Operação Espetáculo

Entrevista: juíza federal Simone Schreiber — Parte 2

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30 de junho de 2008, 14h42

Há uma engrenagem que faz com que haja a exposição excessiva de acusados por crimes — muitas vezes tratados como culpados pela imprensa. O bom funcionamento dessa engrenagem faz bem para a imagem da Polícia Federal, mas muito mal para o direito de defesa e para o devido processo legal.

É o que pensa e explica a juíza federal Simone Schreiber, na segunda parte da entrevista concedida ao site Consultor Jurídico. Ao analisar como é possível garantir ao réu o direito a um julgamento justo, Simone explica de que maneira policiais, promotores e, principalmente, juízes contribuem para o excesso da imprensa.

A juíza criticou as ações midiáticas da Polícia Federal. “Muitos desses espetáculos são desnecessários”. Simone explica que para a operação espetaculosa ter sucesso são necessárias a decretação de busca e apreensão e a prisão temporária. Isso porque é durante a deflagração das operações e o cumprimento dos mandados que os investigados têm suas casas invadidas e saem algemados.

“Quando os juízes banalizam as prisões temporárias, estão contribuindo para a propaganda da PF”, afirma. Ela lembra que, hoje, a Polícia Federal é mais prestigiada do que o Congresso e o Judiciário, em parte devido à propaganda que faz através das operações. “Acho que os juízes se sentem pressionados para receber rapidamente a denúncia e para manter as pessoas presas. Isso tudo faz parte do pacote operação da Polícia Federal.”

A juíza aborda o tema com a propriedade de quem lida com isso todos os dias e de quem já sentiu na pele o peso de ser denunciada. Simone foi recentemente acusada de peculato e estelionato junto com outros quatro juízes federais. A denúncia, apresentada em dezembro ao Superior Tribunal de Justiça, ainda não foi recebida.

Na entrevista, ela também defendeu que o Judiciário deve ser intransigente na proibição de provas ilícitas no processo e comentou sobre os vazamentos de informações sigilosas para a imprensa. Simone Schreiber recebeu o ConJur em seu gabinete, onde explicou sua tese publicada no livro A publicidade opressiva de julgamentos criminais (Editora Renovar), que será lançado na próxima quinta-feira (3/7).

Na primeira parte da entrevista (clique aqui), a juíza defendeu que a liberdade de expressão não é um direito absoluto, mas a proibição de reportagens deve ser medida excepcional.

Leia a segunda parte da entrevista

ConJur — Em que medida a Polícia contribui para que fatos sejam retratados de maneira que prejudicam os acusados?

Simone Schreiber — As operações da Polícia Federal são totalmente midiáticas. Muitos desses espetáculos são desnecessários. Sou juíza criminal e também tenho operações da PF na minha vara. Normalmente, eu não defiro as prisões temporárias, porque as acho desnecessárias. Sei que o espetáculo da operação tem que ter dois ingredientes.

ConJur — Quais?

Simone Schreiber — A busca e apreensão e a prisão temporária. Sai todo mundo preso, algemado, dentro do camburão. Há um espetáculo de humilhação durante a prisão temporária. É muita propaganda institucional da Polícia. A PF é uma instituição que, hoje, goza de um prestígio imenso perante a sociedade. É mais prestigiada que a Justiça e o Congresso por causa da política de propaganda institucional que faz através dessas operações.

ConJur — E qual a responsabilidade do juiz nessas operações?

Simone Schreiber — Quando os juízes banalizam as prisões temporárias, estão contribuindo para a propaganda da PF. A medida de busca e apreensão, geralmente, é muito útil como meio de prova. Mas, normalmente, nos mandados de busca e apreensão que defiro, incluo uma proibição expressa para que a Polícia não seja acompanhada de jornalistas.

ConJur — Por quê?

Simone Schreiber — Porque com a busca e apreensão já se invade a privacidade da pessoa desproporcionalmente. É uma medida invasiva. A pessoa está em casa, dormindo, são seis horas da manhã e entra a Polícia para vasculhar suas coisas, pegar seus papéis, documentos pessoais, computador. Essa invasão de privacidade é muito forte e só se justifica pelo interesse na solução da prova. Quando se permite que um jornalista acompanhe essa busca, o juiz está ampliando demasiadamente a violação da privacidade do investigado.

ConJur — Como o jornalista pode ter acesso às informações sem que essa privacidade seja violada?

Simone Schreiber — Ele pode ter, depois, as informações pertinentes à investigação. Se for o caso, pode ter acesso a uma cópia do processo. Ou o policial pode conceder uma entrevista coletiva. As operações da Polícia Federal são um fator muito negativo sobre o processo, devido à exposição exagerada das pessoas que estão sendo investigadas. O juiz tem de colocar sempre isso na balança.


ConJur — Como o Judiciário deve lidar com provas obtidas de maneira ilegal?

Simone Schreiber — Isso é muito complicado. Se a Polícia e o Ministério Público não conseguiram produzir prova lícita no processo, paciência. É o preço que pagamos por viver em uma democracia. Teve um caso em que o Supremo decidiu que, enquanto não houvesse lei regulamentando a interceptação telefônica, não se poderia interceptar nem com autorização do juiz.

ConJur — Mas a Constituição não previa a interceptação?

Simone Schreiber — Sim, a Constituição de 1988 estabelece a possibilidade de interceptações telefônicas nas formas em que a lei prevê, com autorização do juiz. Até 1996, não havia nenhuma lei regulamentando o dispositivo constitucional. Alguns juízes consideraram que a Constituição era suficiente. Conversas telefônicas foram gravadas e fatos criminosos apurados. O Supremo entendeu que, enquanto não houvesse lei, toda interceptação era ilícita e as provas derivadas daquela gravação, como apreensão de documentos, também não poderiam ser usadas.

ConJur — E o Supremo manteve o entendimento durante o período em que não havia lei?

Simone Schreiber — Quando chegou um caso de apreensão de uma quantidade expressiva de cocaína, os ministros começaram a não ser tão rigorosos na proibição da prova ilícita e fizeram um pouco de discurso de temperamento. Na época, o ministro Nelson Jobim disse que, se a prova era ilícita, deveriam devolver a cocaína para o criminoso. Se o Supremo tivesse tido coerência na proibição da prova ilícita, teria dito: não vamos devolver a cocaína para o criminoso e nem condená-lo, porque a materialidade do crime foi confirmada por uma prova derivada de prova ilícita. Não são todos que amenizam. O ministro Marco Aurélio tem uma postura firme de proteção dos direitos.

ConJur — E é muito criticado por isso.

Simone Schreiber — Sim. Eu já acho que ele é bem firme nas proteções dos direitos dos acusados, o que é importante no momento em que vivemos. Há um movimento para tentar aproveitar um pouquinho as provas que derivam de provas ilícitas. Não acho isso positivo. No processo penal, tem que haver a defesa intransigente dos direitos dos acusados. Claro que não se pode obstar a investigação. Só que ela tem que ser feita dentro de um limite a ser respeitado.

ConJur — É preciso investigar dentro dos limites legais. Mas, hoje, isso é possível?

Simone Schreiber — Não só é absolutamente possível apurar os crimes, como processar, condenar e punir, respeitando a Constituição. O estado tem de estar instrumentalizado para agir desse modo.

ConJur — Há quem diga que a Polícia investiga e entrega as informações para imprensa, que as divulga. Depois, o Ministério Público inclui as notícias para “rechear” o processo. E o juiz, por fim, fundamenta a decisão, inclusive, com as notícias.

Simone Schreiber — Acho que muitos jornalistas investigativos têm uma relação promíscua com a Polícia. É uma relação de cumplicidade, de auxilio recíproco, em que a Polícia vira fonte e o jornalista, quando sabe de alguma informação, repassa ao policial. Isso não acontece só no Brasil. Um americano fez uma pesquisa em que revela que, estatisticamente, a maioria das reportagens é prejudicial ao réu. As defesas não são tão interessantes como fonte para o jornalista. São os órgãos de repressão, a Polícia e o Ministério Público, que primeiro têm as informações. Quando o promotor vai prover o jornalista de informação, existe um acordo de o jornalista veicular aquilo para depois a notícia ser usada para pressionar ou influenciar o juiz.

ConJur — Os juízes conhecem essa relação do policial e do promotor como fonte do jornalista?

Simone Schreiber — Tem muito vazamento. É difícil acreditar que é o advogado quem vaza. Os advogados são sempre os últimos a ter as informações. E a troco de que vão vazar, para prejudicar o próprio cliente? O juiz quer acreditar que seus funcionários são pessoas sérias e idôneas e que ninguém tem nenhum tipo de relação escusa com jornalistas. Não sei se os juízes refletem sobre isso, mas acredito que os vazamentos acontecem na Polícia e, eventualmente, no Ministério Público. Acho que no caso da Polícia Federal é claramente uma estratégia institucional. Eles fizeram nome por meio da dobradinha com a imprensa.

ConJur — Não há punição para quem vaza?

Simone Schreiber — A lei de interceptação telefônica prevê que o vazamento é crime. Só que não tem a criminalização do jornalista. A criminalização é da pessoa que tinha a informação sigilosa e vazou. A não ser que se faça uma construção e se diga que o jornalista também pode praticar esse crime. Como ninguém apura, fica o dito pelo não dito. A não ser que sejam muito ingênuos, os juízes têm sim idéia dessa relação. Alguns juízes, eventualmente, podem concordar e também participar como fonte. Cada juiz tem sua maneira de ver o mundo e pode achar que é importante trabalhar com a mídia. Sou uma das pessoas que pensa diferente na Justiça Federal.


ConJur — Por quê?

Simone Schreiber — A maioria dos juízes federais criminais acredita que tem um papel no combate à impunidade. Para mim, juiz não tem essa função. Se o juiz está combatendo a impunidade com o Ministério Público e com a Polícia, não sobra ninguém para pensar um pouco no lado do réu. O juiz tem que ter uma postura muito mais serena, imparcial, de árbitro para poder receber com o mesmo espírito desarmado as teses de acusação e de defesa. Se o juiz já está se colocando em posição de combate à impunidade, ele que vai punir efetivamente as pessoas. É uma posição equivocada e que não condiz com a função do Judiciário, do processo penal e do Estado Democrático de Direito.

ConJur — A senhora disse que no caso do vazamento fica o dito pelo não dito. Não tem como descobrir quem vazou?

Simone Schreiber — Quem vai apurar isso? Porque o juiz não investiga. Não é próprio da função do juiz apurar os vazamentos. Se o juiz se depara no processo com vazamento de informações sigilosas, tem que abrir vista para o Ministério Público para que o órgão tome as providências cabíveis. Quem determina a realização de investigação é o Ministério Público e a Polícia. Vamos supor que não foi o MP que vazou. E ele vai determinar à Polícia Federal que investigue esse vazamento.

ConJur — A partir do momento em que vazou e que os dados já estão na imprensa, há sentido em manter o sigilo?

Simone Schreiber — Essa é uma discussão interessantíssima. Primeiro, o segredo de Justiça é banalizado no Brasil. Por incrível que pareça, apesar de eu tratar do direito do réu a um julgamento justo, sustento que os processos têm que ser públicos. Os jornalistas não param para discutir qual o critério usado para o processo correr em segredo de Justiça. O segredo só acaba servindo para priorizar determinados veículos ou jornalistas que têm uma relação mais próxima com algumas fontes, em detrimento do resto da imprensa. Se tivesse publicidade, teria mais transparência e conhecimento do que se passa na Justiça.

ConJur — É possível decretar sigilo de apenas alguns dados?

Simone Schreiber — Sim. Em determinados processos, o juiz pode determinar o sigilo de alguns dados privados dos réus, como a declaração do imposto de renda, do banco, movimentação financeira, a conversa telefônica que ele travou, pois está dentro da esfera de privacidade. Tem um caso americano bem interessante. Em uma sessão de Júri, a defesa pediu a decretação do sigilo. O julgamento ocorreu sem público e o réu foi absolvido. Os jornais foram discutir esse julgamento na Suprema Corte. A Suprema Corte anulou o julgamento, pois entendeu que houve violação indevida do princípio da publicidade e que o juiz não alegou motivos suficientes para decretar sigilo. Essa discussão não ocorre no Brasil. A decretação de sigilo também viola a liberdade de expressão na medida em que impede os jornalistas de colherem informações.

ConJur — Na sua tese, a senhora aborda a subjetividade do jornalista. Mas como o juiz consegue abstrair informações que já tenha a respeito, por exemplo, de um político citado constantemente na imprensa?

Simone Schreiber — É difícil. Às vezes, o juiz tem de se desarmar ou vencer preconceitos a respeito das pessoas que está julgando. O juiz tem que tentar esquecer um pouco o que a pessoa é e se concentrar no que ela fez ou no fato pelo qual ela está sendo acusada. O juiz também vive no mundo, convive com outras pessoas. Se chegar à conclusão de que a pessoa que está julgando é alguém de quem já tenha uma impressão anterior, que vai impedir de ter isenção no julgamento, é melhor simplesmente dizer que não pode julgar. O juiz sempre tem essa possibilidade de se declarar suspeito para julgar um processo. Eventualmente, uma das partes pode argüir a suspeição do juiz e isso é absolutamente democrático.

ConJur — Há um número de políticos muito grande sendo acusados pelos mais diversos motivos. No Estado de São Paulo, por exemplo, cerca de 440 prefeitos respondem a processo.

Simone Schreiber — Mas não é porque são todos corruptos. É um furor acusatório. Os juízes não têm muito critério para receber denúncia.

ConJur — E quais os critérios para receber denúncias?

Simone Schreiber — Precisa fundamentar. Por exemplo, há depoimento de testemunha, documento, perícia grafotécnica, dados que dão suporte às acusações? Se sim, acolhe-se. Também é preciso ter justa causa. Os juízes não são criteriosos para receber denúncia como deveriam ser. Para enfrentar isso, serve o Habeas Corpus. Às vezes, acontece de a pessoa trancar a denúncia só no Supremo. Isso é agravado com as operações da Polícia Federal.

ConJur — Por quê?

Simone Schreiber — Tem operação da PF que envolve 50, 30 pessoas. Sempre tem alguém que está ali de bobeira. O juiz decreta a prisão temporária, pode prorrogá-la, daqui a pouco tem uma denúncia de 50 páginas do Ministério Público com pedido de prisão preventiva, falando de 20 pessoas que estão sendo acusadas de formar quadrilha para praticar vários crimes graves. Como juíza, tenho que analisar o recebimento dessa denúncia no mesmo dia em que me entregam, porque se eu não decretar a preventiva hoje, amanhã eu vou ter que soltar essas pessoas. Como é que o juiz pode ter serenidade? A operação deflagrada tem vários monitoramentos telefônicos, a busca e a apreensão acabaram de ser feitas.


ConJur — Dá tempo de fazer o exame de todo material?

Simone Schreiber — Não há tempo. Pode ser que alguns juízes se sintam afrontados com o que vou dizer. Acho que os juízes se sentem pressionados para receber rapidamente a denúncia e para manter as pessoas presas. Isso tudo faz parte do pacote operação da Polícia Federal.

ConJur — O que a senhora acha da iniciativa do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro de controlar as autorizações para interceptações telefônicas?

Simone Schreiber — Eu entendo a preocupação, mas não concordo com o remédio proposto. Porque a lei diz que só pode interceptar o telefone de uma pessoa se o juiz fizer duas avaliações: se já existe indício e se a medida é necessária. Já tive casos na minha vara em que a Polícia fez representação, explicando a suposta participação de cada investigado no crime. Na hora de avaliar o pedido de monitoramento, tinha número de telefone atribuído a uma pessoa que não estava citada em nenhum momento na representação policial. Mandei a Polícia esclarecer, já que não tinha nenhuma argumentação para interceptação de um dos números. A Polícia não respondeu. Claro que o juiz tem que, novamente, ser extremamente criterioso e cuidadoso. Só que o remédio não é o controle administrativo. Quanto menos gente sabe da interceptação, menor o risco de vazamento.

ConJur — Que tipo de controle é possível fazer, então?

Simone Schreiber — É uma questão de ter intransigência na defesa de princípios. Se o juiz deferir interceptação telefônica sem dar motivação específica, prorrogações sucessivas que se estenderam por um ano sem dizer o motivo, a prova é ilícita. O tribunal, o STJ e o Supremo têm que ter coragem de dizer que não aceitam aquela prova. Se uma grande atividade criminosa for desvendada em conversa telefônica ilícita, tchau e benção. É para aprender a fazer direito, respeitando o direito das pessoas. Acho que o juiz de primeiro grau pode fazer um controle muito mais forte e criterioso das interceptações. E o Congresso Nacional tem soberania para, querendo, restringir um pouco mais o tempo em que a pessoa possa ser monitorada. Talvez 30 ou 45 dias prorrogáveis mais duas vezes. Porque 15 dias é tempo rápido demais.

ConJur — As conversas de todos os denunciados no mesmo processo são repassadas para todos os advogados?

Simone Schreiber — Sim. E dizem que, com isso, estão expondo indevidamente a intimidade de todos os co-réus. Só que a intimidade de todos os acusados já foi exposta para Polícia, para o MP e para o juiz. O que se espera do advogado é que se conduza de forma ética, tal como o promotor e o delegado. Como impedir o advogado de ter acesso ao material se, de repente, em uma conversa do co-réu com outro acusado, é dito de forma inequívoca que determinado investigado não está envolvido na história? Só quando o advogado tiver condição de ter acesso a todo esse material vai poder realmente exercer o direito de defesa.

ConJur — Outra questão recorrente, citada como problema dos grampos, referem-se às interpretações que fazem de determinada conversa.

Simone Schreiber — Na sua privacidade, você pode falar coisas absurdas. Já é humilhante ter a conversa exposta e ter de justificar porque estava falando de uma forma ou de outra. É preciso ter muita cautela ao utilizar conversas particulares como prova no processo, inclusive expondo trechinhos de falas particulares descontextualizadas. Teve uma investigação em que a polícia colocava no relatório: “Fulano conversou possivelmente com uma prostituta contratando um programa”. O investigado não só era casado como a mulher dele também estava na investigação. Por que colocar isso no relatório? Qual é o preparo das pessoas que têm acesso a esse tipo de informação?

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