Prerrogativa profissional

Se há conflito entre lei geral e especial, aplica-se lei especial

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24 de junho de 2008, 21h44

Se há conflito entre lei geral e lei especial, aplica-se o disposto na lei especial nas situações nela previstas. O entendimento foi usado pelo ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, para confirmar que advogado acusado criminalmente tem direito de ficar preso em sala de Estado-Maior ou, na ausência dela, prisão domiciliar, até o trânsito em julgado da sentença condenatória.

O ministro explicou que sala de Estado-Maior não se confunde com prisão especial porque a Lei 10.258/2001, que alterou o artigo 295 do Código de Processo Penal para disciplinar esse tipo de prisão, não se aplica para os advogados. Neste caso, a lei incidente é o Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94), que é a lei especial.

Celso de Mello acolheu o pedido de Medida Cautelar em Reclamação em favor de uma advogada acusada de tráfico de drogas. A mesma solicitação já tinha sido negada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que afirmou não haver no estado sala de Estado-Maior, logo, o pedido não poderia ser deferido. A decisão foi mantida pelo Superior Tribunal de Justiça, que considerou não haver “plausibilidade jurídica do pedido”.

No STF, o argumento da advogada foi de que o STJ não respeitou a decisão do Supremo no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.127. Na ocasião, os ministros consideraram constitucional o artigo 7º, inciso V do Estatuto da Advocacia. A regra determina ser direito do advogado “não ser recolhido preso, antes de sentença transitada em julgado, senão em sala de Estado Maior, com instalações e comodidades condignas, e, na sua falta, em prisão domiciliar”.

Celso de Mello acolheu o argumento e repetiu entendimento que já consolidado no STF. Segundo o ministro, o Supremo “ao proceder ao exame comparativo entre a Lei 10.258/2001 e a Lei 8.906/94, reconheceu a existência de uma típica situação configuradora de antinomia em sentido próprio, eminentemente solúvel, porque superável mediante utilização, na espécie, do critério da especialidade, cuja incidência, no caso, tem a virtude de viabilizar a preservação da essencial coerência, integridade e unidade sistêmica do ordenamento positivo”.

“Essa orientação tem sido observada no âmbito desta Suprema Corte”, assinalou o ministro. Celso de Mello garantiu para a advogada o direito de ficar em prisão domiciliar, já que o TJ afirmou inexistir sala de Estado-Maior em Minas.

Leia a decisão

MED. CAUT. EM RECLAMAÇÃO 6.158-2 MINAS GERAIS

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

RECLAMANTE(S): ELIANE DOS SANTOS SOUZA OU ELIANE DOS SANTOS DE SOUZA

ADVOGADO(A/S): ADRIANO FERREIRA DO AMARAL E OUTRO(A/S)

RECLAMADO(A/S): RELATOR DO HABEAS CORPUS Nº 106.782 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

DECISÃO: Sustenta-se, na presente sede reclamatória, que o E. Superior Tribunal de Justiça, ao indeferir pedido de medida cautelar deduzido pela ora reclamante, transgrediu a autoridade da decisão que o Supremo Tribunal Federal proferiu no julgamento da ADI 1.127/DF, no qual reconheceu a plena validade constitucional do art. 7º, inciso V, “in fine”, da Lei nº 8.906/94.

O eminente Relator do HC 106.782/MG, no E. Superior Tribunal de Justiça, ao denegar medida cautelar postulada em favor da ora reclamante, invocando como um de seus fundamentos a ausência de plausibilidade jurídica do pedido (fls. 17), claramente desrespeitou a autoridade da decisão que esta Suprema Corte proferiu no julgamento invocado como paradigma de confronto.

Presente esse contexto, passo a apreciar o pedido de concessão de medida cautelar formulado em favor da ora reclamante, que se acha privada de sua liberdade em decorrência de condenação penal ainda não transitada em julgado.

E, ao fazê-lo, observo, desde logo, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reconhecido, quanto ao Advogado, a subsistência da prerrogativa que lhe assegura o ordenamento positivo nacional, que prevê, quanto aos Advogados, o direito à prisão em sala de Estado-Maior, ou, na ausência desta, o direito à prisão domiciliar, até que sobrevenha o trânsito em julgado de sentença condenatória (Lei nº 8.906/94, art. 7º, inciso V, “in fine”).


Essa prerrogativa legalinclusive no que concerne ao recolhimento em prisão domiciliar – tem sido garantida pelo Supremo Tribunal Federal, quer antes do advento da Lei nº 10.258/2001 (RTJ 169/271-274, Rel. Min. CELSO DE MELLO), quer após a edição desse mesmo diploma legislativo (RTJ 184/640, Rel. p/ o acórdão Min. MAURÍCIO CORRÊA).

Cabe registrar, neste ponto, por extremamente relevante, que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao apreciar o mérito da ADI 1.127/DF, Rel. p/ o acórdão Min. RICARDO LEWANDOWSKI (acórdão– –paradigma, cuja transgressão está sendo argüida na presente reclamação), entendeu subsistente a norma consubstanciada no inciso V do art. 7º da Lei nº 8.906/94 (ressalvada, unicamente, por inconstitucional, a expressãoassim reconhecidas pela OABinscrita em tal preceito normativo), enfatizando, então, em referido julgamento plenário, após rejeitar questão prejudicial nele suscitada, que é inaplicável, aos Advogados, em tema de prisão especial, a Lei nº 10.258/2001.

Esta Suprema Corte, ao proceder ao exame comparativo entre a Lei nº 10.258/2001 e a Lei nº 8.906/94 (art. 7º, V), reconheceu, nesse cotejo, a existência de uma típica situação configuradora de antinomia em sentido próprio, eminentemente solúvel, porque superável mediante utilização, na espécie, do critério da especialidade (“lex specialis derogat generali”), cuja incidência, no caso, tem a virtude de viabilizar a preservação da essencial coerência, integridade e unidade sistêmica do ordenamento positivo (RTJ 172/226-227, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.):

ADVOGADO – CONDENAÇÃO PENAL MERAMENTE RECORRÍVEL – PRISÃO CAUTELARRECOLHIMENTO A ‘SALA DE ESTADO-MAIOR’ ATÉ O TRÂNSITO EM JULGADO DA SENTENÇA CONDENATÓRIA – PRERROGATIVA PROFISSIONAL ASSEGURADA PELA LEI Nº 8.906/94 (ESTATUTO DA ADVOCACIA, ART. 7º, V) – INEXISTÊNCIA, NO LOCAL DO RECOLHIMENTO PRISIONAL, DE DEPENDÊNCIA QUE SE QUALIFIQUE COMO ‘SALA DE ESTADO-MAIOR’ – HIPÓTESE EM QUE SE ASSEGURA, AO ADVOGADO, O RECOLHIMENTO ‘EM PRISÃO DOMICILIAR’ (ESTATUTO DA ADVOCACIA, ART. 7º, V, ‘IN FINE’) – SUPERVENIÊNCIA DA LEI Nº 10.258/2001 – INAPLICABILIDADE DESSE NOVO DIPLOMA LEGISLATIVO AOS ADVOGADOS – EXISTÊNCIA, NO CASO, DE ANTINOMIA SOLÚVELSUPERAÇÃO DA SITUAÇÃO DE CONFLITO MEDIANTE UTILIZAÇÃO DO CRITÉRIO DA ESPECIALIDADE – PREVALÊNCIA DO ESTATUTO DA ADVOCACIACONFIRMAÇÃO DAS MEDIDAS LIMINARES ANTERIORMENTE DEFERIDAS – PEDIDO DE ‘HABEAS CORPUS’ DEFERIDO. (…).

(HC 88.702/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma)

Ao assim decidir, notadamente no julgamento que constitui o paradigma de confronto (ADI 1.127/DF), cuja invocação legitima a utilização da presente via reclamatória, o Supremo Tribunal Federal teve presentedentre outras lições expendidas por eminentes autores (HUGO DE BRITO MACHADO, “Introdução ao Estudo do Direito”, p. 164/166 e 168, itens ns. 1.2, 1.3 e 1.6, 2ª ed., 2004, Atlas; MARIA HELENA DINIZ, “Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada”, p. 67/69, item n. 4, e p. 72/75, item n. 7, 1994, Saraiva; ROBERTO CARLOS BATISTA, “Antinomias Jurídicas e Critérios de Resolução”, in” Revista de Doutrina e Jurisprudência-TJDF/T, vol. 58/25-38, 32-34, 1998; RAFAEL MARINANGELO, “Critérios para Solução de Antinomias do Ordenamento Jurídico”, “in” Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, vol. 15/216-240, 232-233, 2005, RT, v.g) – o magistério, sempre lúcido e autorizado, de NORBERTO BOBBIO (“Teoria do Ordenamento Jurídico”, p. 91/92 e 95/97, item n. 5, trad. Cláudio de Cicco/Maria Celeste C. J. Santos, 1989, Polis/Editora UnB), para quem, na perspectiva do contexto em exame, e ocorrendo situação de conflito entre normas (aparentemente) incompatíveis, deve prevalecer, por efeito do critério da especialidade, o diploma estatal (o Estatuto da Advocacia, no caso) que subtrai, de uma norma, uma parte de sua matéria, para submetê-la a uma regulamentação diferente (contrária ou contraditória)…” (grifei).


Vale relembrar, por oportuno, que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Rcl 4.535/ES, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – tendo presente a orientação firmada na mencionada ADI 1.127/DF -, assegurou, a determinado advogado que havia sofrido prisão cautelar, o direito de ser recolhido em prisão domiciliar, em virtude da comprovada ausência, no local, de sala de Estado-Maior, por entender que o ato judicial objeto de tal reclamação transgredia a autoridade do pronunciamento desta Suprema Corte naquele processo de fiscalização normativa abstrata, que declarou subsistente o inciso V do art. 7º do Estatuto da Advocacia em face da superveniente edição da Lei nº 10.258/2001.

Mostra-se importante assinalar, neste ponto, que essa orientação tem sido observada no âmbito desta Suprema Corte (Rcl 5.240-MC/SP, Rel. Min. CARLOS BRITTO – Rcl 5.488-MC/PR, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI – Rcl 5.712-MC/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

Sendo assim, e em face das razões expostas, defiro o pedido de medida cautelar, em ordem a assegurar, até final julgamento da presente reclamação (salvo anterior trânsito em julgado da condenação penal), o recolhimento da reclamante a prisão domiciliar (Lei nº 8.906/94, art. 7º, V, “in fine”), considerada a inexistênciareconhecida pelo E. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (fls. 135) – de sala de Estado-maior.

Assinalo, por necessário, que caberá, ao Juízo da 1ª Vara de Tóxicos da comarca de Belo Horizonte/MG (Processo nº 002407521716-6), determinar as normas de vigilância e de conduta da ora reclamante, ficando igualmente autorizado a fazer cessar referido recolhimento domiciliar, se e quando se registrar eventual abuso por parte da Advogada em questão.

Comunique-se, com urgência, para cumprimento imediato, transmitindo-se cópia da presente decisão ao E. Superior Tribunal de Justiça (HC 106.782/MG), ao E. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (HC 1.0000.07.463341-3/000), ao Juízo de Direito da 1ª Vara de Tóxicos da comarca de Belo Horizonte/MG (Processo nº 002407521716-6) e à Senhora Diretora da Penitenciária “José Abranches Gonçalves”, em Ribeirão das Neves/MG.

Publique-se.

Brasília, 24 de junho de 2008.

Ministro CELSO DE MELLO

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