Medida do crime

Entrevista: Antonio Sérgio Pitombo, advogado criminalista

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11 de maio de 2008, 13h12

Antonio Sérgio de Moraes Pitombo - por SpaccaSpacca" data-GUID="antonio_sergio_moraes_pitombo.jpeg">Fazer operações espetaculares com o uso de metralhadoras e algemas para prender acusados de crimes financeiros mostra falta de talento, treinamento e estudo da Polícia Federal. “A PF precisa intimar seus agentes e delegados a voltar à escola.” A opinião é do advogado criminalista Antonio Sérgio de Moraes Pitombo.

Para o advogado, o exagero que se vê em muitas operações da PF é o mesmo que se constata nas denúncias e na tipificação de certos crimes, como o de formação de quadrilha. “É o tipo de crime que infla a imputação e a denúncia, mas que não faz chegar a lugar nenhum. Depois, as denúncias são todas trancadas porque o Ministério Público não soube descrever a conduta dos agentes”, afirmou Pitombo em entrevista ao Consultor Jurídico.

A receita do advogado de apego à técnica e observância ao devido processo penal serve também para a advocacia. Para Pitombo, na advocacia criminal não há espaço para improvisação, não há estrela, clientelismo ou jeitinho. O advogado tem de entender qual é o fato, qual é o crime e como defender seu cliente. E ponto.

Antonio Sérgio Pitombo é filho do desembargador Sérgio Marcos de Moraes Pitombo, um dos processualistas penais mais admirados do país pela técnica de seus julgados. Antônio Sérgio herdou as características de seu pai, que morreu em março de 2003. Para ele, exercer a advocacia criminal é observar as regras e aplicá-las. “Advogado criminal não pode ter relação promiscua com nenhum tipo de funcionário público, particularmente com a polícia judiciária. A advocacia criminal tem de ser tratada com ética e seriedade”, ensina.

O advogado, que acaba de ser indicado pelo Who’s Who Legal como um dos mais importantes advogados em business crime, se formou em 1983 na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Começou a carreira de criminalista ainda na universidade. “Um dia eu encontrei no pátio da Faculdade de Direito o professor Miguel Reale Júnior, e falei para ele: ‘posso fazer estágio com o senhor?’ Ele respondeu: ‘claro’. Fui estagiário do Miguel por dois anos e meio e foi uma experiência fantástica.”

Sérgio Pitombo aproveitou a experiência e foi ser sócio de um escritório, onde montou um setor de business crime, o primeiro no Brasil, segundo ele. Atuou neste campo por oito anos, para depois montar seu próprio escritório, hoje com 50 pessoas e 17 advogados. O criminalista é associado ao Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), tarefa que lhe traz muita satisfação porque é onde pode demonstrar toda a técnica aprendida. “É na defesa das pessoas carentes que a gente vê como é difícil ser advogado”, diz.

O advogado lembra que, muitas vezes, o último refúgio para a garantia da legalidade é o Supremo Tribunal Federal: “quando dá tudo errado o advogado não pode se frustrar. Recorre, porque uma hora vai vencer. Alguns ministros do STF podem reclamar que a Corte, hoje, atua muito na jurisdição penal. E isso é fato. Porque algumas questões o advogado só vai conseguir salvar no Supremo. É preciso ter fôlego para ser advogado”.

Leia a entrevista

ConJur — Há quem afirme que as prerrogativas profissionais dos advogados eram mais respeitadas na época da ditadura. Há exagero nessas afirmações?

Antonio Sérgio Pitombo — Eu não vivi esse período para fazer a comparação. O que eu posso dizer é que a Constituição Federal de 88, apesar das várias críticas, trouxe outra dimensão ao processo penal. Hoje, qualquer um que sai da Faculdade de Direito tem a mínima noção que o Código do Processo Penal tem de ser interpretado a partir da Constituição. Isso deu mais qualidade ao processo, ao juiz e aos tribunais.

ConJur — Mas existem excessos, não?

Antonio Sérgio Pitombo — Há desvios. Por exemplo, as operações espetaculosas da Polícia Federal, em que as prisões são comunicadas para os jornalistas, que filmam pessoas sendo algemadas, sem qualquer noção do constrangimento ilegal que aquilo representa. Daqui a alguns anos, isso vai ser motivo de vergonha porque muitos vão relembrar este episódio e dizer: “olha o que se fazia”. Quando o juiz encoberta esse tipo de coisa, permite que os procuradores ou promotores façam investigações de gabinete, é claro que ficamos desanimados. Esse tipo de atitude mostra que tem muita coisa para evoluir. Mas eu sou sempre um otimista, até porque quem começa investigação assim, não vai chegar a lugar nenhum. Eu tenho certeza que um advogado técnico vai conseguir algum resultado. Talvez tenha de chegar até o Supremo Tribunal Federal, mas vai chegar e a decisão vai favorecer o processo legal.

ConJur — O senhor enxerga exagero nas decretações de prisões temporária e preventiva?


Antonio Sérgio Pitombo — Indiscutivelmente. Sou contra a prisão temporária. O juiz até pode decretar prisão cautelar, mas para isso precisa expor na decisão as razões de fato. Razões concretas e que qualquer um que leia a decisão possa entender, inclusive o preso. O que se vê é a generalização da prisão temporária, como um mero instrumento de tirar o investigado do campo de atuação. A prisão do advogado Ricardo Tosto me entristeceu muito [o advogado foi preso no dia 24 de abril na Operação Santa Tereza, da Polícia Federal, que investiga exploração da prostituição, fraudes em financiamentos do BNDES e lavagem de dinheiro]. A exposição da figura dele foi muito grave e absolutamente desnecessária. Antigamente, policiais prendiam bandidos famosos sem usar algemas. Prender o Ricardo Tosto, um homem de 1,70m, algemado, me choca e mostra como a Polícia vai mal. Outra coisa é usar metralhadora para prender colarinho branco. Isso demonstra a falta de talento, treinamento e estudo. E mostra que a Polícia Federal precisa intimar seus agentes e delegados a voltar à escola.

ConJur — O problema da Polícia no Brasil é só o da falta de estudo?

Antonio Sérgio Pitombo — Não. É também da falta de talento para exercer a profissão. Grandes policiais fazem prisões e cumprem ordens judiciais sem esse tipo de violência. O emprego de algemas precisa ter uma razão. Não se coloca algema em quem não representa perigo. Ricardo Tosto estava nessa condição. Acredito que ele vá entrar com ação de indenização contra a União e vai sair vitorioso por ter tido sua imagem exposta daquela maneira. Quem sabe quando o Departamento de Polícia Federal gastar muito dinheiro para indenizar pessoas expostas publicamente de maneira ilegal aprenda a não fazer mais isso.

ConJur — Mas a ordem de prisão parte do juiz.

Antonio Sérgio Pitombo — O juiz criminal está com um grande problema que é o seguinte: ele se acha defensor da segurança pública. Esse é um erro histórico. Juiz é cumpridor da legalidade. O problema da segurança pública é do Executivo, não do Judiciário. O juiz, pressionado por essa idéia, comete ilegalidades porque não tem coragem de dizer que o problema não é dele. A outra coisa é que o juiz não tem idéia do que seja a prisão. Para ele, a prisão é só um lugar para onde pode mandar os presos, mas não é algo que tenha experimentado e visto. Quem viu uma prisão, quem ouve o barulho do bater da grade sabe o que significa e não vai mandar qualquer um para lá.

ConJur — A escuta telefônica deixou de ser exceção para se tornar regra na investigação criminal?

Antonio Sérgio Pitombo — O que vejo é uma total perda de noção do juiz brasileiro sobre essa matéria. Para a Polícia, o grampo faz parte do jogo. Já o juiz ficou tão pressionado pelo problema da segurança pública, pelo mito do crime organizado, da magnitude da lesão, que autoriza grampos além do prazo previsto em lei. Quando se abre a Constituição está escrito que a regra é a privacidade. Não posso pegar o excepcional do excepcional para atingir aquilo que é um princípio. É uma questão até de lógica.

ConJur — A denominação que se usa, de varas especializadas em combate à lavagem de dinheiro, já revela que o juiz está ali de certa forma para combater o crime, não?

Antonio Sérgio Pitombo —Nesse caso existe também uma pressão internacional, uma visão equivocada. O Brasil sucumbiu à pressão, particularmente norte-americana, em matéria de lavagem de dinheiro e aceitou fazer uma série de coisas do ponto de vista do Direito Administrativo, principalmente, que não correspondem à nossa realidade constitucional. A Lei de Lavagem de Dinheiro tem uma construção correta, até porque tem a estrutura dos crimes antecedentes, que é muito importante. A idéia de especialização também é boa, mas o que se vê neste caso é uma influência americana grande. A palavra “combate” faz parte do vocabulário americano. Juiz não combate nada. Pelo contrário. Apura fatos. A vara especializada, na prática, vicia um pouco o juiz, o faz criar hábitos que o fazem perder a noção da Justiça no caso concreto.

ConJur — Perde a independência.

Antonio Sérgio Pitombo — O juiz cria um pouco a sensação do cético. Eu conheço a maioria dos juízes que atuam nessas varas de lavagem de dinheiro, não tanto por seu trabalho, mas por contatos acadêmicos. E eu diria que alguns acabaram influenciados até pelo tamanho do peso que foi jogado nas costas. É uma responsabilidade muito grande tentar resolver um problema que não é deles. Ou não deveria ser.

ConJur — Por que interessa fazer lavagem de dinheiro no Brasil?

Antonio Sérgio Pitombo — Não é pelos defeitos brasileiros, mas pelas qualidades. Temos um sistema financeiro rápido e informatizado. Qualquer um que queira lavar dinheiro se interessa por isso. Nosso sistema bancário é muito melhor do que o de vários países de primeiro mundo.


ConJur — O Supremo Tribunal Federal discute a regularidade da criação das varas especializadas em combate à lavagem de dinheiro e se é constitucional a transferência dos processos já em andamento em outras varas para as especializadas. Qual sua opinião sobre isso?

Antonio Sérgio Pitombo — O problema está na forma da criação da vara especializada. O Conselho da Justiça Federal não tem poder para criar vara nenhuma. Se o STF seguir estritamente a perspectiva constitucional e a perspectiva legal, as varas têm de ser declaradas inválidas e, portanto, todos os processos teriam de ser julgados nulos. O efeito vai ser devastador, mas é a decisão técnica mais correta. Existe também o problema da ofensa do juiz natural. A transferência de processos viola esse princípio.

ConJur — Como o senhor vê as reformas pontuais na legislação penal?

Antonio Sérgio Pitombo — Vejo que houve um exagero na reforma do Código Penal. Não na reforma de 1984, mas numa pequena reforma posterior, com o aumento da possibilidade de aplicar penas alternativas para as condenações de até quatro anos de prisão. Isso fragilizou o Código Penal, porque inclui nas penas alternativas uma série de crimes, como, por exemplo, os cometidos contra a administração da Justiça. E aí a punição fica branda. Outro problema é que o país tem mania de fazer reforma tirando direito do cidadão. Ainda assim, ao contrário do que muita gente diz, o destino ajudou o Brasil porque não conseguiram reformar o Código do Processo Penal como reformaram o Código do Processo Civil. A advocacia no processo civil acabou, porque as reformas pontuais foram trágicas. Como no processo penal isso não funcionou, você ainda tem um processo penal simples porque sabe como começa e como termina.

ConJur — Mas, em alguns casos, não acaba nunca.

Antonio Sérgio Pitombo —Alguém vai perguntar: por que as pessoas ricas não vão presas? Respondo de forma bem simples: porque podem contratar melhores advogados. E é exatamente por isso que a Defensoria Pública tem de ser valorizada. Quanto melhor forem os defensores públicos, menos gente vai presa. Muita gente é condenada não é pelo talento do Ministério Público, mas é pela falta de defesa.

ConJur — O que o senhor acha da atuação dos Juizados Especiais Criminais?

Antonio Sérgio Pitombo — Um dos maiores erros que o Brasil cometeu na área de política criminal foi criar o Juizado Especial Criminal. Primeiro porque o contato que o sujeito tem com a Justiça Criminal se torna uma cesta básica. E não é assim que se faz política criminal. Direito Penal é coisa séria. Defendo o Direito Penal mínimo, no sentido de que devem existir poucos crimes. A Lei 9.099/95, que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, foi uma cópia mal feita de uma idéia norte-americana que não funciona. O legislador aproximou a Justiça Penal do modelo da Justiça do Trabalho e fez com que tudo ficasse na idéia de acordo, o que é completamente errado. E isso também ajudou a quebrar o sistema.

ConJur — Por quê?

Antonio Sérgio Pitombo — Porque no Juizado Especial o sujeito não tem dimensão do que é a Justiça Penal. Ele vai ao juiz e acha que tudo é brincadeira. Não há o papel punitivo. A única sensação que o acusado tem no final da audiência criminal é a de que ele não precisava de advogado. Há também um erro absoluto do juiz e do promotor, que foram convencidos de que isso é muito bom porque vai diminuir a quantidade de processos. Se juiz não quer julgar, então que mude de profissão. O juiz está lá para julgar, não é para baixar processo. O promotor está lá porque ele se convence que quer fazer Justiça. O bom promotor não acusa. Vê o fato concreto, vê qual é a verdade do fato e diz se o sujeito é inocente ou culpado.

ConJur — O senhor, como advogado criminalista, acredita que o crime pode compensar?

Antonio Sérgio Pitombo — Hoje, o crime de estelionato vale a pena. Conforme o tamanho do golpe, pode ser válido cumprir dois anos de prestação de serviço na comunidade.

ConJur — Qual é a reforma ideal do Código Penal e do Código do Processo Penal?

Antonio Sérgio Pitombo — É preciso uma grande limpeza no Código Penal. Se fossem abolidos determinados crimes, já ganharíamos muito. Evasão de divisas, por exemplo. Essa é uma idéia dos anos 70. É uma idéia muito retardada de um crime absolutamente sem sentido. Se o dinheiro que está lá fora é produto de sonegação fiscal, então você dá o tratamento de sonegação. Se é produto de lavagem de dinheiro, enquadra no crime de lavagem. O que é evasão? Não é nada, é só um meio. A idéia de controlar câmbio, que é do Brasil desenvolvimentista, é uma idéia que não tem mais sentido. Não é controlando a saída de capital de pessoa física que você vai controlar o câmbio brasileiro. Se o sujeito tem a conta no exterior porque sonegou, isto é outra questão, mas não é evasão. Se ele está escondendo recursos oriundos de crime, isto é lavagem de dinheiro. Mas não é evasão.


ConJur — É preciso tipificar crimes como terrorismo?

Antonio Sérgio Pitombo— É. E essa falta de tipificação é um vácuo da legislação brasileira. Irão dizer que no Brasil não tem terrorismo. Mas é um ponto necessário para a cooperação penal internacional, por causa da dupla incriminação. Se o terrorista vem para o Brasil, sem tipificação, não é possível entregá-lo ao país que requer. O Brasil só não sofreu mais pressão por isso porque os Estados Unidos não perceberam essa falha.

ConJur — E formação de quadrilha? A tipificação atual é adequada?

Antonio Sérgio Pitombo — Eu acabaria com a figura da formação de quadrilha. Isso é mais uma muleta do Ministério Público do que crime. Nós estamos em quatro pessoas, dentro de uma sala. Seria então formação de quadrilha, porque o critério objetivo já foi preenchido. Esse é o tipo de crime que infla a imputação e a denúncia, mas que não faz chegar a lugar nenhum. Depois, as denúncias são todas trancadas porque o Ministério Público não soube descrever a conduta dos agentes. Há também juízes que têm uma preguiça imensa de fazer o juízo de admissibilidade e acusação, e recebe a denúncia e ponto. O juiz não é inerte no processo penal. Ele pode tomar as medidas que acha relevantes para a busca da verdade. Não precisa aguardar a provocação. Isso reflete na alma do cidadão. A sensação de impunidade vem por falta do tratamento técnico dos assuntos.

ConJur — Falta para os juízes e promotores?

Antonio Sérgio Pitombo — Parece que hoje o sujeito faz concurso para juiz ou promotor porque quer resolver o seu problema econômico. Isso tem acontecido com a advocacia também. Apenas gostar da profissão não é suficiente. É preciso gostar, ter vocação, ter disciplina, estudar e se dedicar.

ConJur — Como é exercer a advocacia criminal hoje?

Antonio Sérgio Pitombo — Graças à Constituição Federal de 1988 temos hoje a possibilidade de fazer a defesa mais técnica possível. A presença do promotor de Justiça no processo, e do juiz, para controlar atividade da polícia judiciária, também nos ajudou bastante. Antes, éramos uma classe rudimentar, pequena, que exercia trabalho pouco técnico e de pequena importância. Hoje, o advogado tem a possibilidade de evitar as arbitrariedades que aconteciam no passado.

ConJur — Como tem de ser exercida a advocacia criminal?

Antonio Sérgio Pitombo — A advocacia criminal é técnica. Não há improvisação, não há estrela, clientelismo ou jeitinho. O advogado tem de entender qual é o fato, qual é o crime e como defender seu cliente. É evidente que a advocacia criminal tem uma série de problemas, mas isso faz parte do momento histórico que estamos vivendo e acho que até anima o debate.

ConJur — O que o senhor diria para um jovem de 20 anos que está na faculdade de Direito e quer ser advogado. O que ele precisa fazer?

Antonio Sérgio Pitombo— A primeira coisa é estudar, levar a advocacia como um técnico. Segundo, não pode ter relação promiscua com nenhum tipo de funcionário público, particularmente com a Polícia. A advocacia criminal tem de ser tratada com ética e seriedade. Em terceiro lugar, precisa saber ouvir o cliente. O jovem advogado tem como característica querer dar as respostas ao cliente. Um bom advogado é aquele que sabe perguntar e ouvir, principalmente ouvir. Também é preciso ter noção que não existe grande advogado. Existem grandes equipes. Ninguém faz nada sozinho. E não se pode pensar só em honorários. Advogado cobra de acordo com o serviço que presta. Nada além disso.

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