Polêmica das escutas

Controle de grampos aumenta risco de vazamentos

Autor

  • Rubens R R Casara

    é Juiz de Direito do TJ-RJ doutorando em Direito pela UNESA mestre em Ciências Penais pela UCAM/ICC professor de Direito Processual Penal do IBMEC-RJ membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e do Movimento da Magistratura Fluminense pela Democracia (MMFD).

16 de junho de 2008, 10h04

Em relação às declarações prestadas ao sítio Consultor Jurídico, e publicadas em 14 de junho de 2008 (clique aqui para ler o texto Juízes reagem a controle de autorizações de escutas), cabem algumas considerações. De início, pode-se esclarecer que representam reflexões iniciais sobre a problemática gerada com o ato da Corregedoria do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. A argumentação, sempre formulada em tese e com a ressalva de opiniões em contrário, teve o intuito de contribuir à reflexão necessária ao tema, que, por ser novo, requer prudência.

O debate sobre a questão dos excessos cometidos em algumas interceptações telefônicas, que levam à violação do direito fundamental à intimidade do investigado (em favor de quem vigora a norma de tratamento que se extrai do princípio constitucional da inocência, a saber: todos devem ser tratados como se inocentes fossem, até o trânsito em julgado de sentença condenatória), é salutar. O grave problema, portanto, não reside na busca de soluções para coibir os excessos, mas na descoberta de meios constitucionalmente adequados de preservar os interesses em jogo. Vale lembrar que, por mais desnecessário que possa parecer, no Estado de Direito, os fins nem sempre justificam os meios.

O controle planejado pela Corregedoria do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, a partir de uma constatação correta (abusos nas interceptações, com a conseqüente violação de direitos fundamentais) não mostra aptidão de atender aos seus fins declarados (fazer cessar os abusos e preservar os direitos fundamentais). Falta-lhe, portanto, razoabilidade, na medida em que o meio escolhido (controle administrativo com a criação de um banco de dados) não atinge ao fim desejado (preservação do direito fundamental à intimidade, que não pode ser afastada de forma injustificada).

Isso porque esse modelo de controle idealizado pela Corregedoria revela-se inadmissível como técnica de solução do problema dos excessos nas interceptações, na perspectiva da preservação dos direitos fundamentais do investigado, vez que não impede a violação desses direitos. Dito de outra forma: o controle, tal qual projetado, só se dará após o afastamento do direito fundamental à intimidade. Os excessos, portanto, só poderão ser constatados, pela atuação da Corregedoria, após a concretização da violação aos direitos do investigado.

Mas, não é só. Existem outras razões para se apontar como inconstitucional o ato da Corregedoria do TJ-RJ. O afastamento da garantia constitucional da intimidade é medida de exceção e deve se dar da maneira menos gravosa para o cidadão. A medida administrativa adotada pela Corregedoria, com o fim declarado de evitar excessos nas interceptações, acaba por fazer com que um maior número de pessoas tome ciência das interceptações e, assim, o investigado acaba por ter mais uma violação, e injustificada, à sua imagem.

Não se pode insistir com abstrações metafísicas repletas de boas intenções, no mundo da vida, a simples ciência (repita-se: injustificada) de que o indivíduo é sujeito passivo de uma investigação criminal, e que suas conversas telefônicas estão monitoradas, já representa um constrangimento que atenta de forma severa contra a sua imagem. Percebe-se, pois, que o sigilo que atua como garantia constitucional à imagem não abarca somente o conteúdo das conversas interceptadas, mas a própria divulgação da notícia da interceptação.

A Constituição Federal estabelece que apenas a União pode legislar sobre matéria processual (os requisitos às interceptações, portanto, só podem ser estabelecidos por lei federal), portanto, a natureza do controle criado pela Corregedoria, como já se deixou claro, só pode ser administrativa. E, no Estado Democrático de Direito, não pode existir controle administrativo sobre o teor de decisões jurisdicionais, sob pena de quebra do sistema de “freios e contrapesos” entre as funções/poderes do Estado. Diante desse quadro, moldado pela Constituição Federal, percebe-se que a solução pensada pela Corregedoria não consegue ultrapassar o plano simbólico: a uma, porque não pode impedir a lesão ao direito à intimidade (e ainda viola o direito à imagem); a duas, pois não é capaz de restituir o statu quo ante (a situação anterior do indivíduo investigado), pois não é possível restituir a dignidade atingida com a publicidade indevida (por desnecessária) do ato jurisdicional.

Há, ainda, um argumento utilitarista (que, diga-se, não é o principal) contra esse controle: como a medida administrativa faz com que um maior número de pessoas tome ciência da interceptação determinada na decisão jurisdicional, aumenta o risco de “vazamento” (não se pode aderir acriticamente ao mito da “bondade” das pessoas, funcionários públicos ou não) ou mesmo da captação dos dados (criptografados ou não) transmitidos ao sistema do tribunal, o que pode fazer com que a medida jurisdicional perca sua efetividade.

Por tudo o que já foi dito, a fixação de procedimentos para o controle das interceptações não deve se dar no âmbito administrativo, mas através do Poder Legislativo. Na democracia, cabe aos representantes do povo, que possuem legitimidade para elaborar leis (e eles foram eleitos para isso), criar mecanismos de controle adequados à Constituição Federal, sempre em atenção ao procedimento democrático/dialético de elaboração das leis. Esse procedimento é condição de possibilidade da própria democracia.

Apenas para reforçar a percepção de que há vício insanável na origem do controle criado por ato do Tribunal de Justiça, em que pesem as boas intenções dos autores desse ato, basta lembrar que a elaboração dessa medida não foi precedida de debates amplos (sequer, entre os magistrados) ou estudos sérios sobre o tema.

No atual estágio, sem que exista uma legislação que aprimore o procedimento das interceptações, o controle dos abusos deve se dar sobre os requisitos e pressupostos das medidas de interceptação. Os excessos observados nas interceptações devem-se à vulgarização da medida, em especial, pela inobservância dos seus requisitos e pressupostos legais.

Diante dessa distorção, a reação imediata (e mais efetiva), frente à constatação de riscos ou de lesões a direitos fundamentais, o controle típico (e constitucionalmente adequado) é o jurisdicional, isto é, através dos mecanismos de provocação da jurisdição (ação, recurso, mandado de segurança, etc.). Nesse ponto, é importante destacar o papel, que cabe ao Ministério Público (representante da sociedade) e ao cidadão, de controlar os atos jurisdicionais.

Da maneira como está estruturado, o controle das interceptações telefônicas criado no Rio de Janeiro não consegue ultrapassar a condição de mero “banco de dados”, em princípio, sem maiores utilidades. A história recente do Brasil demonstrou que a criação de “bancos de dados” tem gerado confusões, pois, por vezes, não é bem compreendida e, em dados momentos, pode ser distorcida.

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    é Juiz de Direito do TJ-RJ, doutorando em Direito pela UNESA, mestre em Ciências Penais pela UCAM/ICC, professor de Direito Processual Penal do IBMEC-RJ, membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e do Movimento da Magistratura Fluminense pela Democracia (MMFD).

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