falham na matemática, quando não fosse bastante falhar no direito. Em efeito. Em primeiro lugar, porque as contas se baseiam, como expressamente se contém na exposição da Autora, na ‘possibilidade’ de vir a ocorrer o que é por ela projetado.

Ademais, há de se salientar que os ônus decorrentes de quaisquer condições de prestação do serviço público são repassados aos usuários pagantes, e não suportados pelas empresas, como pretendem fazer crer.

27. O que parece querer demonstrar a Autora é que o direito que foi reconhecido aos portadores de carências especiais conduziria ao desequilíbrio da equação econômico-financeira do contrato firmado pelas prestadoras do serviço com o poder concedente.

Mas este não é um dado que conduz à inconstitucionalidade da Lei posta em questão. Tanto se resolve na comprovação dos dados econômicos a serem apresentados quando da definição das tarifas nas negociações contratuais com o poder concedente. Se sobrevier desequilíbrio da equação econômico-financeira do contrato a matéria será objeto de ilegalidade, a se provar em caso específico, nada tendo a prevalecer em relação à validade ou invalidade constitucional da Lei em pauta.

De se mencionar que, no julgamento da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.163, à época, de relatoria do Ministro Nelson Jobim, na qual se discutia a concessão, aos jovens com até 21 anos, de desconto de 50% dos valores dos ingressos em casas de diversões, praças desportivas e similares, este Supremo Tribunal concluiu que “… a situação compreende uma bilateralidade: o alegado prejuízo financeiro das empresas e a proteção a um bem jurídico subjetivo – a cultura”. E concluiu o Supremo Tribunal por indeferir a liminar, permitindo-se o acesso aos jovens aos espetáculos e eventos culturais.

No caso em foco, a situação não se distancia, nos fundamentos constitucionais, do quanto debatido naquela ação direta.

A Constituição, ao assegurar a livre concorrência, também determinou que o Estado deve empreender todos os seus esforços para garantir a acessibilidade, para que se promova a igualdade de todos, em cumprimento aos fundamentos da República de cidadania e dignidade da pessoa humana, o que se concretiza pela definição de meios para que eles sejam alcançados. Um desses meios é o que se põe na lei ora em exame, que não apenas, penso, não afronta, antes dota de concretude os valores constitucionais percebidos e acolhidos pelos constituintes e adotados como princípios e regras da Constituição do Brasil de 1988.

Por tudo quanto exposto, voto no sentido de julgar improcedente a presente ação direta de inconstitucionalidade.

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