Força do povo

Reforma processual penal tornou quesitos do júri mais simples

Autores

  • Eloísa de Sousa Arruda

    é mestre e doutora em Direito pela PUC-SP onde leciona Direito Processual Penal e Justiça Penal Internacional nos cursos de graduação e pós-graduação. Procuradora de Justiça aposentada.

  • César Dario Mariano da Silva

    é procurador de Justiça (MP-SP) mestre em Direito das Relações Sociais (PUC-SP) especialista em Direito Penal (ESMP-SP) professor e palestrante autor de diversas obras jurídicas dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal Manual de Direito Penal Lei de Drogas Comentada Estatuto do Desarmamento Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade publicadas pela Editora Juruá.

28 de junho de 2008, 0h00

Após anos de acirradas discussões no Congresso Nacional foi publicada a Lei 11.689, de 9 de junho de 2008, que altera quase que na íntegra o procedimento nas ações penais relativas aos crimes dolosos contra a vida e seus conexos. A Lei entrará em 9 de agosto de 2.008. Considerando a grande incidência de nulidades, em face da complexidade causada pela elaboração e votação do questionário, achou por bem o legislador introduzir alterações substanciais na sua formulação.

Serão redigidos poucos quesitos, que se pretende sejam mais objetivos e de fácil intelecção. A elaboração, na forma de proposições afirmativas, simples e distintas, tomará por base a pronúncia, eventuais decisões posteriores que julgaram admissível a acusação, o interrogatório do acusado (autodefesa) e as alegações das partes.

A decisão será obtida por maioria, ou seja, por quatro ou mais votos, uma vez que o conselho de sentença continuará composto por sete jurados. No primeiro quesito, se indagará sobre a materialidade do fato, ou seja, sobre a existência concreta do crime, o que, na maioria das vezes, pode-se demonstrar com laudo elaborado por peritos médicos. No segundo quesito, serão os jurados indagados sobre a autoria ou a participação no crime.

Mas a grande inovação reside no quesito relativo às teses absolutórias. A questão posta aos jurados será simplesmente se eles absolvem o acusado. Assim, invocada qualquer causa que exclua o crime ou isente o réu de pena, será ela incluída num só quesito, a ser votado pelos julgadores leigos nesse momento. Ou seja, em uma única pergunta estarão incluídas todas as teses defensivas, mesmo que alternativas e aparentemente incompatíveis. Este quesito somente será votado quando reconhecidas a materialidade e a autoria ou participação no crime.

A despeito da inegável simplicidade da pergunta posta aos jurados por determinação do legislador, alguns problemas certamente advirão.

Sustentada mais de uma tese defensiva, não se saberá ao certo qual o fundamento da absolvição, visto que os julgadores populares julgam pelo sistema da íntima convicção, não necessitando explicitar as razões do seu convencimento. E a defesa poderá alegar diversas teses, antagônicas ou não, ou até mesmo pedir clemência aos jurados, que poderão acolhê-las, dando ensejo à absolvição.

Com efeito, apresentadas diversas teses, reconhecendo quatro ou mais jurados uma delas, o resultado será a absolvição, mesmo que o motivo do convencimento seja distinto.

No procedimento estabelecido pelo Código de Processo Penal de 1941, somente seria o caso de absolvição se ao menos quatro dos jurados acolhessem a mesma tese. Pelas novas regras, caso sejam apresentadas hipoteticamente quatro teses de defesa (ex: legítima defesa real, legítima defesa putativa, estado de necessidade e clemência), aceitando cada jurado uma delas, o resultado será a absolvição, sem haver a possibilidade de se saber qual o seu fundamento. Assim, mesmo que as razões da persuasão sejam diversas, poder-se-á chegar a um veredicto absolutório.

O impasse atingirá obviamente a fase recursal, já que não será possível saber qual a tese acolhida. Parece-nos que a acusação, desejando recorrer da decisão dos jurados, deverá rebater todas as teses apresentadas em plenário e demonstrar que são elas manifestamente contrárias às provas dos autos.

O juízo de segundo grau enfrentará a mesma dificuldade no julgamento do recurso, uma vez que deverá apreciar cada uma das teses apresentadas pela defesa constantes da ata de julgamento.

As causas de diminuição de pena alegadas pelas partes, ou pelo próprio acusado, serão submetidas à votação quando os jurados responderem “não” ao quesito que trata da absolvição. Assim, o privilégio previsto no artigo 121, parágrafo 1º, do Código Penal deverá nesse momento ser indagado aos jurados pelo juiz.

Também após o afastamento da absolvição é que virá o questionamento sobre a ocorrência de erro na execução (artigo 73 do CP), caso constante de decisão que a julgue admissível. Logo em seguida, serão submetidas à apreciação dos jurados as causas de aumento de pena e qualificadoras, caso reconhecidas na pronúncia.

Salientamos que não mais constarão do questionário as agravantes e as atenuantes genéricas. Sustentadas pela acusação ou pela defesa durante os debates, caberá ao juiz presidente da solenidade analisar sua ocorrência, quando da prolação da sentença condenatória. O quesito relativo ao crime tentado será votado em seguida ao que cuida da autoria.

Apresentada tese de desclassificação do crime de homicídio para outro da competência do júri, o quesito será incluído logo em seguida ao que trata da autoria, como, por exemplo, no caso da pretendida desclassificação para infanticídio, tendo sido o réu pronunciado por homicídio.


Quando sustentada no plenário como única tese defensiva a da desclassificação para crime de competência do juiz singular, a pergunta correspondente deverá ser formulada após o segundo quesito.

Se a principal tese da defesa for a da absolvição, figurando como tese secundária a da desclassificação para outro crime não doloso contra a vida, o quesito correspondente deverá ser incluído logo após o terceiro.

Acolhida pelos jurados a tese de crime culposo (desclassificação imprópria), poderá ser indagado deles se existe causa de aumento de pena inerente a essa modalidade de delito, como as previstas no artigo 121, parágrafo 4º, primeira parte, do Código Penal.

Quanto ao excesso nas excludentes de ilicitude, a situação mostra-se um pouco mais complexa. Apresentada tese de ocorrência de excludente da ilicitude (artigo 23 do CP), a acusação poderá contrariá-la e alegar, entre outros fundamentos, o excesso. Do mesmo modo, poderá a defesa apresentar a ocorrência de excesso culposo como tese principal ou subsidiária. Caso os jurados condenem o acusado, deverão ser perguntados se o excesso foi culposo. Essa indagação deverá ser feita logo após o terceiro quesito, uma vez que o acolhimento da referida tese importa desclassificação para crime culposo. Negada pelos jurados a ocorrência de excesso culposo, será o caso de condenação por crime doloso, passando-se à votação dos demais quesitos, se for o caso.

O certo é, contudo, que a tese de excesso culposo deverá ser efetivamente sustentada pela defesa, pela acusação ou mesmo pelo acusado, sem o que o juiz não poderá incluí-la no questionário. Parece-nos que será uma forma de superar a dificuldade existente no que tange à quesitação, porque, ao ser pedido o reconhecimento do excesso pela acusação (excesso doloso) e pela defesa (excesso culposo), advindo condenação, não seria possível saber qual das teses os jurados acolheram. Por isso, a necessidade de quesitar o excesso culposo, quando alegado.

Para que não ocorra confusão quando do julgamento pelos jurados, visto que os quesitos devem ser claros e simples, ocorrendo mais de um crime, os mesmos deverão ser formulados em séries distintas. Do mesmo modo, havendo mais de um acusado, para cada um deles deverá haver um questionário.

Procuramos enfrentar no presente artigo algumas questões que percebemos imediatas na elaboração do questionário. Outras certamente surgirão no dia-a-dia dos julgamentos pelo júri, demandando solução por parte da doutrina e da jurisprudência.

Alguns modelos de questionário

Homicídio qualificado

1) Os ferimentos descritos no laudo de exame necroscópico de fls. 25 foram a causa da morte da vítima João Paulo dos Santos?

2) O acusado Carlos da Silva, no dia 25 de janeiro de 2006, por volta das 23h, na Rua do Porto, n. 26, Jabaquara, nesta Comarca de São Paulo, efetuou disparos de arma de fogo contra a vítima, causando-lhe esses ferimentos?

3) O jurado absolve o acusado?

4) Ao efetuar os disparos de arma de fogo pelas costas o acusado agiu à traição?

Homicídio tentado

1) A vítima João Paulo dos Santos sofreu os ferimentos descritos no laudo de exame de corpo de delito de fls. 25?

2) O acusado Carlos da Silva, no dia 25 de janeiro de 2006, por volta das 23h, na Rua do Porto, 26, Jabaquara, nesta Comarca de São Paulo, efetuou disparos de arma de fogo contra a vítima, causando-lhe esses ferimentos?

3) Assim agindo iniciou o acusado a execução de crime de homicídio, que não se consumou por circunstâncias alheias à sua vontade, uma vez que a vítima foi prontamente socorrida por terceiros?

4) O jurado absolve o acusado?

Desclassificação (tese única)

1) Os ferimentos descritos no laudo de exame necroscópico de fls. 25 foram a causa da morte da vítima João Paulo dos Santos?

2) O acusado Carlos da Silva, no dia 25 de janeiro de 2006, por volta das 23h, na Rua do Porto, n. 26, Jabaquara, nesta Comarca de São Paulo, efetuou disparos de arma de fogo contra a vítima, causando-lhe esses ferimentos?

3) Ao efetuar os disparos de arma de fogo o acusado quis o evento morte ou assumiu o risco de produzi-lo?

4) O jurado absolve o acusado?

Desclassificação (tese subsidiária)

1) Os ferimentos descritos no laudo de exame necroscópico de fls. 25 foram a causa da morte da vítima João Paulo dos Santos?

2) O acusado Carlos da Silva, no dia 25 de janeiro de 2006, por volta das 23h, na Rua do Porto, n. 26, Jabaquara, nesta Comarca de São Paulo, efetuou disparos de arma de fogo contra a vítima, causando-lhe esses ferimentos?

3) O jurado absolve o acusado?

4) Ao efetuar os disparos de arma de fogo o acusado quis o evento morte ou assumiu o risco de produzi-lo?

Excesso culposo na legítima defesa


1) Os ferimentos descritos no laudo de exame necroscópico de fls. 25 foram a causa da morte da vítima João Paulo dos Santos?

2) O acusado Carlos da Silva, no dia 25 de janeiro de 2006, por volta das 23h, na Rua do Porto, n. 26, Jabaquara, nesta Comarca de São Paulo, efetuou disparos de arma de fogo contra a vítima, causando-lhe esses ferimentos?

3) O jurado absolve o acusado?

4) Ao efetuar os disparos de arma de fogo quando a vítima já se encontrava caída, o acusado excedeu culposamente os limites da legítima defesa?

Erro na execução

1) Os ferimentos descritos no laudo de exame necroscópico de fls. 25 foram a causa da morte da vítima João Paulo dos Santos?

2) O acusado Carlos da Silva, no dia 25 de janeiro de 2006, por volta das 23h, na Rua do Porto, n. 26, Jabaquara, nesta Comarca de São Paulo, efetuou disparos de arma de fogo contra a vítima, causando-lhe esses ferimentos?

3) O jurado absolve o acusado?

4) Um dos projéteis disparos pelo acusado, desviando-se da direção desejada, por erro na execução, atingiu a vítima Carlos dos Reis, produzindo-lhe os ferimentos descritos no laudo de exame de corpo de delito de fls. 57?

Concurso de pessoas (participação)

1) Os ferimentos descritos no laudo de exame necroscópico de fls. 25 foram a causa da morte da vítima João Paulo dos Santos?

2) Terceira pessoa, no dia 25 de janeiro de 2006, por volta das 23h, na Rua do Porto, n. 26, Jabaquara, nesta Comarca de São Paulo, efetuou disparos de arma de fogo contra a vítima, causando-lhe esses ferimentos, tendo o acusado Carlos da Silva concorrido para a prática do crime, na medida que forneceu a arma para o executor?

3) O jurado absolve o acusado?

Ou:

1) Os ferimentos descritos no laudo de exame necroscópico de fls. 25 foram a causa da morte da vítima João Paulo dos Santos?

2) Terceira pessoa, no dia 25 de janeiro de 2006, por volta das 23h, na Rua do Porto, n. 26, Jabaquara, nesta Comarca de São Paulo, efetuou disparos de arma de fogo contra a vítima, causando-lhe esses ferimentos?

3) O acusado Carlos da Silva concorreu para a prática do crime, na medida que forneceu a arma para a terceira pessoa?

3) O jurado absolve o acusado?

Infanticídio

1) Os ferimentos descritos no laudo de exame necroscópico de fls. 25 foram a causa da morte da vítima?

2) A acusada Carla da Silva, no dia 25 de janeiro de 2006, por volta das 23h, na Rua do Porto, n. 26, Jabaquara, nesta Comarca de São Paulo, desferiu golpes de faca contra seu próprio filho, recém-nascido, logo após o parto e sob a influência de estado puerperal?

3) O jurado absolve a acusada?

Auto-aborto

1) A acusada Carla da Silva, no dia 25 de janeiro de 2006, por volta das 23h, na Rua do Porto, n. 26, Jabaquara, nesta Comarca de São Paulo, utilizando o medicamento Citotec, provocou aborto em si mesma?

2) O jurado absolve a acusada?

Aborto consentido

1) A acusada Carla da Silva, no dia 25 de janeiro de 2006, por volta das 23h, na Rua do Porto, 26, Jabaquara, nesta Comarca de São Paulo, consentiu que terceira pessoa nela provocasse aborto?

2) O jurado absolve a acusada?

Aborto provocado com o consentimento da gestante

1) O acusado José da Silva, no dia 25 de janeiro de 2006, por volta das 23h, na Rua do Porto, n. 26, Jabaquara, nesta Comarca de São Paulo, provocou aborto em Carla da Silva com o consentimento desta?

2) O jurado absolve o acusado?

Aborto provocado sem o consentimento da gestante

1) O acusado José da Silva, no dia 25 de janeiro de 2006, por volta das 23h, na Rua do Porto, n. 26, Jabaquara, nesta Comarca de São Paulo, provocou aborto em Regiane dos Reis sem o consentimento desta?

2) O jurado absolve o acusado?

Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio

1) No dia 25 de abril de 2005, por volta das 2h28min, na Rua Engenheiro Pereira Barreto, n. 123, nesta Comarca, Carlos de Campos, suicidou-se, ingerindo veneno, conforme laudo de exame necroscópico de fls. 35/36?

2) A acusada Márcia de Assis prestou auxílio para que a vítima se suicidasse, fornecendo-lhe o veneno?

3) O jurado absolve a acusada?

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