A lei de Alá

Entrevista: Fabiana Nogueira, advogada

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4 de maio de 2008, 0h01

Fabiana Nogueira - por SpaccaSpacca" data-GUID="fabiana_nogueira.jpeg">Um jogador de futebol brasileiro, já casado no Brasil, é contratado para jogar em um país que segue as normas do islamismo. Chegando lá, resolve se casar com uma outra mulher. O Alcorão e a lei daquele país permitem que ele se case com mais de uma. Ao voltar ao Brasil com suas duas mulheres, ele não pode ser considerado bígamo.

O exemplo e a defesa são da advogada Fabiana Nogueira. Há cerca de seis anos, a advogada tem se debruçado sobre o Direito nos países em que a maioria da população é mulçumana. Ela evita usar o termo “países islâmicos”. “Não há um país islâmico porque nenhum transformou o Alcorão em Código Civil”. Ela explica que as leis são apenas baseadas no livro sagrado dos muçulmanos. E explica também que mais do que esquisitices, o que existe em relação ao Direito nos países islâmicos são mitos e diferenças culturais profundas.

Pesquisando o tema, ela descobriu, por exemplo, que um muçulmano admite sua culpa com mais facilidade porque, temente a Deus, ele prefere pagar por seus erros nesta vida mesmo.

Descobriu também que para o muçulmano é preferível levar chibatadas em praça pública para pagar por algum mal feito do que passar anos mofando numa prisão. A legislação dos países ocidentais em geral proíbe castigos físicos, por serem cruéis. Qualquer pessoa que conhece as condições oferecidas pelos presídios brasileiros ficará pelo menos em dúvida sobre qual das duas alternativas é mais ou menos cruel, se a chibata ou a cadeia. Afinal, nesse tipo de cadeia, sempre há o risco de, além da reclusão, ser também surrado.

As pesquisas de Fabiana Nogueira foram reunidas no livro Brasil & Islã — Teoria e prática do Direito Internacional (Editora Nova Razão Cultural). A advogada conta que teve dificuldade para escrever sobre o assunto devido à falta de informações e pela dificuldade de escrever sem se vincular à questão cultural. “Vi que não tinha como estudar o Direito nesses países, sem, primeiro, pesquisar sobre a religião”, conta.

Fabiana Nogueira conseguiu parte do material para o estudo freqüentando a Sociedade Muçulmana do Rio de Janeiro e entrevistando os muçulmanos que vivem no Brasil (estima-se que são cerca de 1,5 milhão). “São tantos mitos que tinha medo de ir ao encontro deles”, conta. Mas depois de ter conhecido e entrado em contato com os muçulmanos, Fabiana Nogueira passou a se sentir à vontade.

A inspiração para o livro veio do filme Nunca sem minha filha. A história é de uma americana, casada com um iraniano, que decide viajar para o Irã junto com o marido e a filha. Chegando lá, o marido decide não voltar mais para os Estados Unidos e a americana faz de tudo para conseguir deixar o Irã com a filha.

Fabiana Nogueira já prepara seu próximo livro. Nele, ela pretende fazer um paralelo entre o Direito e os sete pecados capitais (gula, ira, luxúria, avareza, vaidade, preguiça e soberba). A advogada vai falar dos pequenos deslizes de cada dia e as conseqüências jurídicas que eles podem acarretar. Os exemplos são vários: desde o rapaz que urina no meio da rua até as fofocas nas comunidades de relacionamentos Orkut.

A advogada nasceu no Rio, formou-se em Direito pela Universidade Cândido Mendes, fez pós-graduação em Direito Internacional pela Escola Superior de Advocacia. Morou nos Estados Unidos e na Espanha. Atualmente, trabalha com homologação de sentença estrangeira, ou seja, trabalha para validar no Brasil sentenças proferidas no exterior. Questionada sobre sua religião, Fabiana Nogueira afirmou que é espírita kardecista.

Confira a entrevista

ConJur — Como são feitas as leis nos países islâmicos?

Fabiana Nogueira—Os princípios da legislação são baseados no Alcorão. Por isso é difícil haver uma mudança legal. Novas disposições são introduzidas apenas quando surgem questões não previstas na época em que o Alcorão foi escrito. É o caso da dupla nacionalidade. Antes, eu imaginava que tratava do exercício arbitrário das próprias razões, ou seja, em fazer Justiça com as próprias mãos. Pensava que, se uma mulher cometia um adultério, era puxada pelos cabelos e levada em praça pública para receber chicotadas. Não é assim.

ConJur — Há julgamento?

Fabiana Nogueira—Sim. Existe o processo, com julgamento, exatamente como no Brasil. Há todo um sistema jurídico. A diferença é que as leis são baseadas no Alcorão. Nem tudo é 100% do livro sagrado. Por isso não há um país islâmico, porque nenhum deles transformou o Alcorão em um Código Civil. A Arábia Saudita, por exemplo, é uma monarquia, enquanto o Alcorão prega que o chefe de governo tem que ser eleito.

ConJur — A crueldade das penas, como cortar a mão de quem rouba, é lenda ou, de fato, existe?


Fabiana Nogueira—Não é lenda. O sistema penal prevê esse tipo de punição, mas ela não é aplicada com a freqüência que imaginamos. Pelo que eu soube, durante séculos, só quatro tiveram a mão amputada.

ConJur — No caso de brasileiro que comete um crime em um país islâmico, há o que fazer para se livrar desse tipo de penas?

Fabiana Nogueira— Não. Ele vai ser julgado segundo as leis locais. Isso acontece no Brasil também. Um estrangeiro que comete um crime aqui será julgado segundo as leis brasileiras. Como a pena é muito diferente — lá há previsão de pena de morte — a pessoa entra em desespero. Pensamos mais na pena, propriamente, do que no fato de que ela é uma conseqüência jurídica para a pessoa condenada.

ConJur — E como fica a situação de pessoas como o escritor Salman Rushdie [autor deVersos Satânicos] e Kurt Westergaard [cartunista dinamarquês, que publicou uma caricatura do profeta Maomé] contra quem foram emitidos fatwas [decretos emitidos por autoridades religiososas condenando-os à morte]?

Fabiana Nogueira— Pelo que eu soube, a questão do cartunista da Dinamarca era simples de resolver. A comunidade islâmica queria saber por que, meses antes, o jornal se recusou a publicar uma charge de Jesus Cristo, do mesmo cartunista. Pediu uma retratação quando houve a publicação da caricatura do profeta Muhammad, mas o cartunista se recusou a fazer. Quando a notícia da charge vazou, os fiéis tomaram as dores da situação. O povo até então não sabia da charge, apenas os que estavam na Dinamarca, lendo o jornalzinho local. A questão tomou grandes proporções em razão disso.

ConJur — E quanto ao autor de Versos Satânicos?

Fabiana Nogueira— Perguntei sobre esse caso na sociedade islâmica e as pessoas me disseram que o problema foi o autor ter falado mal das esposas ou de uma das filhas do profeta. Era um pequeno trecho. Não chega a falar do Islã em si. Sentenciaram o autor à pena de morte, mas depois ele foi perdoado pelo rei.

ConJur — No caso dele foi feito um julgamento?

Fabiana Nogueira— Não. O conflito era mais entre o escritor e os muçulmanos radicais. Ao contrário do que imagimanos, há liberdade de religião nos países de maioria muçulmana.

ConJur — No livro, a senhora diz que o muçulmano não comete determinado ato, porque os princípios religiosos não permitem. Em que medida é interessante o fato de princípios religiosos ditarem as regras sociais?

Fabiana Nogueira— No Brasil, também funciona de maneira semelhante. Acho que a religião ajuda a diminuir a criminalidade. A pessoa fica com medo do que vai acontecer depois da morte, se vai para o inferno ou não, e tem toda a questão da culpa. Há muitas pessoas que, às vezes, não cometem certos atos por causa das conseqüências que podem ter diante de Deus.

ConJur — Qual é a diferença para os muçulmanos?

Fabiana Nogueira— A diferença é que os muçulmanos têm certeza absoluta das conseqüências divinas. Algumas pessoas se dizem cristãs, mas fazem algumas adaptações à religião. Já o muçulmano não abre exceção e segue à risca cada preceito. Eles estão mais preocupados com a questão religiosa do que com o aspecto penal. Muitas vezes, eles mesmos confessam ter cometido um crime. Preferem cumprir a pena com as leis na Terra. Por isso há países com o índice de criminalidade muito baixo.

ConJur — Tem a ver com o fato de as punições serem públicas?

Fabiana Nogueira— Não. No Brasil, não tem pena de morte, mas o presídio brasileiro assusta. Como advogada, já tive a oportunidade de entrar em um presídio. Fiquei abismada; dá medo. Ainda que não haja pena de morte, o tratamento dado aos presos é péssimo. Além disso, as penas são muito altas. Assim, as pessoas também deveriam ter medo de cometer algum crime no país. Com certeza, o medo existe, mas nem por isso deixa de haver crimes. Não acho que seja a conseqüência penal que leva uma pessoa a não matar outra. Aumentar a pena, como pretendem alguns, não muda muita coisa.

ConJur — Nos países islâmicos, depois que a pessoa cumpriu a pena em público, ninguém fala mais nada sobre o assunto.

Fabiana Nogueira— A pena é educativa para a pessoa que cometeu o crime e para quem viu a punição. Se a pessoa comete um adultério, vai levar chibatadas. Acabou, vai para casa e ninguém comenta ou a critica por isso. Já pagou pelo erro. No Brasil, a pessoa cumpre a pena, mas pode ficar condenado para o resto da vida.

ConJur — Qual é a pena em caso de tráfico de drogas?

Fabiana Nogueira— Não acredito que seja permitido o uso de drogas, pois até bebida alcoólica é expressamente proibida pelo Alcorão. Se não é permitido o consumo, o comércio também deve ser ilegal.


ConJur — Sua área é Direito de Família. Como é dividida a herança?

Fabiana Nogueira— A parte maior vai para os filhos do sexo masculino. O homem recebe o dobro da herança da mulher, porque no futuro é ele que vai dar o dote – normalmente de grande valor – para as esposas. No final das contas, às vezes, a mulher recebe mais do que o homem, pois é muito difícil uma mulher não se casar. Trabalha-se com a certeza de que a mulher, futuramente, vai ser privilegiada.

ConJur — Como funcionam o casamento e o divórcio? São contratos verbais?

Fabiana Nogueira— Nem todos. O casamento não é verbal. É preciso um contrato como no Brasil. Só que lá não existe o pacto antinupcial, porque todo regime é de separação de bens. O divórcio é interessante. No Brasil, a pessoa, que quer se divorciar tem de esperar por dois anos – divórcio direto – ou um ano após a separação judicial – divórcio por conversão. Demora muito tempo. Lá, são três meses. É simples e prático.

ConJur — O divórcio é simples mesmo com a possibilidade de o homem se casar com várias mulheres?

Fabiana Nogueira— Nesse aspecto, não. Ele não pode se separar de todas de uma vez. É igual ao casamento, em que não se pode casar com todas em uma única cerimônia. Apesar de não existir a tradição de lua-de-mel, é muito difícil casar logo depois com outra, pois a cerimônia dura dias.

ConJur — Existe o casamento civil ou é só o religioso?

Fabiana Nogueira— Em alguns países, o próprio casamento religioso já vale como civil. Dois brasileiros que vivem em países islâmicos podem se casar no consulado do Brasil, mas eles devem seguir as determinações para o casamento do país onde o consulado se encontra.

ConJur — Como fica a situação de um muçulmano que se casou com uma mulher no Brasil, vai para seu país de origem e se casa com outra, e depois volta ao Brasil com as duas mulheres?

Fabiana Nogueira— Não há nada escrito sobre o assunto. Mas eu faço uma analogia com o a situação que existia algum tempo atrás no Brasil com relação ao desquite. Quando não existia o divócio por aqui, as pessoas saíam do Brasil para se casar em outro país. Existe até algumas decisões que consideravam bígamas as pessoas que se desquitavam aqui e se casavam de novo no exterior. Agora suponhamos o caso de um jogador de futebol brasileiro que é transferido para um país muçulmano e leva a esposa a. Chegando lá, resolve casar com outra. Não há problemas, pois ele está seguindo as leis locais.

ConJur — E quando voltar?

Fabiana Nogueira— A questão é exatamente essa. Segundo as leis brasileiras, casar, quando já se é casado, constitui crime de bigamia. Para mim, o jogador nunca seria considerado bígamo. Ao se casar com a segunda mulher no país muçulmano, ele respeitou um direito local. No máximo, o Brasil pode não reconhecer o segundo casamento. É muito complexo.

ConJur — E a guarda dos filhos? A criança fica com a mãe ou com o pai?

Fabiana Nogueira— É parecido com o que se faz no Brasil. Mas, em geral, é concedida ao pai, pois é ele o responsável pela educação. Mas isso não impede a mãe de pedir e conseguir a guarda. O juiz é que vai avaliar. A educação, inclusive a religiosa, que é de responsabilidade do pai também é é um dos motivos pelo qual a mulher mulçumana só pode se casar com um muçulmano, enquanto o homem muçulmano pode se casar com uma não mulçumana.

ConJur — O processo de divórcio começa com uma declaração verbal em que o homem diz que está se divorciando. Como é isso?

Fabiana Nogueira—O marido fala para a mulher: “você está divorciada”. É o chamado “talak”. É o primeiro passo para o divórcio. A partir daí, começa a contar o prazo de três meses. O homem pode se arrepender de ter dito “talak”. Eles retomam o relacionamento, mas passa um tempo, o marido faz o segundo pedido de divórcio. De novo, vê que não é bem isso que quer. Até porque, no período entre o pedido e a separação, o casal fica na mesma casa para, primeiro, tentar a reconciliação e, segundo, ter certeza de que a mulher não está grávida.

ConJur — A mulher também pode tomar a decisão de pedir o divórcio?

Fabiana Nogueira— Pode, mas ela não diz a ele. Tem que recorrer ao Judiciário para pedir o divórcio. Ela também não é obrigada a reatar só porque o marido não quer mais se separar.

ConJur — Por que há essa diferença?

Fabiana Nogueira— Está no Alcorão. Mas para evitar a instabilidade – a mulher ficaria o tempo todo insegura – na terceira vez em que o homem disser que quer se separar, eles são obrigados a fazê-lo. Se ele quiser reatar o casamento depois da terceira vez em que pede o divórcio, terá de esperar que ela se case e se separe de outra pessoa. É uma maneira de fazer com que o homem pense duas vezes antes de pedir o divórcio.


ConJur — Mas, se os dois estão juntos em casa, quem vai dizer se é primeira ou a quinta vez que o homem pede o divórcio?

Fabiana Nogueira— Novamente, entra a questão religiosa. Para os muçulmanos, Deus está vendo tudo. Se eles continuarem casados depois da terceira vez que o homem disse que está divorciado, cada dia em que estiverem juntos representará um dia de adultério. Eles também não vão burlar a regra de que a mulher tem de se casar e separar de outro primeiro, antes de voltar para o primeiro marido. O jeitinho brasileiro também não funcionaria. Se a mulher já casou para burlar a regra, não está respeitando as leis divinas que estão no Alcorão. Por isso, o divórcio no mundo islâmico é muito raro.

ConJur — A mulher também só pode pedir o divórcio perante o juiz, no máximo, três vezes?

Fabiana Nogueira— Não. Ela pode pedir direto o divórcio. O que pode existir é a reconciliação.

ConJur — Um homem adúltero e uma mulher adúltera são punidos da mesma forma?

Fabiana Nogueira— Da mesma forma. Assim como a virgindade é exigida para os dois no primeiro casamento. No mundo islâmico, a relação sexual só existe dentro do casamento, ainda que a mulher seja viúva ou divorciada.

ConJur — Como fazer para pedir pensão de um muçulmano que voltou ao país dele?

Fabiana Nogueira— São situações muito complicadas. Têm coisas que, na prática, não são viáveis em função do tempo que demora para serem resolvidas e do trâmite legal que é exigido. Demora tanto que faz com que a pessoa não queira pedir seu direito na Justiça.

ConJur — Qual o aspecto mais prejudicial que a senhora vê nas leis dos países islâmicos?

Fabiana Nogueira— Tudo depende do ponto de vista cultural. Tem pessoa que prefere levar uma chibatada a perder 20 anos de liberdade. Para mim, não aceitaria esse sistema adotado no mundo islâmico. Mas, para eles, pode ser o contrário. Os muçulmanos podem achar um absurdo uma pessoa ficar tanto tempo preso por causa de um erro. Fico com medo de fazer uma crítica, porque na realidade depende da forma como se vê cada sistema. Até que ponto casar com quatro pessoas é ruim?

ConJur — A senhora acha que as leis do Brasil são mais complicadas?

Fabiana Nogueira— Talvez não seja nem a lei. As regras são mudadas para acompanhar as brechas que as pessoas conseguem achar. Como lá as pessoas respeitam, as leis que existem já são suficientes. Acho o nosso sistema jurídico muito bom, mas o deles é mais simples.

ConJur — O que a senhora achou mais interessante na pesquisa que fez?

Fabiana Nogueira— Uma das coisas que achei interessante é o fato de não existir o “jeitinho” nesses países. No Brasil, há tanta doutrina sobre o mesmo assunto, porque as pessoas buscam as brechas da lei para tentar conseguir seu direito. Foi interessante, também, pesquisar os mitos. A vida nesses países não é como imaginamos. A história da mulher, que chega nesses países e é roubada, é mais mito que realidade. É claro que já deve ter acontecido – um muçulmano seqüestrou uma mulher, colocou um véu nela e ninguém mais teve notícia. Há também o mito da mulher submissa, de o homem poder se casar com quatro mulheres. Mas a mulher pode legalmente exigir que ele renuncie ao direito de ter outras esposas.

ConJur — Isso é comum?

Fabiana Nogueira— Acontece, mas não é comum, porque o casamento com mais de uma mulher é culturalmente aceito. No Brasil, não conheci nenhum muçulmano que fosse casado com mais de uma mulher. Eles me disseram que respeitam o direito local, até para fazer valer a igualdade entre as mulheres. Ao registrar o casamento civil com uma e não com a outra, estariam dando tratamento diferenciado às mulheres, ainda que casar, no religioso, com quatro pessoas não seja bigamia. Bigamia só há se o homem levar mais de uma mulher para fazer o registro do casamento no civil.

Texto alterado em 7 de maio para acertos de redação

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