Execução agonizante

É possível enfrentar a fúria eólica da crescente divida tributária

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26 de junho de 2008, 13h44

Após quase 28 anos, o modelo de execução fiscal atualmente em vigor no Brasil mostra-se ineficaz e expõe inúmeros problemas a serem enfrentados. Disciplinado pela Lei 6.830/80, representou, à época, um avanço em relação ao Código de Processo Civil, então em vigor, posto que inovara na recuperação dos créditos tributários e outros a eles equiparados, trazendo disposições no intuito de otimizar a cobrança — atividade destinada a receber o crédito — da Fazenda Pública.

No atual contexto, ao tempo em que agoniza frente às inovações incorporadas ao regime comum do Código de Processo Civil, as quais agilizam e conferem maior eficácia à cobrança dos créditos privados, o atual sistema de cobrança judicial dos créditos inscritos na Dívida Ativa sobrecarrega, congestiona, paralisa o Poder Judiciário.

Segundo estudo desenvolvido pelo Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais (CEBEPEJ) e patrocinado pela secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, o número de execuções fiscais equivale a mais de 50% dos processos judiciais em curso no âmbito do Poder Judiciário. No caso da Justiça Federal, esta proporção é de 36,8%. O relatório Justiça em Números, divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça, no ano de 2005, alertou, por sua vez, que a taxa média de encerramento de controvérsias em relação às novas execuções fiscais ajuizadas, não chega a 50%, acarretando um crescimento de 15% do estoque de ações em tramitação na primeira instância da Justiça Federal. O valor final aponta para uma taxa de congestionamento médio de 80%, nos julgamentos em primeira Instância.

No âmbito federal, a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional tem revelado que, em média, a fase administrativa de cobrança do crédito tributário dura 4 anos, enquanto a fase judicial leva 12 anos para ser concluída, sendo que, menos de 1% do estoque da Dívida Ativa da União ingressa nos cofres públicos, a cada ano, por essa via. Em contrapartida, tal estoque, incluído o da Previdência Social, já alcança a cifra de R$ 600 bilhões e, desde que incorporado o que se encontra em litígio administrativo, chega-se à impressionante cifra de R$ 900 bilhões.

O diagnóstico sombrio abre caminho para a discussão sobre a viabilidade da adoção de um novo modelo que conduza à necessária eficiência da arrecadação tributária, desejável a um Estado democrático e republicano, comprometido com a efetivação dos direitos e garantias sociais, encartados na Constituição Federal.

Induvidosamente, a baixa eficiência na cobrança dos créditos inscritos na Dívida Ativa da Fazenda Pública produz graves distorções: afeta não só as contas públicas, pressionando a carga tributária para um patamar além do suportável; como intervém no ambiente da livre concorrência, na medida em que estimula o descumprimento das obrigações tributárias por parte de empresas que, sabedoras da ineficiência dos procedimentos de cobrança, não pagam ou protraem no tempo o pagamento de tributos e passam a concorrer, de forma desleal, com aquelas que honram pontualmente suas obrigações fiscais.

Com o propósito de alterar esse cenário, foi elaborado, pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, um anteprojeto de Lei de Execução Fiscal Administrativa. O aludido anteprojeto, instituindo a cobrança administrativa dos créditos da Fazenda Pública, foi debatido em audiência pública, promovida pelo Conselho de Justiça Federal em 2007. Os debates serviram de base para apresentação de um novo anteprojeto, menos ousado, bem mais cauteloso nas suas pretensões iniciais, orientado a propiciar a integração de uma fase administrativa de cobrança do crédito público com uma subseqüente fase judicial.

O processo de execução passaria a se desenvolver através de atos preparatórios, a cargo da Fazenda Pública, seguindo-se uma outra fase de acesso ao Poder Judiciário, na qual, se prevêem as impugnações do devedor aos atos de execução. Pelo novo texto, fica a Administração Fazendária com a responsabilidade de notificar, identificar o patrimônio penhorável do devedor e bloquear temporariamente os bens, para assegurar a posterior penhora, na fase judicial.

Propostas de alteração legislativa da espécie provocam acalorados debates, acesas controvérsias na comunidade jurídica e afiguram um desafio, já que deverão orientar-se para a eficiente satisfação do crédito, dotando a Fazenda Pública de meios mais eficazes de cobrança, sem, contudo, perder de vista a menor onerosidade ao devedor. Como pano de fundo, um cenário de globalização econômica em curso, cuja complexidade, pode oferecer, em alguns casos, novas oportunidades para a fraude e a sonegação fiscal.

No intuito de contribuir, sem pretensão alguma de desconsiderar as preocupações legítimas que conduzem ao necessário debate, no desiderato de que o texto proposto venha a condizer com a moldura constitucional brasileira, façamos algumas considerações em torno do tema.

Uma primeira consideração a ser feita, prende-se à necessidade de ter presente que a solução de litígios não pode ser uma reserva absoluta do Poder Judiciário, confundindo-se o sistema de justiça com o sistema dos Tribunais. Ressalte-se que países com estado de direito estabilizado há centenas ou várias dezenas de anos, solucionam a maior parte dos litígios, incluindo os que surgem no agitado campo do direito tributário, em sede administrativa.

Do mesmo modo, é preciso ter presente que a realização da idéia de direito não constitui um uso exclusivo do Poder Judiciário como, durante muito tempo, a velha inimizade ao Executivo, herdada do “Estado de polícia” do século XVIII, deu a entender.

Na nossa sociedade, tem resistido, de uma maneira bastante acentuada, a crença de que só o Poder Judiciário está em condições de realizar a idéia de direito e de assegurar, assim, um verdadeiro due process of Law. Entretanto, esta é uma concepção de todo inaceitável no Estado de Direito, em que, como é sabido, por força da sua própria natureza, todos os Poderes, naturalmente, cada um a seu modo, participam na realização da idéia de direito e na concretização do Estado de Direito. Por sua vez, entre os poderes do Estado, não se pode esquecer que a Administração tem especial relevo, por se tratar de um poder operacional, ao qual cabe aplicar e executar o ordenamento jurídico no dia a dia.

A consagração, no nosso ordenamento jurídico, da garantia fundamental de que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito" (artigo 5º, XXXV da Constituição 88) não impõe ao Juiz a tarefa estressante de "Cobrador do Fisco", mas sim, a de controle dos atos que excedam a lei e resvalem para a arbitrariedade.

O artigo 5º, inciso LV, do Texto Constitucional, por seu turno, assegura a todos os litigantes, no processo judicial e no processo administrativo, o contraditório e a ampla defesa. Tal previsão amplia a transparência administrativa e reforça o princípio de justiça, com o equilíbrio entre as partes, tornando as defesas iguais, as decisões objetivas e concisas, conforme o estabelecido pela vontade do legislador, na elaboração da lei.

Muitos consideram que resta violado o princípio do devido processo legal (artigo 5º, LIV da Constituição de 1988), qualquer proposta de execução fiscal que venha a prever atos expropriatórios por parte da Fazenda Pública. Nesse particular, os discordantes da constitucionalidade fazem uma pequena confusão conceitual. O Texto Maior fala em devido processo legal, que não pode ser confundido com devido processo judicial.

A Constituição dispõe que ninguém será privado de seus bens sem o devido processo legal, e não sem o devido processo judicial. Assim, com relação a uma proposta de execução fiscal que venha a estabelecer uma forma legal de excutir o bem do devedor inadimplente, não há que se falar em ausência de lei, prevendo o devido processo legal, pois o que a Constituição Federal está a garantir, é que só haverá perda de bens através do devido processo legal, ou seja, mediante a existência de um processo previsto em lei, seja este judicial ou extrajudicial.

A venda de coisas em hasta pública, fora do Poder Judiciário, não é novidade em nosso ordenamento jurídico. O Decreto 70/66, que prevê modalidade de execução, atribuindo a um Agente Fiduciário, a competência para processar a cobrança da dívida, teve e tem sua constitucionalidade reiteradamente afirmada no âmbito do Supremo Tribunal Federal conforme atestam julgados proferidos no RE 405.634, de 02.04.04 (relator, ministro Gilmar Mendes), no AI-AgR 600257/SP, de 27.11.2007 (Relator Min. Ricardo Lewandowski) e no RE-AgR 408224/SE ,de 31.08.07 (Min. Sepúlveda Pertence) , dentre outros.

O Código Civil Brasileiro, ao disciplinar o contrato de penhor (artigos 1.442 a 1488) também admite esta faculdade. Igualmente, o penhor civil (artigo17, do Decreto 22.626/33), cujo monopólio é da Caixa Econômica Federal (artigo 2º, do Decreto-lei 759/69), também possibilita a venda do bem para pagamento do débito inadimplente, colocando-se o saldo remanescente do leilão, se houver, à disposição do mutuário que teve dito bem excutido em leilão público administrativo.

É necessário, portanto, que nos convençamos que persistir ou insistir na crença de que, dentre os Poderes da República, só o Poder Judiciário é capaz de realizar a idéia de direito é, com certeza, prestar um mau serviço à Justiça, à nobre função dos nossos Tribunais, entregando a estes a solução de todos os litígios, muitas vezes concretizados em milhares e milhares de bagatelas, sem a menor dignidade judicial, que não raro, conseguem percorrer todas as instâncias judiciais. O que se obtém, é a realidade que ora é manifesta: o bloqueio ou quase paralisia do funcionamento do nosso sistema judicial.

Obviamente que, para a implantação de um modelo orientado a conferir eficiência e eficácia à execução fiscal, através de uma prestação célere e condizente com a natureza do crédito público envolvido, não se pode descurar da adoção de providências consubstanciadas no melhor aparelhamento material e pessoal dos órgãos encarregados da aludida cobrança, no âmbito do Poder Executivo, à altura de suas atribuições constitucionais e com recursos prioritários como prescreve o inciso XXII do artigo 37 da Constituição.

Essas e outras questões deverão pontuar os debates e discussões em torno da concretização de um arcabouço normativo moderno, que confira eficiência e eficácia à cobrança da Divida Ativa, no multifacetado cenário da economia global, sob pena de se manter a ilusão de que, com o simples polimento das velhas armas normativas, é possível enfrentar a fúria eólica da crescente divida tributária, à maneira como o engenhoso fidalgo de La Mancha, Dom Quixote, lançou-se em sua atribulada aventura:

“O que fez primeiro foi limpar as armas que tinham pertencido aos seus bisavós, e que, cobertas de ferrugem e mofo, jaziam esquecidas há séculos num canto. Limpou-as e adereçou-as o melhor que pôde, mas notou um grave defeito nelas, que era o de não terem celada de encaixe, mas apenas um simples morrião.[1] Nisso supriu-lhe o engenho, pois fez de cartões uma espécie de meia celada, que, encaixada no morrião, ficou com aspecto de celada inteira.” [2]


[1] “celada. [Do esp. Celada ] S.f. Antiga armadura de ferro para a cabeça.”; “morrião. [Do esp. Morrión] S.m. Antigo capacete sem viseira e com topete enfeitado…” (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 378 e 1161).

[2] CERVANTES, Miguel de, O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha. Vol. I. Belo Horizonte: Itatiaia, 1983, p. 29. No trecho citado Cervantes descreve os preparativos de Dom Quixote que, obcecado pela leitura de antigos livros de cavalaria, decidiu sair pelo mundo como cavaleiro andante.

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