Direito civilizado

Sem julgamento e, nele, condenação não pode haver castigo

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30 de junho de 2008, 14h35

A barbárie é fonte copiosa da etimologia jurídico-penal. É dela que nos advêm termos como defenestração: literalmente o ato de atirar alguém pela janela, fenestra em latim. Lapidação vem igualmente do latim, lapidatio-onis, com o significado primitivo de apedrejamento de pessoas apontadas como autoras de delitos, sobretudo de mulheres acusadas de adultério. Linchamento entrou no glossário sociológico por obra do capitão William Lynch, que, durante a guerra da independência dos Estados Unidos, adotou a prática de executar sumariamente suspeitos, sem o devido processo legal.

Pena — qualquer que seja — antes do julgamento definitivo é um espectro recorrente que ronda o Direito punitivo. Agora mesmo assistimos a propostas de defenestração, lapidação e linchamento políticos que afrontam dois dos mais vetustos e civilizados princípios garantistas do Direito Penal, quais sejam o da presunção da inocência e do devido processo legal.

Consagrada primeiramente na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada pela gloriosa Revolução Francesa de 1789, figura a garantia da não-culpabilidade ante tempus no inciso LVII do artigo 5º da Constituição do Brasil: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. É dizer, antes de mais nada cumpre que haja julgamento legal e dele resulte uma sentença, e a seguir, imperativo é que todos os recursos do réu tenham sido apreciados ou esgotados.

Condenado, então, por sentença transitada em julgado, o acusado enfim será considerado culpado e, a depender do caso, sofrerá perda ou restrição de direitos que integram seu patrimônio jurídico. A lei democrática e civilizada não se compadece, no entanto, com a pena temporã. Focando os reflexos do julgamento criminal no Direito Eleitoral, importa colocar em destaque que o artigo 15 da Constituição, ao vedar a inibição de direitos políticos, só a admite quando houver “condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos.”

Sob inspiração de movimentos de índole punitiva, que, estimulados pela opinião publicada, florescem no Judiciário e no Congresso Nacional, pretende-se positivar na legislação eleitoral o impedimento de candidatura de pessoas que tão só estejam sendo processadas criminalmente. Bastaria o pré-candidato estar denunciado como incurso em um dos numerosos artigos do nosso Código Penal ou de leis extravagantes de natureza criminal para que o registro de sua candidatura merecesse indeferimento. Não importaria fosse parlamentar de vários mandatos, e, menos ainda, não ter sido condenado sequer em primeira instância.

No Senado Federal, tramita um projeto que determina que a Justiça Eleitoral informe aos eleitores que tais e quais candidatos respondem a este ou aquele processo em juízo — a despeito da escassa ou da severa gravidade da infração imputada ou mesmo da inexistência de decisão de procedência da acusação. Uma simples ação penal pela suposta e teórica prática de delito contra a honra (aqui incluídos os — agora em quarentena — chamados crimes de imprensa), uma briga de vizinhos com decorrência de lesões leves, permitiriam o impedimento do exercício de um direito fundamental do cidadão, o de ser elegível, de se candidatar a cargo eletivo. Até adversários inescrupulosos poderiam tentar valer-se de expediente insensato para alijar concorrentes do pleito.

Na identificação de mecanismos que aperfeiçoassem nosso sistema eleitoral, já pensei diversamente, mas, parece não caber à Justiça fazer prejulgamentos ou mesmo apresentar currículo de candidatos. É o eleitor que decide em quem e porque vota, apesar do baixo nível da representação que tem emergido das urnas nos últimos tempos. São o preço e as dores da democracia…

O contrário entendimento consubstancia pensamento jurídico subvertido, formulado com o método da posteriori ratione, para aplicar as leis de trás para frente, adotando hipótese incerta do futuro na concretude do presente. Em bom vernáculo, colocar o carro à frente dos bois. Isto não é bom Direito. Talvez se equipare ao desatino dos boêmios que atiraram seus adversários pela janela (defenestratio), no famoso episódio de 23 de maio de 1618, dando início à Guerra dos Trinta Anos. Quem sabe estará lastreado na lei mosaica do apedrejamento de mulheres a partir de uma denúncia de infidelidade, ou no “julgamento” sumário do capitão Lynch.

O simples indiciamento em inquérito (mesmo os emoldurados com os hollywoodianos espetáculos que divertem a embevecida e desavisada multidão telespectadora) ou mesmo a precária instauração de ação penal — que também pode acabar em absolvição — não podem gerar punição antecipada de qualquer natureza, máxime a que limita direitos políticos.

Há situações específicas e extraordinárias em que se tolera o afastamento temporário de garantias constitucionais do cidadão, quando absolutamente indispensáveis à investigação criminal, a exemplo da violação do sigilo fiscal, bancário, telemático, telefônico, etc., e as de natureza cautelar, como a prisão (em flagrante, temporária ou preventiva) que visam a garantir a marcha normal do processo, a investigação em curso, a defesa social ou a aplicação da lei. Servem estas medidas excepcionais ao processo, não à Justiça. Mas falar-se em pena ou restrição de direitos tendo-se em vista o conteúdo da acusação isto pressupõe, necessariamente e sempre, um julgamento de mérito, em que sejam assegurados contraditório e defesa ampla.

O due process of law é condição de legitimidade para o exercício do poder estatal de punir e, como dito, punição só com sentença de que não caiba mais recurso. A propósito da lapidação, a lição está no Novo Testamento: escribas e fariseus conduziram suposta adúltera à presença de Jesus Cristo, lembrando-O de que ela deveria ser apedrejada. Como resposta, receberam uma exortação que atravessa milênios: quem não tiver pecados, atire a primeira pedra. Dispersaram-se os acusadores, e o Mestre indagou à acusada: “Mulher, onde estão aqueles teus acusadores? Ninguém te condenou?” Como ela negasse, redargüiu-lhe Ele: “Nem eu tampouco te condeno; vai e não tornes a pecar.” (João 8:11).

A moral do bíblico episódio traz no seu bojo a matriz do direito civilizado: sem julgamento e, nele, condenação não pode haver castigo. Em minha já longa trajetória de advogado criminalista, perdi a conta das vezes em que entrei no tribunal com um acusado de cometer crime e saí acompanhado de um homem declarado inocente. Quem deve tem de pagar, mas, como está afirmado no Livro de Eclesiastes, “para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento debaixo dos céus”.

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