Três francenildos

Quebra de sigilo sem autorização judicial provoca polêmica

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14 de junho de 2008, 0h00

O direito à produção de prova indispensável se sobrepõe à privacidade do investigado. Esse foi o entendimento da desembargadora Maria do Rocio Luz Santa Rita, do Tribunal de Justiça catarinense, para livrar o Banco do Estado de Santa Catarina (Besc) de indenizar um ex-funcionário que teve seu sigilo bancário quebrado sem autorização judicial.

A desembargadora, relatora da apelação apresentada pelo bancário contra a decisão de primeira instância, considerou que o direito ao sigilo bancário não é absoluto e não se sobrepõe ao interesse público e ao da Justiça. Para Maria Rita, o interesse público ficou caracterizado pelo fato de o funcionário ter sido acusado de desviar dinheiro do Besc. “Salta aos olhos que a situação em apreço não guarda correspondência com a proteção conferida pela Constituição Federal”, afirmou a desembargadora.

O caso concreto guarda várias peculiaridades e abre precedente perigoso na opinião de especialistas. Principalmente pelo fato de o banco ter aberto os dados não só de seu funcionário, mas também de sua mulher e de seu filho. Consultado pela revista Consultor Jurídico para falar em tese sobre quebra de sigilo bancário sem autorização judicial, o ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, explicou que a regra constitucional é o do sigilo de dados e esses dados incluem as informações bancárias.

A única exceção, que tem de ser interpretada de forma estrita, é a quebra de sigilo de dados por autorização judicial. “Entender diferente disso é criar critérios que não existem e esquecer as regras do Estado Democrático de Direito. No Direito, os meios justificam os fins, mas os fins não justificam os meios. Se não respeitamos as regras estabelecidas, então se pode dizer que vivemos em um faroeste”, afirma.

O criminalista Luís Guilherme Vieira também afirma que a quebra de sigilo tem necessariamente de ter o aval do Judiciário. Caso contrário, é ilegal. “Banco é o guardião do sigilo de todos os correntistas, inclusive os funcionários que são clientes da instituição. E não é pelo fato de ser o guardião que pode quebrar o sigilo de dados, exceto se tiver autorização judicial. O fato de ter essa prerrogativa, não o faz diferente de qualquer pessoa jurídica, ou parte que queira pedir a quebra de sigilo.”

Mão dupla

O TJ-SC não está isolado em seu posicionamento. No mesmo sentido já decidiu a 4ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho. Em agosto de 2005, a Turma afirmou que funcionário de banco não tem direito a receber indenização por danos morais pela quebra de sigilo bancário por parte da instituição financeira onde trabalha. Em seu voto, o ministro Ives Gandra Martins Filho, relator, afirmou que a quebra de sigilo só é ilegal se for pedida ao banco por outra empresa. “E o ilícito só se dará se o banco fornecer os dados de que dispõe sem a necessária autorização judicial”, disse.

Por outro lado, em maio desse ano, Seção Especializada em Dissídios Individuais (SDI-1), do mesmo TST, afirmou que a legislação resguarda o sigilo e não autoriza que o banco examine o extrato bancário de seus funcionários. O fundamento levou a SDI-1 a manter a indenização por danos morais de mais de R$ 100 mil a um funcionário do Banco do Estado de São Paulo (Banespa) — que foi adquirido pelo Santander.

Para o ministro Vieira de Mello Filho, só o interesse público justifica o acesso a informações bancárias dos correntistas do banco por terceiros. O ministro disse que a legislação tipifica como crime a quebra do sigilo bancário. “A atitude do banco de fiscalizar a saúde financeira de seus empregados não encontra amparo no ordenamento jurídico, e a instituição não pode se aproveitar de sua condição e dos dados que detém em seu poder para isso”, afirmou.

O Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo também já seguiu o entendimento de proteger o sigilo. “O fato de um bancário manter conta na instituição em que trabalha não autoriza o empregador a quebrar o seu sigilo bancário, sem autorização judicial, sob o pretexto de proceder a investigação de eventual desvio de numerário”, decidiu a 4ª Turma do tribunal paulista.

O TRT-SP confirmou a decisão da 65ª Vara do Trabalho de São Paulo, que condenou o Bradesco ao pagamento de indenização de R$ 24 mil por danos morais para um ex-funcionário. Demitido sem justa causa, o ex-bancário entrou com reclamação na Justiça responsabilizando o banco pelo vazamento de suspeitas de desvio financeiro, não comprovadas, e pela quebra de seu sigilo bancário. A 65ª Vara do Trabalho de São Paulo condenou o banco ao pagamento de indenização. O Bradesco, então, recorreu ao TRT paulista, que não mudou a sentença.

Abertura tripla

A quebra do sigilo do bancário catarinense decorreu de inquérito judicial que corria na Justiça do Trabalho para rescindir o contrato de trabalho do funcionário do Besc. De acordo com o processo, o funcionário trabalhava como caixa e “praticou ou permitiu” crime contra o patrimônio público por meio do pagamento de benefícios do INSS de beneficiários mortos. O relatório que continha a quebra de sigilo do bancário também mostrava a movimentação financeira de seu caixa e as operações bancárias de seu filho e de sua mulher, apontados como beneficiários do desvio do dinheiro.


A família mora na cidade de Rio do Campo (SC), que tem 6,5 mil habitantes, e logo todos souberam das acusações e da movimentação financeira de toda a família considerada suspeita. Por isso, o bancário entrou com a ação judicial. Pediu indenização porque considerou a quebra de sigilo ilegal.

A primeira instância negou o pedido. “O exercício regular de um direito não constitui ato ilícito, sendo que a atitude da instituição financeira de juntar ao litígio trabalhista a movimentação bancária do primeiro requerente, visando defender direito que entendeu violado, não gera a obrigação de indenizar”, entendeu.

A decisão foi mantida pela 3ª Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. “Em nome do interesse da coletividade, plausível que sejam envidados todos os esforços na demonstração dos fatos relativos à apropriação indevida de numerário público, inclusive, com a exposição das movimentações bancárias não só do envolvido direto, como de supostos beneficiados pelo desvio noticiado”, afirmou.

A desembargadora Maria Rita ainda afirmou que a quebra de sigilo, chamada por ela de “relatório”, era “primordial na apuração da falta grave”. “Impedir que se acostasse aos autos aquele relatório implicaria em verdadeiro cerceio ao exercício da ampla defesa do banco apelado, direito que, in casu, deve se sobrepor ao sigilo bancário, à vista dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade que norteiam a atividade jurisdicional”.

“Não parece razoável que o banco recorrido tenha que manter sigilo de informações imprescindíveis para averiguação, pelo juízo trabalhista, de suposto delito praticado por funcionário no exercício de sua função, o que não só inviabiliza a rescisão pretendida, mas corrobora eventual impunidade. Portanto, a violação do sigilo bancário na hipótese não caracterizou ato ilícito, mas exercício regular do direito de ampla defesa da instituição bancária naquela demanda trabalhista”, concluiu.

Leia a decisão do TJ de Santa Catarina

Apelação Cível n. 2007.064648-1, de Taió

Relatora: Desa. Maria do Rocio Luz Santa Ritta

DANOS MORAIS. VIOLAÇÃO DE SIGILO BANCÁRIO. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. ALEGADO ATO ILÍCITO DECORRENTE DA JUNTADA, EM DEMANDA TRABALHISTA, DE RELATÓRIO CONTENDO MOVIMENTAÇÕES FINANCEIRAS DE FUNCIONÁRIO DO BANCO RÉU INVESTIGADO POR APROPRIAÇÃO INDÉBITA DE BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS, BEM COMO DE SUA ESPOSA E FILHO, SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. ILICITUDE NÃO CONFIGURADA. PROVA INDISPENSÁVEL PARA O EXERCÍCIO DA AMPLA DEFESA DA INSTITUIÇÃO BANCÁRIA NAQUELA AÇÃO, MORMENTE APÓS CONFISSÃO DO EMPREGADO. DIREITO QUE SE SOBREPÕE À PRIVACIDADE DO INVESTIGADO E DE SEUS PARENTES, APONTADOS COMO BENEFICIÁRIOS DAQUELA MANOBRA. DEVER DE INDENIZAR AFASTADO. RECURSO DESPROVIDO.

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n. 2007.064648-1, da comarca de Taió (Vara Única), em que são apelantes Elionir Pereira e outro e apelado Banco do Estado de Santa Catarina S/A – BESC:

ACORDAM, em Terceira Câmara de Direito Civil, à unanimidade, negar provimento ao recurso. Custas legais.

RELATÓRIO

Trata-se, em resumo, de apelação cível interposta por Elionir Pereira e Alexandro Marcos Pereira contra a sentença do Dr. Juiz de Direito da Comarca de Taió que, em “ação de reparação de danos morais” que movem em face de Banco do Estado de Santa Catarina S/A – BESC, julgou improcedentes os pedidos encartados na exordial nos seguintes termos:

Isto posto e o que mais dos autos consta, JULGO IMPROCEDENTES os pedidos requeridos por JOSÉ PEREIRA, ELIONIR PEREIRA E ALEXANDRO MARCOS PEREIRA em face do BANCO DO ESTADO DE SANTA CATARINA – BESC, todos qualificados nos autos, com fundamento no art. 269, inciso I, do CPC.

Condeno os requerentes ao pagamento das custas processuais e dos honorários advocatícios, os quais fixo em 10% (dez por cento) sobre o valor da causa, com fundamento no art. 20, §4º, atendidas as alíneas do § 3º, todos do CPC, sendo que as obrigações ficam suspensas (art. 12 da Lei 1.060/50, eis que defiro a assistência judiciária aos mesmos.

Sustentam os apelantes, em síntese, que a exposição indevida de suas movimentações bancárias, levada a cabo pelo banco réu em demanda trabalhista aforada contra José Pereira, maculou sua honra no pequeno município de Rio do Campo. Alegam que a quebra do sigilo bancário na espécie caracteriza ato ilícito, porque não teve respaldo em “ordem judicial proferida pelo juiz competente“. Requerem, assim, o provimento do recurso, julgando-se procedente o pleito condenatório.

Com as contra-razões ascenderam os autos.

VOTO

Ab initio, urge salientar que o sigilo bancário é garantia constitucional que objetiva o resguardo das informações do correntista perante terceiros e o público em geral, conforme intelecto do inc. XII correlacionado com os incs. X e XIV do art. 5º da Carta Magna. Tal proteção visa precipuamente evitar a devassa das informações do particular por aqueles que, não tendo acesso direto aos dados, pretendem a ruptura da privacidade, tendo por base infundadas suspeitas da ocorrência de algum ilícito pelo titular da conta corrente.


Na direção da proteção traçada pela Constituição Federal, a Lei Complementar n. 105/2001, por sua vez, prevê que “as instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados” (art. 1º), estabelecendo, ainda, no parágrafo terceiro, hipóteses em que não se caracterizará violação do dever de sigilo.

Feita tal ponderação, faço um breve histórico dos fatos a fim de elucidar a controvérsia. O banco réu, pretendendo rescindir, por justa causa, contrato de trabalho celebrado com o funcionário José Pereira, instaurou “Inquérito Judicial” perante a Justiça do Trabalho de Rio de Sul/SC (autos n. 1209/99 – fls. 24/193). Depreende-se da peça inaugural daquela demanda que José Pereira “no uso de suas atribuições de Caixa, nos anos de 1996 até 1998, praticou e/ou permitiu que se praticasse crime contra o patrimônio público, através do pagamento de benefícios do INSS, de beneficiários falecidos” (fl. 25). Juntamente com a petição inicial, o banco requerido acostou relatório que discriminava as operações financeiras realizadas tanto no caixa em que operava José Pereira, quanto nas contas correntes de titularidade deste e dos apelantes que são, respectivamente, esposa e filho do funcionário investigado. Por esse motivo, sustentam os autores que a conduta do réu caracterizou ato ilícito, uma vez que não havia autorização judicial para a violação e exposição de suas movimentações bancárias, sendo, em decorrência disso, “taxados de ‘ladrões'” pela comunidade de Rio do Campo/SC. Daí porque pleiteam a condenação do réu ao pagamento de indenização por danos morais.

Pois bem. Salta aos olhos que a situação em apreço não guarda correspondência com a proteção conferida pelo art. 5º, incs. X e XII da Constituição Federal. Isto porque, conforme precisa colação de Tércio Sampaio Ferraz Jr. de trecho de decisão do Supremo Tribunal Federal de relatoria do ex-Ministro Carlos Velloso, o sigilo bancário não se trata “de um direito absoluto, devendo ceder, é certo, diante do interesse público, do interesse da justiça, do interesse social, conforme aliás tem decidido esta Corte” (in Direito Constitucional: Liberdade de fumar, privacidade, estado, direitos humanos e outros temas. São Paulo: Manole, 2007, p.181).

Não é outra a hipótese dos autos. Vejo que a questão de fundo que estampava a demanda trabalhista não consistia somente no interesse patrimonial da instituição bancária ré, mas interesse público face a notícia de apropriação indevida de valores relativos a benefícios do Instituto Nacional de Seguridade Social. E, em nome do interesse da coletividade, plausível que sejam envidados todos os esforços na demonstração dos fatos relativos à apropriação indevida de numerário público, inclusive, com a exposição das movimentações bancárias não só do envolvido direto, como de supostos beneficiados pelo desvio noticiado. Aliás, causa espanto que não houve a instauração do competente inquérito policial a fim de averiguar o suposto crime perpetrado pelo funcionário José Pereira.

Não bastasse isso, a elaboração do relatório interno perseguindo o trajeto dos valores daqueles benefícios, independentemente de autorização judicial, era medida primordial na apuração da falta grave, mormente após a confissão do funcionário José Pereira (fl. 114). O fato é que a propositura de demanda trabalhista pelo banco réu, cujo objetivo era a rescisão do contrato de trabalho, exigia a juntada deste relatório, o qual, ao que tudo indica, comprovava as assertivas lá expostas. Em verdade, impedir que se acostasse aos autos aquele relatório implicaria em verdadeiro cerceio ao exercício da ampla defesa do banco apelado (art. 5º, inc. LV, CF), direito que, in casu, deve se sobrepor ao sigilo bancário, à vista dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade que norteiam a atividade jurisdicional. Não parece razoável que o banco recorrido tenha que manter sigilo de informações imprescindíveis para averiguação, pelo juízo trabalhista, de suposto delito praticado por funcionário no exercício de sua função, o que não só inviabiliza a rescisão pretendida, mas corrobora eventual impunidade.

A respeito, precisa a ponderação do magistrado singular, Dr. Christian Dalla Rosa, da qual valho-me das seguintes considerações:

O exercício regular de um direito não constitui ato ilícito, sendo que a atitude da instituição financeira de juntar ao litígio trabalhista a movimentação bancária do primeiro requerente, visando defender direito que entendeu violado, não gera a obrigação de indenizar.

Também, não havia necessidade de ordem judicial para que se procedesse a quebra do sigilo bancário, tendo em vista que tal procedimento somente se faria necessário caso houvesse um terceiro, sendo que as informações contidas nas contas bancárias são tanto de uso do banco como do cliente que as deu origem.

Neste sentido, valiosa a observação de Sérgio Carlos Covello de que “[…] o estabelecimento bancário não é obrigado a manter segredo quando dessa atitude lhe possa resultar injusto prejuízo, pois isso seria o mesmo que transformar o sigilo bancário em arma jurídica do cliente contra o banco que, sujeito à sua obrigação, ficaria impedido de defender seus legítimos interesses” (in O sigilo Bancário. LEUD: São Paulo, 1991, p. 201).

Não discrepa desse entendimento, esta Corte de Justiça:

DIREITO CIVIL – OBRIGAÇÕES – RESPONSABILIDADE CIVIL – DANO MORAL – LITÍGIO JUDICIAL EM QUE SE JUNTA EXTRATOS BANCÁRIOS DO AUTOR – VIOLAÇÃO DE SIGILO BANCÁRIO – IMPROCEDÊNCIA EM 1º GRAU – RECURSO DO AUTOR – ILÍCITO CONFIGURADO – CONFLITO ENTRE PRINCÍPIOS – QUEBRA DE SIGILO CONTRA AMPLITUDE DE DEFESA – AUSÊNCIA – SUPREMACIA DA AMPLA DEFESA – EXERCÍCIO REGULAR E MODERADO DE DIREITO – ILÍCITO NÃO CONFIGURADO – RECURSO DESPROVIDO – SENTENÇA MANTIDA.

Inexiste conflito entre os princípios do sigilo bancário e o da amplitude de defesa, preferindo-se o último pelos critérios da razoabilidade/proporcionalidade do bem jurídico que será supostamente ofendido.

Instituição financeira que em litígio judicial com seu cliente junta extratos bancários deste para exercer direito de ampla defesa, não pratica abuso de direito e, em conseqüência, afasta ilícito gerador de responsabilidade civil. (TJSC, ACv n. 2006.043235-3, Rel. Des. Monteiro Rocha)

Portanto, a violação do sigilo bancário na hipótese não caracterizou ato ilícito, mas exercício regular do direito de ampla defesa da instituição bancária naquela demanda trabalhista. Por fim, ressalto que, embora os apelantes Elionir e Alexandro não possuam vínculo empregatício com o banco apelado, impunha-se a juntada do relatório que pormenorizava suas movimentações financeiras a fim de que fosse investigado eventual favorecimento destes com a manobra realizada por José Pereira, mormente porque o recurso envolvido é público. Daí porque afasto a condenação pretendida.

Isto posto, voto pelo desprovimento do apelo.

DECISÃO

Ante o exposto, a Câmara, à unanimidade, nega provimento ao recurso.

O julgamento, realizado nesta data, foi presidido pelo Exmo. Sr. Des. Fernando Carioni, com voto, e dele participou o Exmo. Sr. Des. Henry Goy Petry Junior.

Florianópolis, 10 de junho de 2008.

Maria do Rocio Luz Santa Ritta

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