Segunda Leitura

Justiça deve enfrentar questão da candidatura de réus

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  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

23 de junho de 2008, 16h28

Vladimir Passos de Freitas 2 - por SpaccaSpacca" data-GUID="vladimir_passos_freitas1.jpeg">Cena 1. Ela era uma mulher simples, pouco mais que alfabetizada, cozinheira de profissão, cerca de 45 anos, casada com um pedreiro, tinha cinco filhos e criava mais seis. Seu nome era Dinorá Ramalho do Nascimento, mas era conhecida como Dona Maria. Morava em Caraguatatuba, litoral de SP, onde eu era Promotor de Justiça. Seu bom senso e autoridade moral levaram-na a ser nomeada Comissária de Menores. Nesta condição, zelava pelo bom tratamento de crianças da cidade, orientando as mães, repreendendo-as quando necessário e, nos casos extremos, levando crianças abandonadas para sua casa. Na vida, conheci poucas pessoas com tanto bom senso, espírito público e sentido de justiça.

Cena 2. O Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro, seguido por outros TREs, decide rejeitar candidaturas de candidatos às próximas eleições que tenham antecedentes criminais (Estado de S.Paulo, 2.6.2008, página A6). O Tribunal Superior Eleitoral, por apertada maioria, assume posição contrária. Porém, promete divulgar, através da internet, os candidatos com “ficha suja”. Dias depois, volta atrás. Os TREs, à falta de regulamentação, ficam divididos quanto à posição a ser tomada. Por exemplo, o TRE-PR divulga a lista na sua sede, mas não a coloca na internet (Gazeta do Povo, 20.7.2008, página 15).

Dirá o leitor: mas o que tem a ver a Dona Maria com a eleição de réus? Aparentemente, nada. Na vida real, tudo. Explico.

O número de parlamentares processados criminalmente é expressivo. E o de candidatos, enorme. O impedimento da candidatura esbarra no artigo 5º, inciso LVII, que diz: ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Vai daí que essa enorme quantidade de candidatos não pode ser considerada culpada, pois a ação penal está em andamento. E este andamento, com habilidade mediana da defesa, pode durar oito, dez ou 12 anos. Basta saber manejar, com astúcia, a legislação processual (por exemplo, arrolando testemunhas no exterior) e esgotar todos os recursos possíveis. Inclusive o especial ao STJ e o extraordinário ao STF.

O conflito entre a presunção da inocência ou da não-culpabilidade e a realidade não fica limitado à Justiça Eleitoral. Cria outras perplexidades. Por exemplo, o réu condenado pelo Tribunal do Júri que sai livre da sessão de julgamento. Ou o alto executivo que, condenado pelo TRF por crime de evasão de divisas, invoca o direito de não ser a pena executada até que se esgotem todas as instâncias. E se este mesmo réu decidir fazer concurso para juiz de Direito, poderá seu nome ser rejeitado? E um empresário, poderá negar emprego a alguém que responde a duas ações penais por apropriação indébita e uma por estelionato?

De tudo isto, se colhe que o princípio da presunção de inocência, que é absolutamente defensável, encontra no sistema judicial brasileiro, que eterniza o trânsito em julgado das decisões, a sua maior dificuldade de aplicação prática. As decisões judiciais não devem ficar afastadas da vida real. Quando elas se distanciam da realidade, abrem espaço para a incompreensão, desalento, descrédito da Justiça. Em casos extremos, busca de soluções ilegais como o linchamento ou a vingança privada.

Em algum momento, o Poder Judiciário terá que enfrentar esse dilema. A situação dos candidatos às eleições é, dele, apenas uma faceta. O bom senso, que nada tem a ver com cultura, há de prevalecer. Poderá ser considerado não-culpável quem responde ação penal sem sentença condenatória de primeira instância. Ou apenas os que respondem determinados crimes. Ou, até, fixado como limite o acórdão de um TJ, TRF ou TRE, que são as instâncias ordinárias. Não será demais lembrar que na interpretação deve sempre prevalecer a inteligência que faz sentido à que não faz.

Se assim não for, como explicar à Dona Maria (que no caso simboliza todas as pessoas de bem deste país) que aquele candidato que ela conhece, que responde a vários processos penais e goza de má fama, pode vir a ser o próximo prefeito ou vereador de sua cidade?

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