O jovem Marcos

Governo não pode simplesmente se demitir dos seus deveres

Autor

  • Manoel Carlos de Almeida Neto

    é secretário-geral do Tribunal Superior Eleitoral doutorando em Direito do Estado pela USP e autor do livro “O Novo Controle de Constitucionalidade Municipal” publicado pela Editora Forense.

2 de maio de 2008, 11h35

Durante a sessão extraordinária de 14 de abril de 2008, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, em julgamento especial, condenou o estado de Pernambuco a pagar o valor correspondente a U$ 150 mil pelo custo decorrente da cirurgia de implante de um Marcapasso Diafragmático Muscular (DMU) que devolverá ao estudante universitário Marcos José Silva de Oliveira a condição de respirar sem a dependência do respirador mecânico que o mantém prisioneiro a uma UTI do Hospital Português no Recife.

A delicada intervenção cirúrgica só pode ser realizada por um especialista da Universidade de Yale/CT, nos Estados Unidos da América, por não existir, no Brasil, cirurgião apto a realizar o feito.

Com apenas 25 anos de idade, o jovem Marcos ficou tetraplégico em decorrência de um assalto na cidade do Recife. O Tribunal de Justiça local, nos autos da ação indenizatória movida pela vítima, deferiu antecipação dos efeitos da tutela para que o estado de Pernambuco pagasse, incontinenti, todas as despesas necessárias à realização da cirurgia na forma requerida.

Inconformado, o Estado ajuizou, perante o Supremo Tribunal Federal, pedido de suspensão de tutela antecipada (STA 223/PE), alegando, em síntese: a) existência do perigo na demora; b) ocorrência de grave lesão à ordem e a economia pública; c) violação ao artigo 196 da Constituição; d) inexistência de nexo de causalidade entre o dano provocado e o Estado.

Assim, em 12 de março de 2008, a relatora do caso, ministra Ellen Gracie, então presidente do STF, deferiu, com base na jurisprudência da corte, o pedido para suspender a decisão do TJ-PE. Contra a referida decisão monocrática, a defesa de Marcos interpôs agravo regimental. A relatora negou provimento ao recurso por considerar que a decisão do tribunal local “representa grave lesão à ordem pública, considerada em termos de ordem administrativa”.

Durante o julgamento do agravo regimental, o Plenário do STF, com apenas seis dos seus 11 ministros, deu provimento ao recurso por cinco votos (Celso de Mello, Eros Grau, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Cezar Peluso) a um (Ellen Gracie). Ao abrir divergência, o ministro Celso de Mello, em voto oral fortemente marcado pela emoção, consignou que, “se grave lesão no caso há, não é à ordem pública, o que há é uma grave lesão ao princípio da dignidade da pessoa humana; uma grave lesão ao direito à busca da felicidade, que é um consectário desse postulado”.

Para o decano do STF, ministro Celso de Mello, existe uma omissão permanente e reiterada do poder público a ponto de afirmar-se que, em determinados centros urbanos, a segurança pública tornou-se mero exercício de ficção. Destarte, o ministro Celso de Mello concluiu o seguinte: “Honestamente, senhora presidente, eu rejeito – não é uma expressão técnica, mas eu rejeito por ser uma expressão que diz tudo aquilo que penso e sinto – a pretensão de contracautela deduzida pelo estado de Pernambuco e dou provimento, sim, ao recurso de agravo interposto por esta pessoa totalmente desamparada. Quem salva uma vida, salva toda a humanidade”, finalizou o decano.

Os eminentes juízes da suprema corte consideram a excepcionalidade e urgência do caso concreto, uma vez que se designou o dia 30 de abril de 2008 para a adoção do procedimento cirúrgico, sob risco de morte para o paciente.

O ministro Gilmar Mendes registrou a sua indignação com o estado de Pernambuco que, em atitude procrastinatória contínua, reteve os autos, gerando medida cautelar de busca e apreensão, além de fazer o depósito dando a impressão que cumpriria a decisão e, depois, buscou o bloqueio da quantia. Para o ministro, “essas não são atitudes de lealdade por parte do ente estadual”.

Se a deslealdade estatal revela-se, por um lado, na aludida atitude procrastinatória, por outro, a frieza da fundamentação do estado na STA 223 merece algumas reflexões: a) Como pode o estado de Pernambuco alegar a existência do periculum in mora ante a determinação de depósito em conta judicial, se salta aos olhos que o jovem Marcos corre risco de morte? b) Como pode o estado alegar que a decisão do TJ-PE ofende o artigo 196 da Constituição por efeito da inexistência do tratamento médico no Brasil, se o referido dispositivo constitucional estabelece justamente o contrário?

Com efeito, a norma do artigo 196 da Constituição — considerada perfeita pelo professor José Afonso da Silva em seu comentário contextual à Constituição — aduz que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

Como se sabe, nenhum direito é absoluto. Até mesmo os direitos fundamentais encontram limites explícitos e implícitos no texto das constituições.

O constitucionalista português J.J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 1.276) ensina que a compreensão da problemática das restrições de direitos e garantias fundamentais exige uma “sistemática de limites”, classificando-os de acordo com a seguinte tipologia: a) restrições constitucionais diretas ou imediatas, que são aquelas traçadas pelas próprias normas constitucionais; b) restrições estabelecidas por lei mediante autorização expressa da constituição e, por fim; c) restrições não expressamente autorizadas pela Constituição, as quais decorrem da resolução de conflitos entre direitos contrapostos.

No presente caso, os direitos fundamentais à saúde e à dignidade humana confrontam-se com restrições estabelecidas por princípios como o da reserva do possível ou da separação das funções estatais. O tema é extremamente sensível e merece profunda reflexão, sob pena de se desvirtuar a função do Poder Judiciário redesenhada pelo Barão de Montesquieu no clássico De L´Espirit des Lois.

Em todo caso, o poder público não pode simplesmente demitir-se dos seus deveres constitucionais, sob pena de incidir em inconstitucionalidade. A noção de inconstitucionalidade decorre também do princípio da supremacia da Constituição, ou seja, do fato de a Constituição ocupar o topo da pirâmide kelseniana do ordenamento jurídico. A inconstitucionalidade é o resultado do conflito de uma norma ou de um ato hierarquicamente inferior com a lei maior, a qual pode advir de ação ou omissão (Cf. SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 47; MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Coimbra: Editora Coimbra, 1985. p. 274).

No caso presente, a situação expõe uma dupla inconstitucionalidade por omissão por parte do estado de Pernambuco que, inobstante a exigência do texto maior, quedou-se inerte. A primeira omissão ocorre na seara da segurança pública que, nos termos do artigo 144 da Constituição Republicana, é dever do Estado e direito do cidadão. A segunda quando se nega o direito fundamental à saúde e a uma existência digna ao jovem Marcos, que teve os seus sonhos ceifados com um único tiro na coluna cervical e tornou-se prisioneiro do leito de uma UTI.

Portanto, a decisão do Plenário do Supremo Tribunal Federal representa um importante passo para a efetivação do direito fundamental à saúde no campo das omissões inconstitucionais do poder público e serve de alerta aos estados para o cumprimento dos seus deveres constitucionais no âmbito da segurança pública.

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