Estado laico

Supremo foi democrático ao aprovar Lei de Biossegurança

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18 de junho de 2008, 0h02

O julgamento da constitucionalidade da Lei de Biossegurança pode ser resumido em verdadeira lição de reconciliação de direitos fundamentais e democracia dada pelo Supremo Tribunal Federal, ao abordar tema que envolve a própria natureza humana. Enfatizou-se a importância do princípio da responsabilidade proporcional às conseqüências do agir humano e do princípio esperança.

Restou clara a opção da Corte por uma interpretação democrática das normas constitucionais, com vistas à preservação das bases de um Estado laico marcado pela pluralidade de crenças e religiões, como o é o brasileiro.

O tema atinente à utilização de células-tronco embrionárias ganhou palco em razão da edição, em 2005, da Lei 11.105 — Lei de biossegurança brasileira, que possibilitou a utilização de tais células-tronco, obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro, para os fins de pesquisa e terapia, desde que o embrião fosse considerado inviável (supostamente incapaz de gerar uma vida) ou tenha sido congelado por no mínimo três anos, além da aquiescência dos genitores e aprovação do comitê de ética em pesquisa responsável.

A definição de inviabilidade foi dada pelo Decreto 5.579, de 22 de novembro de 2005, que regulamentou alguns dispositivos da Lei 11.105/2005, ao estabelecer que são embriões inviáveis “aqueles com alterações genéticas comprovadas por diagnóstico pré implantacional, conforme normas específicas estabelecidas pelo Ministério da Saúde, que tiveram seu desenvolvimento interrompido por ausência espontânea de clivagem após período superior a vinte e quatro horas a partir da fertilização in vitro, ou com alterações morfológicas que comprometam o pleno desenvolvimento do embrião”.

Os questionamentos sobre a eticidade e a licitude de referido procedimento científico tornaram-se tema corrente e bastante polêmico, apreciado pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 3.510, de relatoria do ministro Carlos Britto.

O núcleo central do debate seria a afirmação feita pelo procurador-geral da República de que a permissão de pesquisas que utilizem células-tronco embrionárias atentaria contra o direito à vida, proclamado no artigo 5º da Constituição Federal e em diversos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos: Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948 (art. 3o), o Pacto internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966 (art. 1o), a Carta Africana dos Direitos dos homens e dos povos de 1981 (art. 4o), a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos de 2005 (art. 1o).

O fio condutor seria, portanto, o questionamento sobre o estatuto dos embriões congelados há mais de três anos ou considerados inviáveis, aos quais se endereça a permissão de utilização para pesquisa contida no artigo 5º da Lei de Biossegurança.

Inicialmente, é de se ver que um embrião humano é tão somente uma pessoa futura ou provável, em relação à qual, em razão da sua potencialidade de vir a ser pessoa humana, são estabelecidos deveres jurídicos. Igualmente, as células-tronco embrionárias não são nem uma realidade organizada nem uma pessoa definida, mas pura potencialidade em vias de ser pessoa. Nesse sentido, citamos metáfora de Michael Sandel1, segundo o qual o fato de que toda árvore foi um dia semente, não significa que toda semente transformar-se-á em um carvalho grande e robusto.

Em termos puramente biológicos é evidente que o embrião possui um estatuto especial, particular, e não pode ser comparado aos outros grupos de células de seres vivos, porquanto é capaz de desenvolver um ser humano. Essa qualidade intrínseca ao embrião humano, a seu turno, pode ser definida como potencial, pois ele apresenta o potencial de desenvolver um ser humano completo. De fato, “o embrião humano é precioso em razão da capacidade que ele tem de tornar-se um ser pessoal, na hipótese de que encontre um útero para sua nidação”2.

Destarte, o debate instaurado sobre a possibilidade de utilização de células-tronco embrionárias para fins de pesquisa é de ser tido por proposto em razão, justamente, do potencial que possui o embrião humano de se desenvolver e tornar-se um ser humano dotado de qualidades únicas e particulares, inerentes à sua natureza, o que não é de ser simplesmente desprezado.

Contudo, é certo que o potencial para tornar-se alguma coisa não significa que já se possua as qualidades inerentes a tal coisa. Pelo contrário, óvulos e espermatozóides, por exemplo, estão na origem do zigoto, mas com ele não se confundem.

Ademais, é de se sublinhar que, em verdade, a probabilidade de um embrião humano concebido por fertilização in vitro vir a tornar-se uma pessoa humana é pequena, assim como em gestações naturais, e depende, em grande medida, de condições biológicas, sobre as quais não se detém o controle.

Além disso, parece claro que um embrião concebido in vitro, que não será implantado no útero materno não possui o real potencial de tornar-se uma pessoa humana, porquanto, igualmente, depende das condições oferecidas pelo homem para o seu desenvolvimento — sendo, portanto, de rigor ressaltar que o potencial de um embrião vir a tornar-se uma pessoa não significa que ele o será.

Cumpre, então, afirmar que nos casos descritos no artigo 5º da Lei de Biossegurança, notadamente: embriões considerados inviáveis ou congelados há mais de três anos, o embrião não possui, de fato, o potencial individual de se tornar uma pessoa e, portanto, a utilização de tais células para fins de pesquisa é eticamente defensável.

Não se pode, in casu, apregoar a proteção à vida, vez que não existe o real potencial de um embrião inapto de vir a se tornar uma pessoa humana. E, no que atine aos embriões excedentes, em relação aos quais os pais manifestaram sua vontade de não implantá-los, e que, outrossim, não foram doados, seu destino poderia ser resumido a duas possibilidades: o descarte (autorizado no Brasil) ou o congelamento eterno. Ou seja, é de se ver que mesmo nessa segunda hipótese não há a possibilidade do embrião tornar-se pessoa humana.

Certo, ainda, que as qualidades da personalidade humana aparecerão de maneira progressiva. De fato, a ciência descreve etapas no desenvolvimento embrionário e é natural que a progressão de tais etapas influencie na ascensão do ser humano como pessoa. Nesse sentido, brilhantes as palavras de Peter Singer ao apregoar que “a questão moral crucial não é quando começa a vida, mas quando a vida alcança o ponto em que merece ser protegida”3.

Na esteira das observações quanto à progressividade com que os atributos da pessoa humana são incorporados ao embrião é de se ressaltar, por oportuno, o exemplo dos rituais funerários concedidos ao embrião que perde sua vida no final da gestação e que, sem qualquer dissenção, não são aplicáveis pela sociedade ao embrião nos primeiros estágios do seu desenvolvimento. O que dizer, então, dos embriões congelados e inviáveis ou que não serão jamais implantados em útero humano.

É de rigor, portanto, concluir que o artigo 5º da Lei federal 11.105/2005, que permite a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro, para os fins de pesquisa e terapia, desde que o embrião seja considerado inviável (supostamente incapaz de gerar uma vida) ou tenha permanecido congelado por no mínimo três anos, com a devida aquiescência dos genitores e aprovação do comitê de ética em pesquisa responsável, não atenta contra o núcleo axiológico da dignidade da pessoa humana, no qual se encontra consubstanciado o direito à vida, devendo-se, portanto, concluir pelo acerto do Supremo Tribunal Federal ao declarar sua constitucionalidade.

Notas de rodapé

1. SANDEL, Michael. Debating moral status of the embryo. In: Harvard Magazine – Edição de julho/agosto de 2004.

2. LARGEAULT, Anne-Fagot. Embriões, células-tronco e terapias celulares: questões filosóficas e antropológicas. In: Estudos avançados, 18 (51), 2004, p. 239.

3. SINGER, Peter. Science, religion and stem cells. In: The New York Times, Edição de 23 de junho de 2005.

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