Motivo frágil

Tentativa de fuga não justifica manutenção da prisão preventiva

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30 de junho de 2008, 19h51

Se a liberdade do réu não coloca em risco a ordem pública e o andamento do processo, a tentativa de fuga anterior não é motivo suficiente para a manutenção da prisão preventiva. O entendimento é da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que concedeu no dia 10 de junho Habeas Corpus para o empresário Rogério Souza Phellipe, acusado de participar do esquema de corrupção com verbas da Companhia Energética de São Paulo (Cesp) na cidade de Rosana (SP). O acórdão da decisão foi publicado na segunda-feira (30/6).

“Como a gravidade abstrata dos delitos não possui o condão de, por si só, justificar a prisão cautelar, também meras conjecturas não servem para a sua imposição. Para que isso ocorresse seria necessário haver demonstração de que o agente mostra-se perigoso para a sociedade, que a sua liberdade implica em risco para os demais, fato que, até o momento, não foi demonstrado, haja vista que as testemunhas foram ouvidas, ele encontrava-se foragido e nenhuma delas reclamou de, sequer, ter sido assediada por ameaças”, afirmou a desembargadora convocada Jane Silva (relatora).

Jane Silva cita precedentes do próprio tribunal nesse sentido. “Por si só, a fuga do réu logo após a prática do crime não justifica se lhe imponha preventivamente a prisão, mormente quando houve, no caso, posterior apresentação espontânea”, afirma o ministro Nilson Naves em HC de novembro de 2007.

O suposto esquema de corrupção na Cesp foi descoberto depois que a TV Globo divulgou gravações em que o empresário tentava subornar a prefeita da cidade, Aparecida Barreto. O programa foi exibido em dezembro de 2007.

Mais de 30 pessoas são acusadas no esquema. Phelippe responde por crime contra a administração pública e corrupção ativa. De acordo com a denúncia, ele administra um negócio que fatura R$ 3 milhões por mês. Phellipe, que foi preso em março, ficou três meses foragido.

Em Rosana fica a hidrelétrica de Porto Primavera, da Cesp. Para que a usina pudesse funcionar, parte da cidade foi alagada. Como compensação, a companhia se comprometeu a repassar ao município mais de R$ 94 milhões. A empresa de Rogério Phelippe ganhou contratos para trabalhar lá e recebia os pagamentos. Mas a denúncia diz que quase nada foi feito. O desvio pode passar de R$ 50 milhões.

O juízo, quando decretou a prisão preventiva, fundamentou a decisão no fato de que ele poderia ameaçar as testemunhas, se furtar da aplicação da lei penal e continuar a delinqüir. Ocorre que o juízo admitiu que os fundamentos fossem possibilidades.

A 6ª Turma do STJ entendeu que os fundamentos para a prisão preventiva têm de ser extraído dos autos. Não podem ser meras suposições. Também considerou que não haveria risco de intimidar as testemunhas da acusação, porque nenhuma reclamou, em depoimento, tal atitude de Phellipe. Quanto ao outro ponto levantando, o de voltar a delinqüir, o STJ acolheu a tese da defesa segundo a qual os contratos do empresário com a prefeitura foram reincididos. Portanto, não haveria mais a possibilidade de cometimento de crime.

O empresário foi representado pelos advogados Alberto Zacharias Toron, Edson Junji Torihara e Renato Marques Martins.

Leia decisão

HABEAS CORPUS Nº 100.693 – SP (2008/0040169-7)

RELATORA : MINISTRA JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG)

IMPETRANTE : ALBERTO ZACHARIAS TORON E OUTROS

IMPETRADO : TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

PACIENTE : ROGÉRIO DE SOUZA PHELLIPE

RELATÓRIO

A EXMª. SRª. MINISTRA JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG) (Relatora):

Trata-se de habeas corpus, com pedido de liminar, impetrado por procuradores legalmente habilitados, em benefício de ROGÉRIO DE SOUZA PHELLIPE, contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que denegou a ordem de habeas corpus lá interposta, considerando legal a prisão preventiva do paciente.

Consta da inicial que Rogério de Souza Phellipe foi denunciado como incurso no artigo 333, parágrafo único, c/c artigos 71 (37 vezes) e 69 (13 vezes), em concurso material com o artigo 158, § 1o, c/c artigo 29, todos do Código Penal, porque, entre janeiro de 2005 e dezembro de 2007, supostamente teria oferecido vantagem indevida a vereadores do município de Rosana para que votassem segundo suas orientações e, para que não exercessem fiscalização sobre os contratos firmados entre sua empresa e a Prefeitura.

Segundo os impetrantes, a denúncia descreve, ainda, que o paciente, juntamente com outro co-réu, teria ameaçado, em tese, a nova Prefeita Municipal de Rosana, após a cassação do anterior administrador, para que ela não rescindisse nem fiscalizasse a execução de contratos anteriormente celebrados, nem se opusesse aos interesses do paciente perante a municipalidade.


Inconformado com a sua prisão preventiva determinada pelo Juízo de 1a Instância e mantida pelo Tribunal a quo, o paciente interpôs o presente writ em que afirma que aquela decisão está baseada em mera presunção de reiteração criminosa, em ilação acerca de possível temor de testemunhas e conjecturas sobre destruição de provas, isentas de conexão com fatos concretos demonstrados nos autos.

Destacam os impetrantes que o paciente permanece desde o dia 15 de dezembro de 2007 sem se submeter à custódia preventiva, e não há notícia de que as testemunhas tenham sido ameaçadas ou de que tenha suprimido provas, as quais, de todo modo, já foram apreendidas em outros autos (f. 17). Sobre este ponto em particular, dizem que o fato dele estar foragido não é fundamento idôneo para se determinar a prisão preventiva.

Além do mais, afirmam que Rogério de Souza Phellipe é primário e não ostenta nenhum antecedente criminal.

O pedido de liminar foi indeferido nesse Superior Tribunal de Justiça, fls. 288/289. Foram dispensadas as informações em virtude da suficiente instrução do feito. Foi proferida decisão monocrática não-conhecendo do pedido pela incidência do óbice da súmula 691 STF.

A defesa providenciou a juntada de cópia do acórdão do Tribunal a quo, aditando a

inicial. Foi dado provimento ao agravo regimental para trazer à Turma o julgamento do mérito da ação constitucional.

O Ministério Público Federal opinou pela denegação da ordem, fl. 402/407.

É o relatório.

Em mesa para julgamento.

VOTO

Analisei atentamente as razões da impetração, a documentação acostada, o parecer do Ministério Público Federal e entendo que a ordem deve ser concedida, pelos motivos que passo a expor:

Consta dos autos que o paciente foi denunciado como incurso no artigo 333, parágrafo único, c/c artigos 71 (37 vezes) e 69 (13 vezes), em concurso material com o artigo 158, § 1o, c/c artigo 29, todos do Código Penal.

Foi determinada a sua prisão preventiva sob a seguinte argumentação, fl. 49/58:

Nesse aspecto verifico que estão presentes os requisitos da prisão preventiva, pressupostos e fundamentos da prisão preventiva, autorizando-se o acolhimento da representação da autoridade policial e o pedido formulado pelo Ministério Público.

Com efeito, os acusados acima nominados foram denunciados pela prática de crimes graves, sendo todos eles dolosos e punidos com reclusão, de molde a satisfazer o requisito do artigo 313, I do Código de Processo Penal.

Também estão verificados os pressupostos da prisão preventiva, porquanto devidamente demonstrada a materialidade e existentes indícios de autoria, conclusão que se extrai do arsenal de documentos e também da fala de testemunhas. (…)

Por fim, a prisão cautelar tem seu fundamento na garantia da ordem pública, para assegurar a aplicação da lei penal e também por conveniência da instrução criminal.

(Citação de doutrina).

Os elementos de convicção até agora produzidos dão sustentação à denúncia apresentada pelo Ministério Público, segundo a qual os réus montaram o esquema de poder paralelo no Municio de Rosana, tudo mediante o pagamento de propinas. Confira-se parte da denúncia:

(…)

Se mantida a possibilidade de que tais comportamentos persistam no Município de Rosana, há evidente risco à ordem pública, que agora só pode ser mantida com a prisão cautelar dos acusados acima indicados. Conforme acentuou o Ministério Público, não pode haver “ataque maior à ordem pública e também ao regime democrático republicano do que um Poder Legislativo comprado, que age a soldo do poder econômico corrupto, na defesa desse poder e nos interesses dos próprios parlamentares corrompidos”.

(…)

Bem é de ver, de outra parte, que os réus Rogério de Souza Phellipe e Jurandir Pinheiro, tão logo se descobriram as práticas criminosas, fugiram do distrito da culpa. O primeiro até agora está foragido, enquanto que o segundo foi capturado no Estado do Mato Grosso do Sul. Dessa forma está patenteada a necessidade da prisão preventiva, para o fim de garantir a aplicação da lei penal.

(…).

Inconformada, a defesa interpôs habeas corpus junto ao Tribunal de Justiça estadual, o qual restou denegado sob a seguinte fundamentação, fl. 317/326:

Não obstante, o writ não se credencia ao deferimento afigurando-se recomendável, ao menos por ora, que a prisão processual do paciente prevaleça. Por primeiro, para a manutenção da ordem pública, que foi imensamente abalada pelos graves fatos havidos. Dos elementos de convicção carreados aos autos exsurgem sérios indícios de que o paciente ocupava posição de destaque na rede de corrupção que se formou na cidade de Rosana. Entre outras ações ilícitas, ele seria responsável pelo pagamento de elevadas quantias em dinheiro a integrantes dos poderes Legislativo e Executivo do Município, a fim de ser indevidamente beneficiado, em prejuízo do erário (…).


Também para o bom andamento da instrução criminal, prevenindo-se, tanto quanto possível, maior constrangimento às testemunhas, já naturalmente temerosas pela grande repercussão do caso, que envolve diretamente inúmeras pessoas poderosas na localidade, bem como a supressão de provas relevantes para o deslinde dos fatos, ás quais em liberdade teria fácil acesso. (…) O paciente, recentemente capturado, sequer foi interrogado. Plausível, pois, que novas diligências instrutórias sejam necessárias.

Finalmente, para a fiel aplicação da lei penal. O paciente permaneceu foragido por largo período. Só foi preso recentemente. Pouco importa onde foi encontrado. A verdade é que, na tentativa de se furtar ao julgamento e permanecer impune, ele abandonou o distrito da culpa, comprometendo e tumultuando, com seu comportamento, o bom andamento da ação penal. (…).

O paciente somente pode manter-se preso, antes do advento da sentença condenatória com trânsito em julgado, por ser esta uma medida extrema, quando há elementos concretos nos autos indicando que sua liberdade põe em risco a ordem pública, a ordem econômica, a instrução criminal ou a aplicação da lei penal, caso contrário, deve ser mantido em liberdade.

Assim como a gravidade abstrata dos delitos não possui o condão de, por si só, justificar a prisão cautelar, também meras conjecturas não servem para a sua imposição. Para que isso ocorresse seria necessário haver demonstração de que o agente mostra-se perigoso para a sociedade, que a sua liberdade implica em risco para os demais, fato que, até o momento, não foi demonstrado, haja vista que as testemunhas foram ouvidas, ele encontrava-se foragido e nenhuma delas reclamou de, sequer, ter sido assediada por ameaças.

Nada há nos autos que indique que a liberdade do paciente porá em risco a ordem pública ou a instrução criminal, mesmo porque, a última testemunha de acusação já foi ouvida. Sem lastro em elementos concretos de convicção, não pode o paciente permanecer preso, sob pena de afronta ao princípio constitucional de fundamentação das decisões emanadas dos órgãos do Judiciário e à regra do artigo 312 do Código de Processo Penal.

Portanto, a prisão provisória, de natureza eminentemente cautelar e, por conseguinte, não-satisfativa, somente pode ser mantida quando algum dos requisitos do mencionado artigo 312 estiver presente diante do caso concreto.

Há, nesse sentido, inúmeros precedentes deste Superior Tribunal:

Imigração ilegal de brasileiros para os Estados Unidos da América (formação de quadrilha e tentativa de estelionato). Ação penal (trancamento). Falta de justa causa (não-ocorrência). Prisão preventiva (requisitos). Decreto (ausência de fundamentação). Revogação (caso).

1. Havendo, na denúncia, razoável exposição dos fatos havidos por criminosos, deve a ação, ao menos por ora, ter prosseguimento.

2. Pode ser decretada pela autoridade judiciária a prisão preventiva por meio de despacho (ou decisão) sempre fundamentado, em qualquer fase do inquérito ou da instrução.

3. Os riscos de fuga e de reiteração da conduta criminosa, sem amparo em dados concretos, não justificam, por si sós, o decreto, mormente quando a paciente reside no distrito da culpa e possui bons antecedentes.

Também não justificam a gravidade abstrata do fato e a expectativa quanto à punição dos crimes pelo Estado.

4. Carecendo o ato judicial de suficiente fundamentação, carece de legalidade; caso, portanto, de constrangimento ilegal.

5. Ordem concedida em parte, com efeito extensivo. (STJ – HC 53.485/SP – Rel. Min. Nilson Naves – Sexta Turma – Pub. no DJ em 26.02.2007, p. 645). (Grifo nosso).

CRIMINAL. HC. ESTELIONATO. RECEPTAÇÃO. QUADRILHA. FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO. PRISÃO PREVENTIVA. PROVA DA MATERIALIDADE E INDÍCIOS DE AUTORIA. GRAVIDADE DOS DELITOS. CIRCUNSTÂNCIA SUBSUMIDA NO TIPO. CREDIBILIDADE DA JUSTIÇA. INTRANQÜILIDADE SOCIAL. MOTIVAÇÃO INIDÔNEA A RESPALDAR A CUSTÓDIA. (…). CONDIÇÕES PESSOAIS FAVORÁVEIS.

ORDEM CONCEDIDA.

O juízo valorativo sobre a gravidade genérica do delito imputado aos pacientes, a existência de prova da autoria e materialidade do crime, a credibilidade do Poder Judiciário, bem como a intranqüilidade social não constituem fundamentação idônea a autorizar a prisão para garantia da ordem pública, se desvinculada de qualquer fator concreto, que não a própria conduta, em tese, delituosa.

Aspectos que devem permanecer alheios à avaliação dos pressupostos da prisão preventiva.

As afirmações a respeito da gravidade do delito trazem aspectos já subsumidos no próprio tipo penal, além de que qualquer prática criminosa, por si só, intranqüiliza a sociedade.

(…).

Condições pessoais favoráveis, mesmo não sendo garantidoras de eventual direito à liberdade provisória, devem ser devidamente valoradas, quando não demonstrada a presença de requisitos que justifiquem a medida constritiva excepcional.


Deve ser cassado o acórdão recorrido, bem como o decreto prisional, para revogar a prisão preventiva dos pacientes, sem prejuízo de que venha a ser decretada novamente a custódia, com base em fundamentação concreta.

Ordem concedida, nos termos do voto do Relator. (STJ – HC 49.786/ES – Rel. Min. Gilson Dipp – Quinta Turma – Pub. no DJ em 02.05.2006, p. 357).

Esta Turma também tem entendido que na ausência de elementos concretos, extraídos dos autos, capazes de demonstrar que a liberdade do réu infringe o artigo 312 do Código de Processo Penal, apenas a fuga não possui o condão de conduzi-lo ao cárcere.

Nesse sentido:

Prisão preventiva (requisitos). Decreto (falta de fundamentação).

Revogação (caso).

1. O ato judicial que decreta a prisão preventiva, diz a lei, bem como o ato que a revoga, “será sempre fundamentado”.

2. Por si só, a fuga do réu logo após a prática do crime não justifica se lhe imponha preventivamente a prisão, mormente quando houve, no caso, posterior apresentação espontânea.

3. Da mesma forma, levando-se em conta apenas a gravidade abstrata dos fatos, a garantia da ordem pública e a repercussão do delito, faltam ao decreto de imposição da preventiva os indispensáveis fundamentos justificativos.

4. Despido o ato judicial de suficiente fundamentação, carece de

legalidade; caso, portanto, de constrangimento ilegal.

5. Habeas corpus deferido. (STJ – HC 83293/GO – Relator Ministro Nilson Naves – DJ 19/11/07, p. 298).

PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS . HOMICÍDIO. 1. FALTA DE INDICAÇÃO DE ELEMENTOS CONCRETOS A JUSTIFICAR A MEDIDA. PERIGO À ORDEM PÚBLICA FUNDADO EM MERAS SUPOSIÇÕES. REPRODUÇÃO DOS TERMOS LEGAIS. MOTIVAÇÃO INIDÔNEA. OCORRÊNCIA. 2. FUGA DO PACIENTE. ANÁLISE DA LEGALIDADE DA PRISÃO. POSSIBILIDADE. 3. DECRETO MAL FUNDAMENTADO. TENTATIVA DE COMPLEMENTAÇÃO PELO TRIBUNAL A QUO. IMPOSSIBILIDADE. 4. ORDEM CONCEDIDA.

1. Ilegal é a prisão mantida por força de decisão calcada em meras suposições e que se limita a reproduzir os termos da lei, sem indicar elementos concretos a justificar a medida.

2. A fuga do paciente não obsta a análise da legalidade do decreto de prisão.

3. Não se admite a complementação de decreto de prisão preventiva mal fundamentado pelo tribunal a quo.

4. Ordem concedida para revogar a prisão preventiva. (STJ – HC 78252/PE – Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura – DJ 18/02/08, p. 69).

No presente caso, não há razões concretas para conduzir ao cárcere o paciente, ante a ausência de dados concretos a justificarem a medida excepcional.

Posto isto, concedo a ordem para revogar a prisão preventiva do paciente, contudo, condiciono a medida à assinatura de termo de comparecimento a todos os atos do processo, cuja lavratura delego ao Juiz de primeiro grau.

Expeça-se alvará de soltura se por outro motivo não estiver preso.

É como voto.

MINISTRA JANE SILVA

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